“Natureza ensina cidades a serem inteligentes”, diz Giane Brocco

À frente de uma consultoria de biomimética, Giane Brocco explica como a natureza é o maior laboratório de pesquisa e desenvolvimento que existe.

Por Redação em 21 de março de 2022 9 minutos de leitura

giane brocco

Sistema sem fio de comunicação, energia solar para todos, logística perfeita, flexibilidade contra mudanças de clima, design inovador, harmonia com o meio ambiente, sem gerar lixo e sem emitir gás carbônico. Se ter pelo menos um desses atributos à risca torna uma cidade inteligente, o que dizer de um sistema que consegue ter tudo isso? Parece utópico, mas a CEO da Amazu Biomimicry Giane Brocco garante: não só é possível, como esses espaços existem com sucesso há bilhões de anos. São o cupinzeiro, a colméia, o formigueiro… ecossistemas completos que são inspiração para aqueles que procuram inovação em cidades. “A natureza é o maior laboratório de pesquisa e desenvolvimento que existe no mundo”, afirma ela, explicando o que é biomimética – a metodologia de inovação que coloca a natureza no centro da tomada de decisões. 

Para Giane, as cidades brasileiras perdem quando não se planejam de maneira sistêmica, como é o caso de redes de insetos. “Nossa desconexão com a natureza reflete imensamente nessa construção. A sociedade está preocupada em fazer mais e mais rápido, e, muitas vezes, não entende que faz parte de um grande ecossistema. Porém, se pensarmos assim, de forma linear, dificilmente vamos conseguir trazer soluções inteligentes de verdade”, afirma.

Em entrevista exclusiva ao Habitability e em conversa no episódio 37 do podcast Habitability, a executiva da consultoria de biomimética e inovação-consciente define cidade inteligente como aquela que, além de tecnologia, abarca os saberes naturais, deixa espaço para a inteligência social e também olha para como os seres – não apenas os humanos – conseguem interagir com o meio ambiente e ter sucesso. Confira a seguir.

Qual o principal desafio das construções atuais em relação às mudanças climáticas. Podemos aprender com os antepassados sobre como superá-lo?

machu picchu
Machu Picchu

Giane Brocco – Temos muitos desafios, é claro. As áreas urbanas crescem cada vez mais. Um exemplo é a questão das águas que tem se destacado exatamente porque temos construções que não foram pensadas sistemicamente. Quando olhamos para essas questões, podemos lembrar dos povos mais antigos e como lidavam com isso. Os incas, por exemplo, construíram Machu Picchu em uma montanha e adaptaram o sistema de captação, coleta e distribuição de água de maneira eficiente. E faziam isso de maneira natural. Não havia problemas de desabamento e as construções estão lá até hoje. Isso porque eles sabiam trabalhar com a natureza a favor deles

O que precisamos reaprender para poder fazer construções melhores?

Giane Brocco – Temos na natureza grandes construtores, além de materiais maravilhosos para construir. Olhar para isso é essencial.

Precisamos aprender a pensar no todo. Pensar sistemicamente, como eu disse antes. Ao construir uma casa ou um prédio, é importante visualizarmos também o entorno: se vai construir em um lugar que tem muito sol ou que tem muita chuva, como será essa interação com esses eventos, quais seres vivos habitam o local, entre muitos outros… A natureza sempre pensa sistemicamente. Por isso, as soluções que a natureza encontra beneficiam todo o ecossistema e não servem apenas para resolver um único problema. 

A alta das chuvas é um tema de preocupação para as cidades. O que a natureza pode nos ensinar sobre essa questão?

Giane Brocco – A natureza lida muito bem com diferentes desafios, tem alta resiliência e capacidade de adaptação. Um exemplo de animais que lidam com eventuais “enchentes” são os que moram perto ou no próprio mangue e podem ensinar muito às cidades. Eles estão conectados com os ciclos e não ficam enlouquecidos quando o mangue está cheio porque sabem que é sazonal. Entende? A gente perdeu a compreensão cíclica do mundo que habitamos. Nós queremos ter fruta madura de todos os tipos em todas as épocas do ano, só que as frutas são sazonais. Precisamos nos reconectar com a ciclicidade da natureza (que somos também). Como usar isso de forma inteligente? Entender o que a natureza faria com essa água! Como ela seria reutilizada? Para onde ela iria? O que é possível fazer a partir dessa inspiração? Olha só que incrível, em vez de ser algo destrutivo, se torna algo que pode nos beneficiar. Importante trabalharmos a nossa inteligência coletiva para expandir esse conceito em uma cidade inteligente.

Você pode dar um exemplo de construção que usou a natureza a seu favor?

Giane Brocco –  O shopping Eastgate Center, no Zimbábue, que não tem ar-condicionado, mesmo estando em um local em que a temperatura é próxima dos 40 graus. Isso porque, quem o projetou olhou para os cupinzeiros como inspiração, que têm tubulações de ar internas. Afinal, os cupins também vivem no deserto e não precisam de ar-condicionado.

shopping eastgate center

Quando os construtores foram planejar o shopping para aquele espaço, eles sabiam que colocar ar-condicionado seria uma grande loucura em termos de gasto de energia. Eles decidiram, então, olhar para o entorno e pesquisar quem construía no deserto também. E descobriram os cupins. 

Estar atento localmente é um dos 24 princípios da vida, que utilizamos hoje em dia na metodologia biomimética para conduzir os projetos. Quando falamos de chuvas e construções, o que está nos faltando é esse lugar de consciência e compreensão do lugar também. 

O que é a biomimética e qual sua relação com a inovação?

Giane Brocco – Biomimética é inovação inspirada pela natureza! É criar uma inovação que tenha a natureza como modelo, medida e mentora. Além, é claro, de também ter consciência de que somos seres vivos e, portanto, vivemos em um grande planeta vivo. Quanto mais trouxermos maneiras de encontrar soluções que permitam à vida, e a nós, continuarmos existindo no planeta de uma maneira saudável, mais conseguiremos inovar de forma incrível e inteligente. A biomimética é uma ciência que utiliza a metodologia do Biomimicry Thinking como ferramenta para criar inovação – nos permite inovar em materiais, produtos, sistemas e processos, além da parte de gestão e desenvolvimento humano. Por trazer um impacto positivo sistêmico ao gerar uma solução, dizemos que a biomimética nos permite criar uma inovação sistêmica. Por exemplo, se quisermos usar um vidro sustentável [na construção], inevitavelmente, vamos construir um prédio mais sustentável e contribuir, inclusive, em proteger a vida de mais de 300 mil pássaros que colidem em arranha-céus. Todo sistema se beneficia.

A biomimética também ensina sobre o uso de materiais para construções mais sustentáveis. Qual é o melhor exemplo disso?

Giane Brocco – São muitos os exemplos que podemos mencionar. Vou trazer um que tem grande impacto. Todo o ano, apenas na Europa, mais de 300 mil pássaros morrem a partir da colisão com arranha-céus. Isso porque a película de vidro espelhada usada em prédios pode até ser visualmente bonita para humanos, mas outros organismos naturais não estão acostumados com ela. Para os pássaros, a película apenas reflete o céu, ou seja, eles acham que podem continuar voando e acabam colidindo. Para resolver esse problema, a empresa de vidros Arnold Glass olhou para a natureza a fim de encontrar uma solução e chegou nas teias de aranha. Os pássaros nunca colidem com as teias de aranha porque elas refletem a luz UV, que os pássaros, ao contrário de nós, humanos, conseguem enxergar. Entendendo isso, eles criaram o Ornilux, um vidro que possui uma membrana que se parece com uma teia de aranha, visível apenas para os pássaros. Não altera o design ou a estética, mas é eficiente para salvar a vida de milhares de pássaros. Entendemos assim que as soluções para os nossos desafios existem, porém as empresas precisam começar a se responsabilizar pelo que fazem e engajarem-se em buscar soluções mais sustentáveis para os negócios, sociedade e natureza.

A questão é também um ponto cultural. A sociedade acredita que é a “mais evoluída” e, portanto, não precisa “olhar para o lado”. Como mudar esse paradigma?

Giane Brocco – Precisamos ter a humildade de aquietar a nossa inteligência. A humanidade se colocou em um lugar onde acha que já tem todas as respostas. De fato, temos muitas respostas e já criamos muito. Não estamos invalidando o que foi feito. Mas a biomimética pode potencializar o que fazemos e nos permite observar o que pode ser feito de maneira diferente de forma mais sustentável e funcional, já que, apesar de termos criado coisas incríveis, muitas delas não vão sustentar a nossa existência no longo prazo. No planeta existem seres vivos que também construíram e fazem coisas incríveis sem que haja degradação de outras espécies.

Quando a gente fala de organismos naturais como modelo, medida e mentora dos nossos projetos, eles se tornam a referência, o nosso benchmarking. A natureza é uma inteligência de 3,8 bilhões de anos e pode ser considerada o maior laboratório de pesquisa e desenvolvimento que existe. E o melhor? Com acesso gratuito e aberto! Só que para usá-lo precisamos fazer as perguntas certas. A natureza é uma fonte inesgotável de inspiração, estratégia e sabedoria para quem souber fazer a pergunta certa e tiver interesse em se conectar com ela. 

Quais organismos são grandes inspirações e por quê?

Giane Brocco – Todos os organismos podem nos inspirar. Depende sempre da área em que queremos levar a inovação, buscar soluções ou otimizações. Vou citar dois exemplos: em termos de logística não há um software que já tenha chegado perto de fazer o trabalho das formigas. E em termos de comunicação, transporte de carga, força e eficiência elas também são inspiradoras, pois conseguem estabilizar a carga no corpo, distribuindo o peso, criam a via mais rápida e comunicam a todas as outras via feromônio. A biomimética traz um pouco disso, de conseguirmos entender que até uma formiga tem questões geniais – são o que chamamos de superorganismos inteligentes. Então, partimos de perguntas: e se a gente construísse com materiais inspirados nas formigas? E se a gente entendesse a logística das formigas? E se a gente olhasse como elas armazenam os alimentos?

organismos inspiracao

Outro organismo super interessante são as abelhas. Elas produzem diferentes tipos de mel e de cera. Existe o mel que é alimento para a colméia, para nós e a cera de construir colmeia. Não tem como ignorar toda essa inteligência natural que existe nos sistemas. Além do sistema de construção hexagonal e armazenamento perfeitos.

Na sua visão, quais organismos podem inspirar soluções para as capitais brasileiras?

Giane Brocco – Um ponto importante é cada cidade usar seus ecossistemas locais. Na biomimética, assim como na natureza, sempre levamos em consideração o meio ambiente em que a inovação que queremos fazer estará inserida. Em São Paulo, por exemplo, há a questão da urbanização e montanhas. Já o Rio de Janeiro é uma cidade com praia. Porto Alegre, por outro lado, faz mais frio, ou seja, outros organismos naturais habitam esse ecossistema. De qualquer forma, eu começaria observando os insetos sociais para captar a inteligência de pensar na cidade como um espaço inteligente e interconectado, porque quando falamos de cidade, estamos falando de sociedade, de muitos organismos vivos. É preciso, então, primeiro trabalhar a nossa inteligência social para depois trazer a inovação aplicada na prática em termos de produtos e serviços. Então, começamos por compreender a inovação social que mostra como as pessoas que vivem nessas cidades podem se entender como grupo e os impactos que estamos causando para, a partir daí, começar a buscar organismos que habitam esses locais para encontrar soluções mais eficientes de produtos, processos e sistemas.

Dentro do conceito da biomimética, quais são as perguntas que capitais como São Paulo deveriam fazer para trazer a resposta natural?

Giane Brocco – São muitas as possibilidades. Depende sempre do que queremos transformar ou melhorar. No caso dos rios poluídos, por exemplo, uma das muitas perguntas a se fazer é: como a natureza filtra a água? Existem soluções químicas e físicas para solucionar o problema de um rio poluído. Outra pergunta é: como a natureza limpa o ar? Como ela usa o CO2? Porque na natureza o gás carbônico não é o vilão, mas sim matéria-prima. Há empresas nos Estados |Unidos que já usam CO2 para fabricar cerâmicas e garrafas. 

Cidade inteligente é um termo normalmente usado para descrever um espaço urbano completamente tecnológico, mas quando você fala de cidade inteligente, você cita a inteligência natural. O que seria então cidade inteligente na sua perspectiva?

Giane Brocco – Nós somos organismos naturais, mas nos dissociamos tanto dessa natureza que optamos, geralmente, pela via do artificial. Tanto que o planeta Terra é tratado como uma máquina, mas não é. A Terra é um ser vivo! É um grande ser vivo pulsante que gera vida, assim como nós. Somos a fonte criativa, somos a grande inteligência, mas terceirizamos isso para a máquina. Não estou negando o que a tecnologia trouxe de bom. Ela é importante, pois nos permite e possibilita inúmeras conexões e soluções, mas tem que estar conectada a uma inteligência natural que permita a convivência harmoniosa entre os seres vivos também.

Precisamos acionar a inteligência coletiva e não nos enxergarmos como robôs. Não somos robôs, nós criamos robôs. E precisamos entender e nos beneficiar disso. Somos seres sociais. Estamos entrando em metaverso e é incrível, porém nada vai substituir outro ser humano, porque somos seres sociais. Para nos beneficiarmos da tecnologia e do social, precisamos compreender mais da nossa inteligência coletiva que é inerente. Uma cidade inteligente é, portanto, uma cidade superconectada em termos de tecnologia, de relações humanas e de todos os seres vivos, que também tornam funcional a inteligência natural. 

Há outros exemplos de tecnologia inspirada pela natureza?

Giane Brocco – O trem bala do Japão foi inspirado pelo vôo do pássaro Martim-Pescador. Toda vez que o trem saía de um túnel, ele comprimia o ar dentro do túnel de tal forma que produzia uma explosão sonora – problema considerável para as áreas residenciais próximas. Mas, para a sorte da Japan Railway West (JR West), empresa responsável pelo sistema de transporte, o engenheiro Eiji Nakats tinha um hobby que seria crucial para resolver a questão: ele era um ávido observador de pássaros e encontrou uma solução inspirada no vôo do martim-pescador. Nakatsu também corrigiu outros aspectos do projeto com base nas penas de uma coruja e no abdômen de um pinguim. Solucionando assim questões do barulho, velocidade e consumo de energia, além de otimizar o design e uso de materiais.

E isso só foi possível porque ele teve esse olhar curioso. Precisamos dessa curiosidade para criar inovação que tenha impacto positivo para os negócios, sociedade e para o Planeta.