As novas projeções da ONU assustam: o cenário de emergência climática é iminente. A pressão para que todas as partes da sociedade façam mudanças estruturais aumentou. Seja por parte dos especialistas, seja na visão interna estratégica, um ponto é certo: a visão ESG nunca foi tão necessária. Em outras palavras, o jogo agora é outro, será que as grandes empresas estão sabendo jogá-lo?
Para a especialista em sustentabilidade e SDG Pioneer pelo Pacto Global da ONU, Sonia Consiglio, a resposta pode surpreender: sim. “Houve avanço nas discussões e as empresas brasileiras são benchmark em sustentabilidade”, disse Consiglio, pioneira na aplicação do ESG em companhias brasileiras. Para ela, por mais que exista uma urgência, ainda é preciso pensar no ESG de maneira retrospectiva nas empresas. “É uma questão tão profunda que o não retrocesso ainda deve ser comemorado, mas o nosso foco precisa estar no avanço. A gente nunca deve menosprezar os pequenos avanços e os pequenos ganhos”, ponderou a executiva.
Autora do recém-lançado “#vivipraver: A história e as minhas histórias da sustentabilidade ao ESG”, livro onde ela conta sobre a sua jornada dentro de grandes companhias, como B3 e Itaú Unibanco, Sonia também conversou um pouco sobre essa jornada rumo à sustentabilidade com o Habitability. Confira a seguir:
Em seu livro “viviparaver”, você comentou que “o não retrocesso deve ser comemorado”. Você ainda acha que, mesmo com o cenário de urgência, a frase ainda faz sentido?
Sonia Consiglio – Infelizmente esse pensamento ainda vale. O “infelizmente” é porque seria bom que a gente só falasse de avanços. Temos uma pressa muito grande. Estamos na década da ação para a agenda 2030 funcionar. Mas temos que saber que, quando falamos de ESG e de agenda sustentável, estamos falando de uma mudança profunda e estrutural. Estamos falando de um novo modelo que vai para além da sustentabilidade. É um novo modelo de operar o mundo.
É uma questão tão profunda que o não retrocesso ainda deve ser comemorado, mas o nosso foco precisa estar no avanço. A gente nunca deve menosprezar os pequenos avanços e os pequenos ganhos.
O que significa o não retrocesso hoje em dia?
Sonia Consiglio – No terceiro relatório do IPCC (sigla me inglês para Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) ficou comprovado que a ação do homem gera o aquecimento global e acelera a mudança climática. Não dá para admitir o retrocesso em questões absolutamente comprovadas, porque se não nós vamos ficar andando em círculo, como em uma areia movediça, e não sai do lugar. Nós dependemos de liderança, vontade política e tomada de decisão.
Quando falamos em práticas ESG dentro das empresas, o tema “greenwashing” acaba sendo levantado. Qual sua opinião sobre o assunto?
Sonia Consiglio – No início dos anos 2000 o greenwashing veio muito forte porque estava todo mundo tentando se localizar no assunto. Hoje é diferente. Temos um grande controle social. É só ver a reação nas redes sociais. Lido há 20 anos com a cadeira de sustentabilidade dentro das empresas. Não acredito que uma empresa venha a público mentir. Ela seria muito ingênua se fizesse isso. Se ela faz, é outro tipo de conversa.
Agora, é claro que nem tudo é tão visível para a gente. Acompanho muitas empresas que fazem meta net zero (zero emissão de carbono), mas muito do que precisa para se atingir a meta não existe ainda. Isso exige mudança de tecnologia, de processo produtivo… precisa de uma mudança em cadeia. Mas coloca no pipeline e vai correr atrás. Tem muita coisa acontecendo, empresas brasileiras são benchmark no mundo com relação ao ESG.
Quais setores estão mais avançados em termos de ESG? E quais ainda têm mais desafios?
Sonia Consiglio – Historicamente, os setores financeiro e elétrico são bastante avançados. O financeiro porque é intermediador de tudo, viabilizador. E o elétrico porque acaba tendo muita regulação e autorregulação. Do outro lado, o setor de construção requer atenção. Seja por causa dos materiais, seja pela produção ser toda intensiva em carbono, tem desafios. Mas é um setor que está mudando! Um exemplo são as certificações dos edifícios verdes. As construções inteligentes já existem há muito tempo e tem discussões avançando.
De onde virão as soluções para a sustentabilidade das empresas?
Sonia Consiglio – Gosto muito quando vejo iniciativas setoriais porque elas têm um potencial de transformação grande. Tudo deveria passar pela articulação setorial. E, claro, depois, pelo crivo de cada empresa. Porque cada uma tem estratégia e posicionamento diferentes. Mas o setor pode dar um apoio grande e dar escala para as mudanças sustentáveis.
Você viu grande parte da discussão sobre ESG e metas sustentáveis para as empresas sendo estabelecida. Qual a diferença entre o que já viu e onde estamos agora?
Sonia Consiglio – Uma das maiores tendências de ESG em 2022 é exatamente esse escrutínio sobre as metas das empresas, porque foi ótimo elas terem assumido muitos compromissos, mas como estão indo esses compromissos? A CVM (Comissão de Valores Mobiliários) lançou nova norma para divulgação de informações de sustentabilidade que serão válidas a partir do ano que vem. O cerco vai se fechando no sentido de que é preciso dar transparência para o que está sendo feito.
O que a gente tá vivendo hoje é uma diferença estrutural. A gente vem por exemplo de uma aprovação de mercado global de carbono na COP26, no ano passado. Isso muda tudo! Vai mudar no curto prazo? Não, porque ainda é preciso entender como será o modelo, como será a implementação… Mas aprovou! E estamos tentando isso desde 2015. Nunca se emitiu tantos green bonds: o mercado compra, os investidores querem. É só olhar a Black Rock, a maior gestora de recursos do mundo dizendo que quer saber qual é o plano de transição das empresas para se adequar à economia de baixo carbono.
As mudanças estruturais e estruturantes estão acontecendo e dão um recado para as empresas: elas têm que se posicionar [com relação ao ESG] ou vão perder mercado.
Como você pensava que seria implementar a sustentabilidade da empresa e o que mudou?
Sonia Consiglio – No fundo, até por ter atuado em investimento social privado, sempre fez grande sentido para mim que essa era uma agenda de transformação de modelo. Talvez eu não falasse dessa forma, mas eu entendia ser um conceito novo chegando no mundo corporativo. Na época, o assunto era quase um patinho feio. Era aquele pensamento “deixa a gente ganhar dinheiro que você cuida dessa história aí”. Fico muito feliz em ver que hoje realmente mudamos de fase. Lá atrás era uma coisa de convencer o CEO, o diretor financeiro, o RI… Acho que hoje estamos no momento de estratégia. As empresas e, consequentemente, outros atores, perceberam de fato que estamos falando de uma mudança inexorável e que transforma padrões.
Em artigo recente na Harvard Business Review, Paul Powman e Andrew Winston comentam que o ESG é uma iniciativa que pode “se pagar” dentro das empresas, mas não no curto prazo. Como equilibrar?
Sonia Consiglio – Tem uma frase do Paul que gosto muito que é: o preço de não fazer nada é maior que o custo de agir. Vai custar mais caro. A realidade é que as empresas colocaram uma meta para ter que mudar a produção. E vão ter que investir para entender os problemas, investir em inovação e procurar parceiros para chegar nesse resultado.
Você foi reconhecida pela ONU como uma das pioneiras em promover os ODS no Brasil. Atualmente, a discussão da agenda ESG saiu das empresas e chegou nas cidades. Como se dá essa confluência?
Sonia Consiglio – No fundo, a gente precisa que cada um dos atores da cadeia exerça, de fato, o seu papel para que a visão ESG vire realidade e caminhe. Quando eu penso nas cidades, acho que tem vários movimentos. Pode ser o movimento de empresas provocando a comunidade – e a gente sabe que isso tem um grande potencial, principalmente em cidades do interior onde a empresa é o principal ator. Pode também vir de uma empresa que proponha projetos junto ao setor público. E há algumas iniciativas que vêm do setor público, que pode fazer proposições para as empresas. Vejo questões interessantes, de municípios verdadeiramente comprometidos. Precisamos fazer o encontro das águas! Esses atores precisam se encontrar para um saber o que o outro está fazendo. O encontro pode otimizar e fazer com que todo mundo avance junto. Nesse ponto, as associações setoriais são importantes e podem ajudar muito. Tanto as associações setoriais, quanto o Pacto Global da ONU e outros grupos que falam em nome de muitas empresas junto ao poder público. Acho que aí existe um poder de avanço muito grande.
Como você imagina a cidade ideal de 2050?
Sonia Consiglio – Espero que a cidade seja um espaço de convivência inclusivo. Inclusivo em todas as questões – econômico-financeira, de capacidade… uma cidade que funcione para todo mundo ou seja “friendly” em termos de mobilidade e de acessibilidade. É uma cidade que percebe que os cidadãos diferem e acomoda tudo isso. Uma cidade que traz oportunidade do ponto de vista produtivo.
No final de contas, uma cidade que seja mais feliz. Nós passamos por tantos desafios como mundo, olha o que estamos vivendo há dois anos! Então que essa cidade, por meio das atuações políticas, foque na saúde mental, na qualidade de vida e na felicidade de seus moradores.