Permacultura urbana: a riqueza da simplicidade

É mais fácil do que parece: medidas como usar sacola reutilizável, reaproveitar água e usar transporte público são práticas de permacultura urbana.

Por Ana Cecília Panizza em 14 de agosto de 2024 8 minutos de leitura

permacultura urbana

As reservas subterrâneas de água estão se esgotando – e rapidamente. A primeira pesquisa sobre sobre o tema em escala global mostra que o nível dessas águas diminuiu 71% nos 1.693 sistemas aquíferos considerados pelo levantamento, entre 2000 e 2022. Realizado pela revista Nature em janeiro de 2024, o estudo avaliou milhares de medições de 170 mil poços em mais de 40 países. E pior: nas duas primeiras décadas do século 21, o declínio dos níveis das águas subterrâneas acelerou 30%, ultrapassando reduções registradas entre 1980 e 2000. Apesar desse cenário desafiador – talvez desanimador –, existem soluções simples e imediatas que podem ser adotadas diariamente pela população para preservar e reaproveitar esse recurso natural imprescindível para os seres vivos. Uma delas é o reaproveitamento da água, que é uma das ações possíveis da permacultura urbana. 

Cuidar da terra, cuidar das pessoas e fazer partilha justa do excedente são os três princípios desse sistema de produção, que busca suprir as necessidades humanas em harmonia com o meio ambiente. O modelo defende a necessidade de definir rotinas, hábitos e costumes em direção a uma vida mais simples e sustentável por meio da união de conhecimentos que preservem e diminuam o impacto das atividades humanas sobre o meio ambiente. 

Mundo de limites é a base da permacultura urbana 

permacultura urbana

O termo “permacultura” foi criado nos anos 1970 pelos cientistas australianos Bill Mollison e David Holmgren, após observarem o estilo de vida dos aborígenes do país e suas relações com o ambiente. A ideia era que a permacultura fosse alternativa para a forma de vida urbana e consumista: naquela época já se tinha receio de esgotamento de recursos naturais considerando o modo de vida vigente. Holmgren, em seu site, define permacultura como “sistema de design para uma vida resiliente e uso da terra com base em ética universal e princípios de design ecológico. Embora o foco principal da permacultura tenha sido o redesenho da jardinagem, agricultura, pecuária e silvicultura, a mesma ética e princípios se aplicam ao design de edifícios, ferramentas e tecnologia. Aplicar a ética e os princípios da permacultura em nossos jardins e casas inevitavelmente nos leva a redesenhar nossos modos de vida para que estejam mais em sintonia com os excedentes e limites locais. (…) O movimento é ativo nas comunidades e países mais privilegiados e mais destituídos. A permacultura pode ser a exportação mais significativa da Austrália para a humanidade que enfrenta um mundo de limites”. 

Criou-se, então, uma nova forma de ocupar as cidades, com menos agressão à natureza e mais respeito ao meio ambiente, garantindo a permanência segura da população humana no planeta. Como a própria palavra indica, “a permacultura trata da cultura do permanente, ou seja, há uma ênfase nos processos sustentáveis, que não necessitam de manutenção – ou que requerem baixa manutenção”, define Pérola Brocaneli, professora de arquitetura e paisagismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie e líder do grupo de pesquisa “A Paisagem da Cidade Sustentável: arquitetura, ambiente e tecnologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie”. 

Você faz permacultura urbana – e não sabia  

Permacultura urbana não é um sistema distante, utópico: qualquer pessoa pode adotar, nas cidades, práticas permaculturais simples no dia a dia, dentro e fora de casa. Muita gente já faz ou pode passar a adotá-la facilmente na rotina, como o já citado armazenamento e reaproveitamento de água da chuva. Isso pode ser feito com uso de um balde ou outro recipiente para receber a água das chuvas, que pode ser utilizada para lavagem de calçadas, pisos e carros, substituindo as mangueiras, cujo uso leva a um desperdício exagerado de água. Nas indústrias e prédios comerciais, pode ser usada para climatização, resfriamento de maquinários, lavagem industrial de roupas, lavagem de carros, ônibus e caminhões e limpeza industrial. Outra aplicação é a irrigação de plantas. 

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Uma solução de permacultura de fácil execução é reutilizar a chamada “água cinza” da máquina de lavar roupa, que representa um dos maiores gastos hídricos do ambiente doméstico. Existem técnicas e truques para reaproveitar essa água, como o uso de cisterna modular ou de tanque restaurado. É possível encontrar, no mercado, kits prontos de reúso, a exemplo de um galão (preferencialmente de material reciclável) para funcionar como cisterna, com uma torneira que permite a extração fácil da água armazenada. Porém, essa água deve ser utilizada em até, no máximo, 48 horas; caso contrário, pode exalar mau cheiro porque apresenta sabão, amaciante, restos de sujeira, cabelo e células mortas da pele, o que leva à proliferação de bactérias. Essa água também não pode ser usada para regar plantas em função dos produtos químicos nela presentes. 

Ainda mais comum nas cidades atualmente é usar sacolas reutilizáveis feitas de papel, plástico biodegradável ou pano na hora das compras – isso já é praticar permacultura urbana! Assim como consumir roupas e outros produtos de forma mais consciente; descartar pilhas e baterias em pontos de coleta; separar resíduo tecnológico para montagem de novos equipamentos; usar transporte menos poluente (carro elétrico, trólebus, moto elétrica) ou transportes coletivo. Mais uma ação simples de permacultura urbana é transformar casca de ovo, pó de café, casca de banana e outros resíduos orgânicos que produzimos em casa em adubo. 

Por sua vez, governos e empresas podem realizar ações mais complexas e abrangentes de permacultura urbana: construção de espaços verdes em pequenas áreas urbanas para fornecer alimentos; instalação de sistemas de coleta de água da chuva em construções; tratamento de esgoto; reaproveitamento do metano produzido em aterros sanitários para gerar biogás; incentivo e apoio a iniciativas de catadores e cooperativas de recicláveis; destinação de resíduos orgânicos para compostagem; reutilização de óleo para produção de sabão; e instalação de painéis fotovoltaicos. 

Contra a cultura do supérfluo 

Uma frente importante da permacultura urbana é o apoio à agricultura familiar, para que consumidores comprem frutas, legumes e hortaliças de produtores locais – que podem ser encontrados nas tradicionais feiras de bairros – em vez de recorrer a supermercados. Além de apoiar a economia regional, outra vantagem é que esses produtos têm menor teor de agrotóxicos. 

“Esses processos de produção de alimentos ou de outros itens podem ser estimulados por políticas públicas. No caso da produção de alimentos, a fim de promover maior segurança alimentar para a população, uma política pública pode estimular hortas urbanas e definir territórios para seu desenvolvimento e também destinar verba para sua implantação e manutenção. Por meio de editais e chamadas públicas é possível reunir os interessados e, assim, estruturar os espaços de produção”, avalia Pérola. “Políticas públicas que estimulem a permacultura urbana e eduquem a população para valorizar o que é necessário desestimulariam a cultura do supérfluo, que gera grande parte dos resíduos urbanos”, acrescenta a professora. 

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Novo modo de vida  

Mesmo sem política pública é possível implantar, em plena cidade de São Paulo, um projeto para remodelar o habitat urbano a partir dos princípios permaculturais, em sintonia com a natureza. É o Conjunto do Amanhã, projeto da arquiteta Renata da Silva Lima apresentado em 2023 como trabalho final de graduação do curso de Bacharel em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade São Judas Tadeu. Trata-se de uma proposta de assentamento popular urbano, ecológico e circular desenvolvido com base nos princípios da permacultura urbana, com os objetivos de alcançar o bem-estar e o conforto dos moradores, a eficiência energética e o manejo adequado dos elementos naturais no meio urbano. 

Pavimento do projeto Conjunto do Amanhã (Imagem: Divulgação)

Para isso, Renata explica que é preciso fomentar, no Conjunto do Amanhã, a agricultura de subsistência com hortas e pomares urbanos, além de comércio para moradores empreendedores e possível venda de excedentes orgânicos. O método – explica a arquiteta – procura abranger todas as maiores necessidades para a vida, ou seja: água, comida, abrigo, relações interpessoais e com o meio. 

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Renata estudou regiões da cidade de São Paulo e escolheu um terreno de 5,6 mil m² em uma área da Subprefeitura do Butantã, bairro Ferreira, pois “foi um dos que surgiu tardiamente entre os anos de 1950 e 1960, alocado em uma área que dispõe ainda hoje de potencialidades para preservação e recuperação ambiental. Por ser um projeto que visa iniciar uma interação agroecológica mais intensiva na cidade, trazendo um novo modo de viver, foi escolhida a região por já dispor previamente de algum caráter ambientalista, além de ser bem servida em acessos, contando com todos os serviços básicos em suas proximidades, bem como áreas verdes de grande porte para incrementar o lazer dos moradores”. A região também conta com meios de transporte público, com pontos de ônibus e estação de metrô, além de sistema cicloviário. 

A proposta de Renata para habitação no Conjunto do Amanhã inclui casas de até 75 m², com áreas de convívio e creche. Quanto à mobilidade, a ideia é implementar poucas vagas para carros e priorizar bicicletários a fim de estimular o transporte individual não poluente e o transporte coletivo, contando com a vantagem da proximidade da estação de metrô Vila Sônia. 

Soluções de permacultura urbana foram pensadas pela arquiteta para disponibilização de água e comida, como plantação de bananeiras, construção de jardim alagável e implantação de hortas e árvores frutíferas distribuídas por todo o terreno, além de horta na cobertura. 

Outra técnica de permacultura levantada por Renata para estar presente no assentamento é um sistema de máquina viva, que funciona para águas de esgoto bruto, passando-o por tanques que produzem ecogás. Este pode ser armazenado nessa fase do tratamento para uso residencial comum e, posteriormente, as estruturas de máquina viva são alocadas em galpões bem iluminados e terminam em tanques ou pequenos lagos com vida aquática, finalizando o processo de filtragem e criando um habitat próprio. Exemplo de boa aplicação no mundo é o Sechelt Water Resource Centre, em Budapeste, Hungria, onde a empresa Organica Water criou um sistema grande o suficiente para tratamento de resíduos de 300 mil habitantes. 

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Para gestão de resíduos sólidos no Conjunto do Amanhã, as práticas de permacultura recomendadas pelo estudo são compostagem ou minhocário (manejo de resíduos sólidos orgânicos); upcycling (reutilização de resíduos sólidos recicláveis), coleta seletiva e reciclagem. 

Conforto da existência 

“Para as cidades, a mudança de paradigmas urbanos que nos mantém fadados a continuar o afastamento da natureza de seus moradores, mantendo os elementos gradeados em parques de observação e pouco contato real; operando nossos resíduos de formas ineficientes, destrutivas, perpetuando as altas taxas de poluição e emissões. Mas especialmente olhar para a raiz do problema e questionar a forma que construímos essas cidades, sufocando rios, impermeabilizando solos e erguendo enormes torres que desconsideram seu entorno”, pontua Renata em seu projeto. Ela lembra que há uma variedade de técnicas que podem ser adotadas – novas, ancestrais ou pouco fomentadas no Brasil. 

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Seu trabalho, acadêmico, está no papel, mas guarda total conexão com o mundo em que vivemos, já que ela estudou e elencou soluções passíveis de viabilização em um terreno real, em uma cidade real, de modo que, segundo ela, os moradores tenham uma vida harmoniosa com a natureza sem precisar se distanciar das facilidades e oportunidades de uma metrópole. “Através da disseminação das práticas permaculturais e demais estratégias verdes (…) é possível promover uma vida mais saudável para o indivíduo e para o planeta, permitindo a longo prazo o conforto da existência das próximas gerações”, ressalta a criadora do Conjunto do Amanhã.