Precisamos construir lares, e não casas

O professor livre-docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Paulo Fonseca de Campos, é entusiasta da construção industrializada e explica que a habitabilidade está relacionada à identidade e ao senso de pertencimento dos moradores

Por Redação em 15 de outubro de 2021 8 minutos de leitura

Paulo Fonseca de Campos
Foto de Divulgação

Com um histórico profissional diverso, incluindo cargos públicos, empresas privadas, incursões no exterior e docência universitária, Paulo Fonseca de Campos considera ter formado uma visão ampla, e ao mesmo tempo singular, sobre a habitabilidade. Entusiasta da construção industrializada, ele defende que as tecnologias devem ser usadas não só para vencer o déficit quantitativo de moradias, mas também para construir espaços indentitários para os moradores. Caso contrário, defende ele, “teremos de arcar, em um futuro próximo, para além do problema dos sem teto, com o problema dos com teto”.

Nesta entrevista ao Habitability, o PHD em Arquitetura e Urbanismo traz referências sobre projetos de habitabilidade bem-sucedidos e mostra como a questão deve ser endereçada no mercado corporativo e no mundo acadêmico.

Como você se direcionou à pré-fabricação como solução contra o déficit habitacional?

Eu fiz uma escolha ainda no terceiro ano da faculdade: mexer com arquitetura industrializada. E a industrialização da construção tem relação direta com a habitação, pois, acredito – e não abro mão disso (risos) – que a industrialização da construção é a nossa maior “arma” para atacar o déficit habitacional do país. Não por menos, fui diretor técnico e um dos fundadores da Associação Brasileira da Construção Industrializada de Concreto (Abcic), entidade que congrega os pré-fabricadores do país e nasceu muito voltada ao segmento industrial, mas logo também calcou espaço no segmento habitacional. Até hoje, sinto que o setor da pré-fabricação não se expande mais porque faltam circunstâncias para aplicá-la de forma efetiva na arquitetura de habitação. Anos depois, atuando no Programa Brasileiro de Qualidade e Produtividade do Habitat (PBQP-H), do antigo Ministério das Cidades, onde fui membro do Comitê Nacional de Desenvolvimento Tecnológico da Habitação (CTECH), pude participar de várias comissões, entre as quais uma voltada justamente para a inovação de métodos construtivos, como a pré-fabricação.

A sua experiência também envolve a administração pública?

Sim. Tive uma experiência fantástica na administração pública da minha cidade natal, Santos, e também na capital paulista. Em Santos, eu fui subprefeito da região Noroeste da cidade entre 1993 e 1996. Na época, essa era a região que concentrava grande parte dos programas habitacionais. Um pouco antes, na antiga Empresa Municipal de Urbanização de São Paulo (Emurb), hoje renomeada SPUrbanismo, implantei e atuei no CEDEC-Centro de Desenvolvimento de Equipamentos Urbanos e Comunitários, uma fábrica para equipamentos sociais e  infraestrutura. Trabalhei também na iniciativa privada por muito tempo e sempre com inovação. Fui diretor de uma empresa europeia focada em GFRC (Glass Fiber Reinforced Concrete ou concreto reforçado com fibra de vidro). Ingressei como docente na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP) em 2008. Depois vivi um tempo fora do país, já como acadêmico e pesquisador, na Inglaterra (2014-2015) e mais recentemente em Portugal (2018-2019), sempre estudando a questão da habitação e da pré-fabricação. Enfim, essa experiência me permitiu formar uma visão mais holística sobre o tema, que me levou a entender o âmago da questão: para vencer o déficit, tem de haver, necessariamente, qualidade arquitetônica e urbanística  na habitação.

O que você classifica como qualidade na habitação?

Os nossos critérios de enfrentamento ao déficit habitacional, até hoje, foram pautados por uma postura quantitativa. Mas isso não é o suficiente. É preciso elaborar também a habitabilidade, que está vinculada às relações simbólico-afetivas que o morador cria com o lar e o bairro onde vive. Hoje, está mais do que claro que as pessoas não querem só um teto para viver. Elas desejam um lar.

E como a região, o bairro, se integra a esse conceito?

Como bairro, eu me refiro ao conceito de lugar, ou seja, de um território onde o indivíduo consegue criar as mesmas relações simbólicas e afetivas. Este contexto, hoje, é imprescindível para os novos empreendimentos de habitação popular. Caso contrário, teremos de, além de atacar o problema das pessoas sem teto (déficit habitacional), os problemas das pessoas com teto, pois elas não estarão satisfeitas com os lugares onde vivem.

A falta de identidade provoca outros distúrbios urbanos?

Evidentemente. Quando se cria programas habitacionais com viés apenas quantitativo e produtivista, se atende ao problema imediato da pessoa, com um teto para abrigá-la. Mas logo que ela pode, se muda dali ou começa a adaptar/personalizar a unidade para melhor atender o seu cotidiano. Isso, multiplicado às centenas e aos milhares em conjuntos habitacionais, resulta em verdadeiros Frankensteins urbanísticos, ainda que eu reconheça a legitimidade desse ato quase desesperado em busca da identidade e do pertencimento

A usabilidade do imóvel também está relacionada a essa questão de pertencimento?

Sim e é por isso que a arquitetura não deve resolver apenas o invólucro da habitação popular. É preciso considerar o design de interiores também. E não estou falando de decoração, mas sim de ergonomia  e usabilidade do mobiliário interno que guarnece a habitação. É preciso pensar em como as pessoas ocuparão aqueles espaços. No Reino Unido, como exemplo positivo, foi criado em 1961 o The Parker Morris Committee, ou Comitê Parker Morris, que elaborou um relatório a respeito de padrões de ocupação dos espaços internos em habitações públicas, intitulado Homes for Today and Tomorrow e cuja influência se faz sentir até hoje.  O comitê recebeu esse nome por ter sido liderado por Sir Parker Morris.

Em tempos atuais, a pandemia trouxe esse aspecto positivo, com a devida licença poética para o uso da palavra positivo, pois evidenciou que as pessoas demandam novos  modos de viver e padrões de moradia. Talvez por isso estejamos vendo as aspirações por projetos participativos ressurgirem com tanta força na Europa, onde, cada vez mais, se fala em cocriação e cogovernança como valores inalienáveis na gestão das cidades.

Muitos perceberam também que, o que se fazia em um espaço de 60 ou 70 metros quadrados, não se adequa mais ao “novo normal”. Trocando em miúdos, digo que não basta pegar 70m² e dividir em três dormitórios minúsculos, onde nos armários sequer cabem os cabides. Isso vai gerar moradores iludidos, que pouco depois vão mudar ou adaptar a construção.

Essas adaptações também são perigosas do ponto de vista de integridade física e das próprias construções, não?

São, e basta lembrarmos dos desabamentos que ocorreram no centro do Rio de Janeiro em 2012. Isso, inclusive, nos estimulou a produzir e publicar a Norma de Reformas, que propus como superintendente do Comitê Brasileiro da Construção da Construção Civil (CB-02) da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) à época, logo depois desses tristes episódios no Rio. Também tive a felicidade de participar ativamente da criação da Norma Brasileira de Desempenho de Edificações (NBR 15.575), como membro da Comissão de Estudo que elaborou a norma, publicada em 2013, também durante a minha gestão à frente do CB-02. Essa norma, até hoje, serve de base para a construção de moradias de qualidade e estimula a inovação também no sentido de adoção dos métodos construtivos mais eficazes.

Como o mercado deve usar a inovação em métodos construtivos mais eficazes?

Desde a forma de projetar. Atualmente, é possível criar algoritmos generativos para auxiliar no desenvolvimento de projetos habitacionais em larga escala e utilizá-los para gerar uma série de alternativas de edifícios ou residências. Os dados de entrada dessa modelagem podem ser tomados diretamente através de interações com os usuários, gerando um  padrão com boa qualidade de dados de entrada, que depois vão propiciar centenas de possibilidades de construção, igualmente, de qualidade. Isso é algo que venho trabalhando com os meus orientandos na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP.

Há modelos de inclusão habitacional de outros países que podem nos inspirar?

Sim. Nas incursões pela Europa eu estudei isso. Na Inglaterra, por exemplo, apesar dos   inúmeros exemplos de construções em larga escala para  habitação social no Segundo Pós-Guerra, apenas poucos se mantiveram ao longo do tempo e esses poucos têm em comum a criação de uma forte relação dos moradores com o lugar, o que resultou em espaços preservados. E são construções muitas vezes pré-fabricadas, de habitações multifamiliares.

Mas é preciso perceber também a força da questão cultural nos modos de habitar dos ingleses, e de como as habitações do tipo terraced houses (casas dispostas em renque) acabam por ter uma forte componente indentitária por trás dessa aparente preferência, que ultrapassa o mero gosto e se converte em uma determinante do imaginário social a ser considerada na fase de projeto. Por outro lado, houve também diversas construções pré-fabricadas que foram, e seguem sendo, demolidas de forma controlada desde o início dos anos 1980 por não terem estabelecido esse laço de pertencimento com seus moradores. Lições europeias a serem aprendidas por nós!

Nós tivemos modelos de inclusão habitacional com vieses de pertencimento no Brasil?

Sim. Com o Minha Casa Minha Vida tivemos algumas incursões e tentativas, mas isso ainda foi muito tímido. Entendo que atacamos a questão quantitativa e o desempenho das edificações, este último como um primeiro passo importante, e quando o PBQP-H começava a se preparar para discutir a questão da qualidade da arquitetura e do urbanismo, que é o passo seguinte, e mais difícil, houve uma paralisação.

E como podemos avançar na habitabilidade daqui em diante?

Agora, precisamos de um programa de inclusão habitacional bem concebido, enquanto parte de uma política mais ampla, que possa colocar de pé um projeto com bons conceitos de arquitetura e urbanismo e que seja reproduzido em larga escala. Temos ferramentas para tal, mas isso exige investimento e política de estado. Avalio que a principal ferramenta está pronta, que é a Norma de Desempenho de Edificações (ABNT/NBR-15575), pela qual as exigências mínimas quanto a estanqueidade, segurança estrutural, segurança ao fogo, confortos térmico e acústico, entre outras, estão contempladas. Agora, precisamos evoluir com investimentos em desenvolvimento de produtos, de modo a que as empresas de construção para habitações populares considerem tanto o invólucro quanto a conexão do empreendimento com a cidade e todas as questões implícitas de habitabilidade.

Com a pandemia, que acelerou o home office, essa dimensão ganhou uma nova roupagem, pois é preciso prever espaços confortáveis para as pessoas trabalharem e estudarem também. Essas funções passaram a ser absorvidas pelo espaço doméstico e precisam passar a ser consideradas nos projetos, inclusive para a dita habitação popular.

Nas habitações, portanto, tem de se pensar nos espaços privados e na sua forma de ocupação segundo esses novos padrões, nos espaços de transição ou semiprivados (semipúblicos) e nos espaços públicos. E esse foi um ponto de questionamento frequente contra o Minha Casa Minha Vida, mesmo ponderando que, de alguma maneira, ele atacou o déficit habitacional e estava prevendo algum nível de habitabilidade. Mas o programa fez muitos conjuntos habitacionais em áreas sem infraestrutura adequada, distantes das cidades. Enfim, empreendimentos que resultaram naquilo que eu chamo  de “não-cidades” ou não lugares, que podem, até mesmo, estar conectados pela internet e demais infraestruturas, mas que não oferecem ambientes de sociabilidade e locais bons de permanecer.

E não adianta falar que é um condomínio-clube de baixa renda, isso não resolve, é retórica vazia. Aliás, até os condomínios-clubes são questionáveis desde Jane Jacobs, nos anos 1960. E ela não era urbanista e nem arquiteta, mas sim uma jornalista que, pelo poder quase cirúrgico de suas observações e reflexões, sobretudo como cidadã consciente, passou a questionar ativamente esse conceito de moradia [livro Morte e Vida das Grandes Cidades Americanas].

A construção industrializada oferece a maleabilidade necessária para projetos com maiores conceitos de habitabilidade, mesmo quando aplicada em obras menores, de poucas unidades habitacionais?

Primeiro: a visão de que a construção industrializada é engessada é antiquada. E fazemos um esforço permanente para desmistificar isso já há décadas. A minha tese de livre-docência, por exemplo, foi justificando isso. Os grandes sistemas que acabaram culminando nessa visão da construção industrializada ocorreram entre 1950 a 1970, na Europa. No final desse período, as pessoas começaram a rechaçar isso e, já a partir dos anos 1980, houve grande questionamento.

Na França, ainda em 1968 – quase junto com o movimento É Proibido Proibir – um movimento de “Não às Cidades Dormitórios” surgiu em parte da sociedade como um instrumento contra grandes conjuntos habitacionais. Isso resultou em uma lei, na qual passou a só se permitir a construção de conjuntos com até 300 unidades. Mesmo essa lei não inviabilizou a construção industrializada. Pelo contrário, ela continuou sendo adotada como solução, e só teve de se adaptar.

Como a academia está endereçando a questão da habitabilidade atualmente?

Eu sou docente da FAU desde 2008, onde assumi as disciplinas de Arquitetura e Urbanismo e Design vinculadas ao tema da industrialização da construção. Agora, em 2021, eu me aposentei da graduação e fiquei só na pós-graduação, onde sigo me dedicando aos temas da arquitetura industrializada e do projeto de produto para o edifício e cidade. A junção dessas disciplinas permite um olhar mais amplo para prover qualidade de arquitetura e design na habitação, culminando ainda em projetos de arquitetura para cidades, o que inclui o contexto urbano.

A cidade de hoje é complexa e possui uma configuração de multicamadas ou layers, incluindo a camada invisível de dados que flutua sobre o ambiente físico e a que chamamos de Cyberspace ou Ciberespaço. Então, quem projeta a cidade e seus edifícios tem que, necessariamente, levar em conta essa complexidade. Sobre o que é tangível nas cidades, há essa outra camada invisível de dados, carregada de informações. Na medida que se pensa nisso, é possível incorporar o Ciberespaço aos projetos arquitetônicos, quase que como uma forma de realidade aumentada para adequar as construções ainda mais aos cotidianos das pessoas. Isso não é futurismo, é conhecimento conquistado, disponível e com custo acessível. Mas o mercado precisa estar atento para assimilar esse tipo de cultura, que provê conhecimento às  edificações e às cidades.

Então o senhor acredita que a construção civil caminha para prover experiências e não somente habitações?

Exatamente. Assim como no setor de tecnologia, no campo do design nós usamos a expressão UX (User Experience) para definir o que se deseja proporcionar ao usuário, e que ultrapassa pura e simplesmente o produto em si. Então, a tendência é que não falemos mais com arquitetos e designers sobre produtos, mas sim sobre experiências positivas a serem oferecidas para os usuários. E isso já é condição sine qua non em várias indústrias, como a automotiva, e será também para a habitabilidade. Afinal, nós, como moradores, desejamos ser encantados e acolhidos, e não queremos que uma construtora nos venda um apartamento e depois vá embora.