Inovações podem moldar a humanidade, diz Glaucia Guarcello

Para a pesquisadora e líder de inovação da Deloitte no Brasil Glaucia Guarcello, inovações incrementais e disruptivas mexem no modo como vivemos e devem ser usadas com propósitos sociais.

Por Redação em 14 de fevereiro de 2022 8 minutos de leitura

Glaucia Guarcello

 A líder de inovação e empreendimentos da Deloitte no Brasil Glaucia Guarcello define que inovação é o que resolve problemas reais da sociedade. “E isso pode ser através de processos, produtos ou tecnologias”. Para ela, há, hoje, soluções que, de fato, podem transformar a sociedade, desde que haja força de vontade social para isso. 

Nesta entrevista exclusiva ao Habitability, a especialista explica os tipos de inovação existentes, como eles têm sido aplicados e como devem evoluir em prol do futuro da humanidade. 

Como você define inovação?

Glaucia Guarcello – Como pesquisadora, tenho dezenas de definições de inovação. Mas, para mim, inovação é o que resolve problemas da sociedade. Hoje nós temos tecnologias para isso. No ano passado, por exemplo, houve o primeiro transplante de órgão de porco geneticamente modificado para um ser humano. O processo foi feito nos Estados Unidos e foi bem-sucedido, o que abre uma nova perspectiva para reduzir a fila de transplantes. Isso é inovação. Outras tecnologias, como neurociência, edição genética, inteligência artificial e blockchain também são, pois têm potencial para modificar a sociedade. Porém, essas tecnologias muitas vezes têm sido utilizadas de maneira egoísta.

Como assim?

Glaucia Guarcello – O mundo tem comida para alimentar a todos e é opção da sociedade alimentar alguns e outros não, por exemplo. O mundo também tem capacidade de fornecer vacina para todos e é opção nossa oferecer apenas para alguns. Então, apesar da tecnologia existir, a vontade do ser humano de reduzir as desigualdades é muito baixa. Tem uma frase que gosto muito: “o mundo não é ruim por causa das pessoas ruins, mas sim pelas pessoas boas que não fazem nada a respeito”. Digamos, portanto, que estamos no meio do caminho, pois, em termos tecnológicos, sim, temos como gerar muito impacto positivo, assim como o temos no aspecto do conhecimento também. Já em termos de “querência” (risos)’, nem tanto.

Empresas, governos e pessoas têm caminhos diferentes para o avanço social e de inovação?

Glaucia Guarcello – Há volumes de investimentos que só se viabilizam a nível governamental. Um  exemplo foi o desenvolvimento da internet. Se não fosse o ministério norte-americano investindo para torná-la viável em larga escala, não seria factível para pessoas ou um grupo empresarial tornar a tecnologia viável. Por outro lado, a Fundação Dom Cabral teve um estudo mostrando que o gap de investimentos do Brasil está mais relevante no setor privado do que no público. Junto a isso, é preciso pontuar que nada exclui o esforço individual. Ou seja, ações de governo, empresas e pessoas precisam caminhar paralelamente. Não é uma coisa ou outra. É uma coisa e outra. As nossas decisões do dia a dia, desde as pequenas, como comer carne, até as mais conscientes, como se predispor a inovar em uma corporação, podem transformar o mundo.

Como se classifica a inovação?

Glaucia Guarcello – Há classificações diferentes, mas algumas ainda estamos aprendendo. Uma delas é a inovação incremental, na qual são criados processos diferentes, usando materiais ou métodos diferentes, para entregar valor a um mercado que eu já atendo. Geralmente, isso gera melhoria contínua, melhoria de performance e retorno de investimento muito claro de curto prazo. As inovações incrementais são importantíssimas e, quantitativamente, são as mais realizadas, principalmente em indústrias que não estão na iminência de serem “disruptadas”. Porém, se ficar somente nas inovações incrementais, a empresa corre o risco de ser “disruptada” em algum momento. Um outro tipo de inovação, classificada por Clayton Christensen é a disruptiva. Em resumo, ela muda o paradigma do que já se faz, criando um novo modelo de negócios.

Há outros tipos de inovação?

Glaucia Guarcello – Por muitos anos separamos as inovações nesses dois blocos principais (incrementais e disruptivas) e, quando íamos estudar as características deste último, geralmente encontrávamos o histórico de algo baseado em tecnologia que gerou uma solução mais eficiente e escalável. Foi o que aconteceu com o Iphone, a câmera fotográfica digital e outras. Hoje, já estamos falando de um novo tipo de inovação, classificada como high end disruptive innovation. Isso significa não ter um ponto de partida sobre tecnologias já existentes, mas sim começar já lançando algo muito melhor em qualidade, para que o custo vá reduzindo conforme a escala. Isso mata a concorrência em determinado momento e representa uma disrupção diferente, sem fase deceptiva.

Você tem exemplos de high end disruptive innovation?

Glaucia Guarcello – A Tesla é um deles. Ela lançou logo de início um veículo muito melhor do que os concorrentes,com motor elétrico e potência de um carro de corrida. O preço está caindo cada vez mais para o usuário final e isso deve mudar o paradigma desse mercado. 

Como o Brasil está em termos de inovação?

Glaucia Guarcello – Precisamos avançar. Ocupamos a 57a posição, entre 132 países no ranking Global de Inovação de 2021. Somos um país que inova pouco, mas que tem um potencial imenso devido ao grande número de empreendedores, mesmo com a baixa eficiência com a qual eles costumam trabalhar. E isso não ocorre por falta de capacidade, pois o brasileiro, via de regra, tem muita inteligência e criatividade, mas por pouco investimento e disciplina para desenvolver soluções até o fim. Eu vi recentemente um neurocientista falando que o exoesqueleto, usado por um jovem paraplégico para chutar a bola na Copa do Mundo de 2014 foi originado por pesquisadores brasileiros, de um brilhantismo absurdo, super-pioneiro. O projeto foi feito aqui, mas quem está explorando comercialmente são os Estados Unidos. Então, nós temos o costume de fornecer matéria prima em vários sentidos e nos falta a cultura do desenvolvimento, o que nos faz perder oportunidades de inovação.

Como a inovação e as tecnologias são usadas para melhorar a urbanização?

Glaucia Guarcello – Temos um déficit habitacional enorme, uma desigualdade social enorme e diversas tecnologias que, se viabilizadas em escala, podem endereçar soluções para esses problemas. É o caso da robótica usada na construção civil, da impressão 3D e da melhor classificação de ativos com o uso de big data, deixando, por exemplo, de ter a habitação como ativo e passar a tê-la como serviço. Eu não trabalho com gestão pública, mas, independente de ser o país ou as empresas, investir na adoção de tecnologias que possam gerar o acesso a serviços básicos como saneamento, energia e moradia de maneira exponencial é um caminho factível, desde que haja interesse e investimento.

E como fomentar isso? 

Glaucia Guarcello – As tecnologias exponenciais crescem a um ritmo que nós nem sempre conseguimos compreender. Geralmente elas demandam investimentos gigantes no primeiro momento, mas que, quando adotadas em maior escala, dão retorno rápido. Para mapear 10% do DNA humano, por exemplo, investiram milhões de dólares e isso levou uma década para ser mais desenvolvido e aplicado em escala. A partir daí o retorno sobre o investimento, que poderia levar décadas, ocorreu muito rapidamente. Devemos ver isso com tecnologias que estão se tornando exponenciais agora. Alguns estudos indicam que, a partir de 2030, as máquinas terão capacidade cognitiva maior que o ser humano, por exemplo. Então como vamos viver? É preciso entender que a capacidade computacional tem crescido a um ritmo que não vamos conseguir acompanhar, e precisamos saber como lidar com isso.

Você avalia que tecnologias atuais podem tomar proporções fora do controle?

Glaucia Guarcello – Toda tecnologia é ferramenta. Eu não acredito que a inteligência artificial tomará conta da humanidade, que viveremos numa Matrix, por exemplo. A IA tem muito valor para ajudar o ser humano a tomar decisões. O Watson, da IBM, já faz diagnósticos melhores que os médicos. Isso é fato. Porém, fazer diagnóstico não é necessariamente a melhor decisão para todas as situações de saúde. Então, em vez de discutir se vamos deixar a inteligência artificial fazer diagnósticos ou não, precisamos discutir como a ferramenta pode melhorar a capacidade de diagnósticos para ajudar o trabalho do médico. Acredito que precisamos parar de competir com a máquina. Vamos deixar a máquina fazer o que ela é melhor e focar em ética, estratégia, empatia ou outras coisas que os humanos fazem melhor.

Nós temos aplicado tecnologias suficientemente para melhoria da infraestrutura necessária para o adensamento urbano que deve continuar ocorrendo nos próximos anos?

Glaucia Guarcello – Não no volume que precisamos. Temos a tecnologia disponível, mas em graus de maturidade diversos. Para aplicá-las em escala, precisamos de muito investimento. Não falo de tecnologias específicas para infraestrutura e urbanismo, mas sim de adaptações de tecnologias disruptivas, como big data, internet das coisas e inteligência artificial para esse mercado. Na parte de gestão para execução de obras, o BIM (Building information modeling) é um exemplo. A inteligência artificial, para melhorar as previsões de obras e cálculos estruturais também. A realidade aumentada tem sido importante para verificar a conformidade de projetos em execução, assim como o reconhecimento facial das equipes ajuda a verificar o uso de equipamentos de proteção individual (EPI), atualização de planos médicos e outras funções. A nuvem também é um destaque, por estar permitindo gestão mais eficaz de dados, inclusive dos gerados por drones, que têm se mostrado ótima solução para acompanhamentos de obras. 

As inovações estão modificando o modo como as pessoas vivem?

Glaucia Guarcello – Há várias mudanças de comportamento e a pandemia trouxe uma função diferente para moradia. Temos maior utilização da moradia para trabalhar e menor necessidade de deslocamento, o que também abriu a possibilidade do trabalho híbrido. As famílias estão sendo modificadas, com menor número de casamentos e menos filhos. Isso pode influenciar em toda a questão demográfica, inclusive na mobilidade, que pode ainda sofrer influência forte dos carros autônomos. Veja que, a priori, não é possível falar com exatidão o rumo que cada tecnologia irá tomar, até porque uma influencia no desenvolvimento e aplicação da outra. Se viabilizarem a impressão 3D de comida, por exemplo, muda toda a lógica da cadeia de suprimentos, o que mexe no planejamento urbano.

Então a inovação molda a infraestrutura?

Glaucia Guarcello – A infraestrutura acaba sendo o “alicerce” para tudo que a sociedade faz, inclusive para as inovações. Se tem uma sociedade descentralizando ou centralizando, ou um novo protocolo de saúde, a infraestrutura muda. Por isso, como indústria de base, a infraestrutura precisa ter atenção tanto à parte antropológica como à tecnológica e, a partir disso, fazer experimentações. É preciso experimentar para entender e, muitas vezes, gestões empresariais e governamentais agem pautadas em várias certezas e poucos cenários experimentados. Isso vai fazer cada vez menos sentido, pois não somos donos do domínio. Hoje, por exemplo, ninguém pode dizer quem são os concorrentes diretos. O que há são organizações e pessoas que tentam resolver um mesmo problema social, ou que colaboram igualmente para ele, ou que fornecem tecnologia semelhante, etc. Para o ambiente corporativo, isso significa imprevisibilidade. Portanto, falamos cada vez mais de um cenário de negócios mais acostumado a viver com a incerteza do que com a certeza. 

O que é viver com a incerteza?

Glaucia Guarcello – É Darwin: capacidade de se adaptar. O ponto é que a complexidade será cada vez mais presente no mundo dos negócios. Afinal, a tecnologia nunca será tão lenta quanto ela é hoje. Isso é um fato, e vai moldar a humanidade. Cabe a cada um agir de modo proativo ou reativo a ele. 

A tecnologia ajuda nessa adaptação?

Glaucia Guarcello – Sim. Veja o metaverso, que pode por exemplo nos dar uma imortalidade digital com a ideia de que a inteligência artificial vai aprender com cada um ao longo da vida para que, depois da morte, nossos avatares continuem vivendo para que os descendentes possam nos conhecer. Isso é uma “imortalidade digital”, ou algo do gênero. A edição genética também é outra promessa de disrupção para a humanidade. Inclusive, há quem diga que mexer com ela é brincar de ser Deus. Mas o ponto é que não há opção para que essas tecnologias venham a acontecer ou não. Elas estão acontecendo. Em 2018 nasceu o primeiro bebê geneticamente modificado, na China, por exemplo. O que deve ser discutido é a chance que temos, como humanidade, de democratizar o acesso e o conhecimento a essas tecnologias.

Quais são os caminhos para quem deseja ser profissional em inovação?

Glaucia Guarcello – Primeiro é preciso decidir entre inovar corporativamente, e aí escolher uma companhia, empreender ou atuar no governo. Dependendo da opção, o caminho é diferente. Em uma empresa, por exemplo, o caminho é se aproximar de áreas de inovação, se familiarizar com os projetos, ler e experimentar. É uma tarefa difícil, cercada de incertezas e cobranças, e é preciso gerenciar essas expectativas. Se for empreender, comece procurando problemas e, ao encontrá-los, crie forma de resolvê-los ou de melhorar as ações que já existem nesse sentido. Já para atuar no governo o caminho é o clássico concurso público para áreas relacionadas ao tema ou tentar se eleger.

Como educação, conheço inovadores formados em engenharia, administração, turismo… Enfim, não é uma área de um só destino, como ocorre com um advogado ou um neurologista, e ela requer profissionais dispostos à criatividade e ao experimento. Essa diversidade de formações para a inovação é super importante inclusive.