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Arquitetura de impacto social: pessoas no centro… no começo e no fim
A arquiteta Noelia Monteiro desafia obstáculos geográficos e sociais ao liderar projetos que buscam a arquitetura de impacto social positivo
Por
Nathalia Ribeiro em 23 de janeiro de 2024 7minutos de leitura
Noelia Monteiro e Christian Teshirogi (Foto: German Nieva/ Estúdio Flume)
Encontrar profissionais que estejam dispostos a encarar realidades tão desafiadoras quanto as de comunidades isoladas é uma tarefa difícil. A distância geográfica, as condições adversas e as disparidades sociais muitas vezes desencorajam aqueles que buscam abordagens mais convencionais. A arquiteta argentina, Noelia Monteiro, no entanto, não apenas aceitou o desafio, como fez dele seu propósito por meio da arquitetura de impacto social.
Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de Córdoba, Noelia foi para São Paulo em 2011 para cursar a pós-graduação em Habitação Social e Cidade. O que seria um período de um ano se transformou em uma estadia permanente. Durante essa trajetória, cruzou caminhos com Christian Teshirogi, e juntos, em 2015, deram vida ao Estúdio Flume, dedicado à arquitetura de impacto social positivo. Em entrevista ao Habitability, a arquiteta conta um pouco de sua trajetória e os trabalhos dos quais se orgulha.
Por meio do Estúdio, Noelia tem desempenhado um papel importante na transformação de comunidades em diversos estados do Brasil, deixando sua marca em locais como São Paulo, Rio de Janeiro, Amazonas, Pará e Maranhão. Sua abordagem técnica, e ao mesmo tempo sensível, busca não apenas criar espaços arquitetônicos funcionais e confortáveis, mas também que promovam o desenvolvimento sustentável e o fortalecimento das economias locais, respeitando a história coletiva e os materiais encontrados nos entornos.
Identidade, memória, conhecimento
De acordo com o sociólogo e escritor Michael Pollak, a percepção do significado de identidade e memória se dá quando se exploram as raízes e se adquire conhecimento dos aspectos singulares que permeiam uma comunidade. Essa compreensão envolve a familiaridade com os eventos históricos e culturais que moldaram a identidade local. Torna-se essencial abraçar o passado, não apenas para entender o presente em si, mas também para projetar um futuro sustentado por esse conhecimento.
Tendo como um de seus fundamentos como arquiteta preservar e realçar a essência das comunidades de modo sustentável, Noelia coloca essa filosofia em prática desde a escolha dos materiais em seus projetos com uma abordagem que vai além do respeito e chega ao enaltecimento das características distintivas de cada localidade. ‘’Ao nos envolvermos em novos projetos e comunidades, dedicamos especial atenção a esses contextos variados. Analisamos as condições geográficas e observamos de perto como as construções locais são realizadas’’, explica ela.
‘’É importante compreender os materiais utilizados pela comunidade, suas preferências e as técnicas tradicionais de construção. Essa sensibilidade ao contexto cria projetos que não apenas respeitam a identidade local, mas também se integram às condições específicas de cada lugar’’, acrescenta.
Para isso, as estratégias usadas pela arquiteta são muitas, adaptando-as de acordo com a localização de cada projeto e priorizando soluções que deixem as edificações protegidas das condições ambientais. Um exemplo é a otimização das condições internas de temperatura utilizando tratamentos sombreados e cobertura dupla para promover ventilação cruzada em locais quentes como o Norte e Nordeste do Brasil, além de beirais para proteção contra chuva e sol, proporcionando uma forma de resguardo.
A combinação entre qualidade e longevidade dos projetos com limitação de recursos financeiros é outro ponto de destaque em seus projetos, uma vez que, frequentemente, a verba disponível é restrita. ‘’A meta é assegurar que a comunidade esteja bem e que o projeto alcance seu máximo potencial com os recursos disponíveis no momento’’, salienta. ‘’Buscamos uma abordagem de construção que não apenas exija a menor manutenção possível ao longo do tempo, mas também assegure que a obra se mantenha bem preservada e envelheça de maneira qualitativa ao absorver os efeitos do tempo’’.
Arquitetura de impacto social no Maranhão
Um dos grandes exemplos de sua abordagem é a sede de uma cooperativa composta por seis mulheres dedicadas à produção de castanha de caju. Localizada na comunidade de Nova Vida, na zona rural de Bom Jesus das Selvas, no Maranhão, a parceria entre a comunidade e o Estúdio Flume resultou em um espaço agradável e funcional, em harmonia com as características regionais.
A sede foi estabelecida em uma pequena casa da comunidade, passando por um processo de renovação que priorizou a reutilização da estrutura existente. No desenvolvimento do projeto, Noelia e sua equipe optaram por utilizar materiais disponíveis localmente, como o bloco cerâmico de 8 furos, comum na região, e portas pivô venezianas, garantindo uma ventilação constante nos ambientes. A concepção do projeto incorporou princípios bioclimáticos, visando proporcionar conforto térmico e atender à demanda por um espaço com baixo custo de manutenção, especialmente em um clima tropical semiúmido. Vale ressaltar que Nova Vida está situada na região dos cocais, marcando a transição entre os biomas da Amazônia e do Sertão.
A experiência na Zona dos Cocais, área de transição do território brasileiro, entre a Floresta Amazônica, o Cerrado e a Caatinga, inspirou até a participação do Estúdio na XII Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo: Construir o Cotidiano.
Partindo do registro de um dia de trabalho na vida das quebradeiras do coco de babaçu, no povoado de Boa Vista, estado do Maranhão, a instalação destacava – através de áudios gravados e de 120kg de cocos recolhidos e dispostos no chão – seis momentos que constroem o cotidiano dessa passagem na mata: o caminho, a coleta do coco, a coleta do carvão, a pausa para o almoço, a quebra do coco e o retorno. Como resume o texto mostra ”da amêndoa do Babaçu, o segundo produto florestal não madeireiro mais vendido no Brasil com aproximadamente 120 mil toneladas anuais, famílias da região tiram o seu sustento. Essas famílias provêm não somente de comunidades tradicionais indígenas, como também quilombolas e pequenos produtores agroextrativistas, o que demonstra a rica diversidade sociocultural da região em relação à exploração sustentável deste recurso natural”.
Todos esses esforços têm um objetivo claro: melhorar a qualidade de vida em comunidades marcadas por extensos períodos de trabalho físico intenso, como em povoados dedicados a atividades como a produção de castanhas de caju, moenda de farinha de babaçu, fabricação de mel, rapadura, panificação, entre outros produtos.
Na arquitetura de impacto social a comunidade é protagonista
Segundo Noelia, para o sucesso de uma arquitetura de impacto social – entendendo o sucesso como a efetiva apropriação e utilização do espaço construído – a participação comunitária deve ser incorporada desde os primeiros passos. As necessidades e vivências devem ser registradas e levadas em consideração. O projeto, então, é desenvolvido de maneira colaborativa, reconhecendo que as pessoas que utilizarão o espaço são quem, de fato, detém o conhecimento sobre os processos de suas atividades e os métodos específicos.
Noelia ressalta que esses processos, intrínsecos à produção alimentar, frequentemente, constituem novos desafios, sendo áreas em que não são especialistas. Por isso, o trabalho colaborativo e participativo com a comunidade durante a elaboração do projeto assegura que este tenha um layout adaptado às suas necessidades.
Ao longo de sucessivas gerações, o trabalho artesanal é transmitido, preservando modos tradicionais de produção. Essa continuidade das tradições, entretanto, pode acarretar consequências à saúde, desgastando o corpo devido à repetição manual do trabalho por muitos anos. Por isso, ‘’o intuito é harmonizar as práticas tradicionais com conhecimentos técnicos, incorporando estudos de ergonomia para construir um espaço agradável de trabalho e proporcionar conforto’’, conta Noelia. Sendo assim, os projetos não apenas atendem às necessidades imediatas das comunidades, mas também oferecem soluções que resistem ao teste do tempo, contribuindo para uma abordagem mais equilibrada entre tradição e inovação. ‘’Para uma pessoa que passa longas horas trabalhando na mesma posição e seguindo essa rotina, nós precisamos considerar princípios de ergonomia. É fundamental buscar maneiras de trazer conforto para essa jornada de trabalho, a fim de torná-la mais suave’’ acrescenta.
Entrelaços
Se a convivência desempenha um papel vital, em regiões de difícil acesso ela assume uma importância ainda maior. É neste contexto que o fortalecimento da economia local precisa ser parte fundamental da concepção dos espaços, pois está intrinsecamente ligado à consolidação dos laços comunitários.
A arquiteta relembra um projeto realizado no interior do Maranhão, na cidade de Arari, que envolvia duas associações constituídas por mulheres empreendedoras compartilhando o mesmo terreno. Um grupo dedicava-se à produção de pães e doces artesanais, enquanto o outro se envolvia com costura. Inicialmente, os grupos mantinham desavenças: ‘’se tivessem a oportunidade, naquela época, optariam por erguer um muro dividindo o terreno’’ brinca Noelia. Contudo, graças ao projeto elaborado para atender às especificidades de ambos os grupos, foi possível criar um espaço de encontro entre os projetos da comunidade de Bubasa, uma padaria e um ateliê de costura.
‘’Ao retornarmos para avaliar o progresso da obra e seu uso, constatamos que aquele espaço, desde a inauguração do projeto, tem sido utilizado regularmente. Nele, mensalmente, realiza-se uma feira, envolvendo outras mulheres da comunidade, proporcionando a cada uma a oportunidade de vender seus produtos’’, orgulha-se. ‘’Essa conquista trouxe grande alegria, pois não apenas construímos fisicamente, mas também estabelecemos um diálogo que agregou outras mulheres da comunidade ao projeto’’.
É assim, projeto a projeto, que Noelia Monteiro eleva a arquitetura de suas funções estéticas e práticas, explorando-a como uma poderosa ferramenta para fortalecer comunidades, preservar tradições e impulsionar o desenvolvimento sustentável, tendo as pessoas como ponto de partida, protagonistas durante todo o processo e também como objetivo final.
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