Nas grandes cidades, a relação com a natureza costuma se resumir ao que cabe entre calçadas estreitas, canteiros improvisados e parques disputados. Mas há ali um potencial pouco explorado: o de explorar intencionalmente as funções plenas de árvores e plantas, para muito além do paisagismo, isto é: alimentar, cuidar, refrescar e criar laços. Essa ideia ganha força à medida que urbanistas e pesquisadores passam a olhar para o verde como parte da infraestrutura essencial para um futuro mais resiliente.
É nesse horizonte que surge a pesquisa desenvolvida na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP), orientada pelo professor Demóstenes Ferreira da Silva Filho, que investiga como o forrageamento urbano — o cultivo e a coleta de espécies comestíveis nas cidades, que pode contribuir para a segurança alimentar, para a saúde pública e para a adaptação às mudanças climáticas. Livre-docente da USP, com longa trajetória na área de silvicultura urbana e diagnóstico de florestas, Demóstenes coordena atualmente disciplinas de graduação e pós-graduação e já liderou o grupo de pesquisa Silvicultura Urbana do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Em entrevista ao Habitability, Demóstenes aprofunda como essa prática pode reconfigurar a forma como planejamos e vivemos os espaços verdes, transformando o ambiente urbano em um ecossistema ativo de bem-estar, cultura e sustentabilidade.
O conceito de forrageamento urbano ainda é pouco conhecido no Brasil. Como o senhor o definiria?

Demóstenes Ferreira da Silva Filho: O mundo moderno está cheio de novos termos. Às vezes, são coisas antigas que já se fazem há muito tempo, mas acabam ganhando um neologismo. O termo “forrageamento” é um deles. Trata-se de um termo técnico usado para falar sobre a alimentação baseada em frutos silvestres ou sobre o ato de retirar, no dia a dia, alguma parte de uma planta para consumo, seja fruto, folha ou raiz. É uma forma de extrativismo, algo bastante antigo. O termo é usado, por exemplo, para descrever animais se alimentando nas cidades, como as aves. Mas também se aplica a nós. Passar por uma árvore, uma amoreira, por exemplo, ver um fruto e pegar para comer é algo comum, que as pessoas fazem. Isso é forrageamento.
O senhor orientou uma pesquisa na Esalq/USP, em Piracicaba, sobre forrageamento urbano, que revela como as árvores das cidades podem ir além do paisagismo e, de fato, “colocar comida no prato”. Na sua avaliação, as cidades brasileiras estão preparadas para incorporar essa visão mais produtiva das florestas urbanas?
Demóstenes Ferreira da Silva Filho: O forrageamento poderia ser melhor planejado e dosado nas cidades. Poderia haver, por exemplo, uma área que funcionasse como um pomar para as pessoas. Isso poderia até ser um complemento alimentar. Plantas medicinais, folhas e cascas também poderiam ser cultivadas nesses espaços.
Um ponto interessante do estudo é a constatação de que o conhecimento sobre plantas comestíveis está se perdendo entre as gerações. Quais caminhos o senhor enxerga para resgatar esse saber popular?

Demóstenes Ferreira da Silva Filho: Esse saber popular é bem interessante. Ele é, talvez, uma mistura da cultura indígena com uma cultura europeia antiga. Eu tinha alguns familiares que mantinham pequenas hortas medicinais no quintal de casa. Eram hortas com 10 a 12 tipos de plantas diferentes, todas usadas diretamente para a saúde. Tínhamos plantas que ajudavam a controlar a glicemia, aliviar inflamações… Era comum encontrar esse tipo de horta nos quintais e hoje não mais. Essa é uma cultura que os nossos avós tinham e que os nossos netos não terão, se nada for feito. Então, talvez uma cartilha mostrando como usar as plantas, quais são elas, seus usos e como cultivá-las pudesse ajudar a resgatar essa cultura.
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No estudo foram feitas entrevistas com servidores públicos. Elas revelaram abertura para incorporar o forrageamento em políticas ambientais e alimentares?
Demóstenes Ferreira da Silva Filho: Eu acho que há um pouco de desinformação, e isso pode contribuir para que plantas frutíferas não sejam utilizadas, principalmente por causa do tamanho dos frutos, que pode ser um impeditivo na área urbana. Outro ponto é que, quando você planta uma árvore frutífera e ela frutifica intensamente, os frutos caem no chão e podem gerar problemas, alguém pode escorregar, se machucar, um carro pode derrapar.
No YouTube, por exemplo, há alguns vídeos de Goiânia mostrando uma espécie muito utilizada, o jambulão, uma mirtácea. Ele foi plantado em uma avenida da cidade. Quando chove, acontecem acidentes automobilísticos por causa dos frutos no chão. Então, o fruto em área pública precisa ser bem manejado, porque vai exigir uma demanda diferenciada. Mas se tudo isso for bem planejado e equacionado, é plenamente viável que esse tipo de iniciativa seja implementada.
Recentemente, houve casos de pessoas que vieram a óbito após consumir uma planta tóxica achando que era couve. Quais são os riscos associados ao forrageamento urbano e quais medidas podem ser adotadas para garantir que a população colete frutos e plantas de forma segura?
Demóstenes Ferreira da Silva Filho: Tudo isso é uma questão de manejo e de conhecimento. É importante evitar o plantio dessas espécies tóxicas na cidade e conscientizar a população para que conheça, saiba identificar e se proteja. As crianças, principalmente, são muito atraídas por um fruto vermelho, alguma coisa mais chamativa. E há plantas que produzem frutos bonitos, mas que podem ser até letais. Quando incentivamos as pessoas a fazer coleta de frutos em áreas públicas, é preciso ensiná-las como proceder e quais cuidados devem ter. É, sim, um risco.
De que maneira a integração do forrageamento ao planejamento das florestas urbanas poderia funcionar, na prática, para que se tornar um instrumento de adaptação das cidades aos eventos climáticos extremos?

Demóstenes Ferreira da Silva Filho: Se você tiver um grupo de frutíferas nativas sendo utilizado, as pessoas vão aderir mais a essa vegetação por ela ser comestível. Vejo muito isso no caso das mirtáceas, porque temos muitas espécies nativas que produzem frutas muito gostosas e nutritivas. Temos o cambuci, a cereja-do-Rio-Grande, a própria pitangueira, a uvaia, todas espécies nativas brasileiras. E elas podem ser utilizadas nas cidades. Os pássaros também vão consumir esses frutos e disseminar as sementes nas áreas livres e nos fragmentos de vegetação.
Isso cria uma ligação forte entre a arborização urbana, as florestas urbanas e até as florestas nativas próximas. Então, ao trabalhar o forrageamento de maneira inteligente, você também acaba trazendo benefícios para a ecologia da paisagem como um todo.
Quais são os principais desafios técnicos e regulatórios para incorporar espécies comestíveis ao planejamento das florestas urbanas?
Demóstenes Ferreira da Silva Filho: As cidades brasileiras, na maioria, têm dificuldades com a arborização urbana. E essa dificuldade permanece mesmo quando se pensa em um projeto de florestamento urbano. Há problemas de espaço, conflitos entre calçadas e outros mobiliários, e a própria calçada não é pensada para receber árvores. Primeiro se cria uma estrutura super rígida e, só depois, se pensa em colocar uma árvore ali. É exatamente o contrário do que deveria acontecer.
É preciso, primeiramente, preparar uma calçada adaptada para o crescimento das raízes, para depois plantar a árvore. Isso é algo básico e ainda não acontece. Se a gente equacionasse isso, poderíamos criar ruas com locais específicos de plantio, onde o solo fosse totalmente preparado, ou seja, um piso drenante, sustentado por estruturas que impedissem a compactação do solo. Assim, haveria uma área de absorção de água, como em um jardim de chuva, que é um piso rígido em que a água infiltra.
Por que o jardim de chuva seria uma estrutura adequada para receber árvores?

Demóstenes Ferreira da Silva Filho: Nesse tipo de estrutura, a árvore cresce com as raízes se desenvolvendo plenamente, em um solo não compactado. Assim, há oxigênio para as raízes, nutrição, infiltração de água, uma condição de crescimento muito superior. E isso também aumenta a resistência da árvore a ventos e tempestades. As nossas árvores, nas nossas calçadas, não emitem raízes espessas e, por causa disso, caem durante tempestades. Tudo por causa das nossas calçadas, que são bonitas, mas não são pensadas para as árvores.
Há exemplos de cidades que já conseguem ter esse manejo melhor endereçado?
Demóstenes Ferreira da Silva Filho: São José do Rio Preto consegue ter uma certa sustentabilidade no manejo das árvores porque não é a prefeitura que poda. Existe um grupo de jardineiros, de podadores, que têm até uma cooperativa. E são eles que fazem o manejo das árvores na cidade. É claro que, muitas vezes, eles podam demais — deveriam podar menos —, mas existe essa mão de obra técnica disponível. Eles poderiam trabalhar também com árvores frutíferas e cuidar dessas árvores para as pessoas. Ou seja, a cidade já tem a estrutura necessária para lidar com essas questões. Bastaria introduzir algumas espécies e orientar o manejo correto.
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De que maneira o plantio de árvores frutíferas em áreas urbanas pode se transformar em política pública capaz de gerar benefícios sociais, nutricionais e até econômicos? É possível que essas iniciativas evoluam para práticas culturais duradouras dentro dos bairros e das cidades?
Demóstenes Ferreira da Silva Filho: Eu imagino que, por exemplo, a acerola, que é uma fruta com muita vitamina C, muito mais do que a laranja, é muito importante como complemento alimentar. Ela pode ser estratégica. Você pode ter aceroleiras em bairros carentes como uma política pública. Poderia existir, por exemplo, a “festa da acerola” naquela região, poderia ser algo fomentado nas escolas, com várias receitas à base de acerola, sucos e tudo mais. Isso já acontece muito com o cambuci. Em algumas cidades do interior de São Paulo, na região do Vale do Ribeira, fazem dias de festa para o consumo da fruta, com receitas e toda a cultura em torno dela. A uvaia também segue o mesmo caminho. Então, é possível que isso entre para a cultura depois de um tempo: primeiro como uma política pública, depois incorporado ao cotidiano das pessoas. E isso gera riqueza.
Que tipo de parceria entre universidades, governos e sociedade civil poderia impulsionar de forma consistente a agenda do forrageamento urbano nas cidades?
Demóstenes Ferreira da Silva Filho: A universidade é financiada por fundações, como a FAPESP – a principal fundação de amparo à pesquisa do Estado de São Paulo e uma das principais do Brasil. Essas fundações podem ter editais específicos voltados para políticas públicas urbanas. A FAPESP, por exemplo, tem uma linha chamada “Políticas Públicas”. Nessa linha, desde o princípio, a universidade atua como desenvolvedora de pesquisa, gerando uma tecnologia para ser utilizada por um órgão público, um gestor ou uma ONG. Ou seja, a universidade participa junto com um parceiro.
Eles desenvolvem um projeto de política pública em conjunto, com o objetivo de aprimorar alguma área, por exemplo, a arborização urbana. Pode-se desenvolver uma tecnologia que será utilizada pelo parceiro. Em uma das fases do projeto, o parceiro atua sozinho: ele precisa aplicar aquilo que foi desenvolvido. Então, é um mecanismo de fomento que busca incentivar pesquisadores da universidade a trabalharem com políticas públicas.
Como seria a cidade ideal se o forrageamento urbano se tornasse uma prática consolidada na agenda das políticas públicas?

Demóstenes Ferreira da Silva Filho: Eu imagino associações de bairro, por exemplo, com roteiros para que as pessoas possam visitar determinadas árvores. Em algumas épocas, a frutificação de certas espécies já poderia estar definida e divulgada para a população, com uma sinalização urbana pensada para isso.
Então, se eu tenho uma determinada árvore, como vou colher o fruto dela? Seria importante haver uma estrutura adequada para isso, para que as crianças não precisem ficar jogando pedras para derrubar frutos, causando incômodo em carros ou janelas de casas.
Também imagino um aplicativo: você baixa, e ele mostra no mapa os roteiros para chegar às árvores que estarão frutificando naquela época, permitindo que as pessoas acessem essas informações com facilidade. Essa seria uma cidade ideal com forrageamento urbano.
Além do aspecto alimentar e dos benefícios ambientais, o forrageamento urbano também pode atuar na dimensão psicológica e no bem-estar da população? De que forma essa prática se conecta a sensações de pertencimento, vínculo com a natureza e promoção da saúde, dimensões alinhadas ao ODS 3, por exemplo?
Demóstenes Ferreira da Silva Filho: Algumas pessoas têm uma conexão maior com plantas e árvores. Acho que isso tem um pouco de cultura, mas também algo da própria psique coletiva, do símbolo que a árvore representa para as pessoas. Talvez, numa perspectiva de psicologia junguiana, o verde e a árvore simbolizem a realização dos potenciais humanos. Quando você vê uma árvore frondosa, há uma relação com essa ideia de potencial realizado. E acredito que o fruto também carrega esse significado: o alimento, o ato de buscar o alimento na árvore, de adubar, regar, cuidar, de se relacionar com as plantas. Acho que tudo isso tem essa ligação simbólica, até mesmo uma ligação de alma.