ESG tem que monetizar a salvação do mundo, diz Erlana Castro

Em entrevista ao Habitability, a especialista em estratégia criativa, SXSW e Cannes Lions Speaker, professora Erlana Castro traz uma abordagem pragmática da revolução ESG, a partir da criatividade e da inovação.

Por Paula Caires em 4 de junho de 2024 11 minutos de leitura

erlana de castro
Erlana de Castro (Foto: Divulgação)

O sotaque não deixa dúvidas: Erlana Castro saiu de Salvador, há mais de 24 anos, mas Salvador não saiu dela. E como ela diz, nem pode. “Esse sotaque é uma espécie de defesa da minha identidade cultural. Falo outros idiomas, mas todos eles tem o meu sotaque”. 

Como speaker internacional e professora de executivos, a cadência tipicamente baiana ganha em sua oratória – assertiva e objetiva – um caráter estratégico: levar o ouvinte à reflexão e ajudar a fazer o “quadrado descer redondo”. Especialista em estratégia criativa, é assim que ela explora a criatividade e a inovação como instrumentos essenciais para a transformação disruptiva do modelo econômico global e na busca de oportunidades de criar valor extraordinário.

É também com esse jeito suave, ponderado, mas certeiro, que ela busca contribuir para essa transformação de dentro pra fora. “Estamos no capitalismo e não tem como, nem temos tempo, neste exato momento, de arrumar uma outra ideia melhor”. Então, afirma ela, “é sobre monetizar a salvação do mundo e entender que ser um negócio bom é um bom negócio”.

Fundadora, animadora e catalisadora do #ESGpraJÁ – uma rede independente de profissionais a serviço de acelerar criativamente a virada ESG de negócios, marcas e projetos – ela compartilha na entrevista a seguir para o Habitability sua visão sobre a revolução ESG, os desafios que a cercam e os elementos que a tornam tão factível quanto desejada e necessária.

“Criatividade + consciência é o binômio do momento”. O que você quer dizer com essa sua colocação?

Erlana Castro: é interessante você questionar por que certas coisas parecem estar em antagonismo, quando na verdade não deveriam estar. São conceitos que  podem e devem coexistir harmoniosamente para que possamos construir um futuro melhor. O antagonismo surge quando observamos a criatividade no contexto do capitalismo, onde ela é utilizada para a criação de valor dentro desse sistema que habitamos, reproduzimos e mantemos. O conflito aparece precisamente nesse contexto, onde a estrutura da nossa sociedade coloca a criatividade a serviço de um sistema que muitas vezes não considerar o bem comum, estando apenas a serviço do capital e do curto prazo. 

Estamos vivendo um momento em que a reimaginação do mundo é crucial. Precisamos começar a revisitar a ideia de  setores econômicos inteiros, e também  pequenos detalhes do nosso dia a dia, como a nossa linguagem e nossas rotinas cotidianas. A chave para essa nova fase de (RE)imaginação é a consciência. Não se trata de encontrar uma saída simples para nossos problemas. Precisamos criar um novo futuro que promova o bem comum, a prosperidade da nossa espécie e a estabilização do nosso planeta. Isso exige que sejamos responsáveis e conscientes de tudo o que criamos e imaginamos daqui para frente.

Quais são os desafios para as organizações realizarem essa virada de chave?

erlana de castro

Erlana Castro: a chave para promover uma mudança inicial de consciência no ambiente de negócios é reconhecer o fator contextual. A chegada do imperativo ESG, por exemplo, não surgiu simplesmente porque de repente nos tornamos mais conscientes. Ele surgiu porque o sistema compreendeu a necessidade de assegurar um futuro. Portanto, é   fundamental perceber que essa mudança é impulsionada pela compreensão de que a sustentabilidade e a responsabilidade social são essenciais para o futuro, e não apenas por uma súbita conscientização.

Sem um futuro, como é possível criar e maximizar valor dentro do capitalismo? A maximização de valor depende do tempo. Por outro lado, quando você vende um negócio, o valuation  é também uma função da capacidade de criação de valor futuro que ele possui. Se o seu negócio não tiver futuro, qual será o seu valor presente?

Então, podemos dizer que essa é uma consciência despertada à força, de certa forma?

Erlana Castro: o capitalismo é estrutural em nossa sociedade e o ESG pode ser visto como uma evolução dele. Nos últimos quatro anos, tenho investigado os aspectos criativos do ESG. Desde 2019, uma grande pergunta permanece em minha mente: o que impulsiona essa mudança? Larry Fink, uma voz influente do capital, é o fundador e gestor da BlackRock, o maior fundo de investimento do mundo. A importância de Fink é enorme, pois ele administra uma quantia impressionante de trilhões de dólares, ou seja, a BlackRock detém capital nas principais empresas globais. Larry Fink é, portanto, uma influência direta sobre os líderes empresariais do mundo. Sua posição de poder na sociedade significa que suas declarações não são meras opiniões, mas moldam a estratégia de empresas. Naquela época, Fink lançou uma máxima – “risco climático é risco de investimento” – anunciando que só investiria em empresas que demonstrassem como estavam levando em conta os riscos climáticos e repensando seus modelos de negócios. Essa perspectiva é fundamental, pois apenas os negócios que também produzem futuros têm chances reais de prosperar.  É uma lógica simples, mas impactante: sem um olhar para o futuro, o sucesso é incerto. Ou seja #ESGpraJá.

Larry Fink (Foto: Reprodução/Bloomberg/New York Post)

Qual é o desafio central das organizações para equilibrar as necessidades imediatas com a responsabilidade com o futuro? E, diante da inovação, como vencer as barreiras para implementar mudanças significativas em direção a uma abordagem mais sustentável e orientada para o futuro? 

Erlana Castro: primeiramente, precisamos reconhecer que o ESG é  um chamado do capital, especialmente considerando que estamos inseridos no contexto do capitalismo. Diante dessa realidade, a resolução dos desafios que enfrentamos passa por dentro das estruturas do próprio sistema.

Entender a lógica do capitalismo é fundamental, então, para provocar as mudanças de “dentro para fora”?

Erlana Castro: Não podemos, neste exato momento, dedicar esforços para questionar fundamentalmente essa estrutura ou propor alternativas, dada a urgência e a complexidade da situação. Isso adiciona um desafio criativo extra ao processo. É uma situação ambígua, com seus lados positivos e negativos. Precisamos entender isso para ajustar nossa abordagem.

Dentro do contexto do capitalismo, o único “deus” é o Mercado. Essa é a crença central que governa esse sistema. O Mercado é o elemento dominante e influente dentro do capitalismo. Mas existem o mercado de consumo, o mercado de capitais e o mercado de trabalho. Todos eles são fundamentais para qualquer empreendimento. Sem esses três elementos, um negócio simplesmente não existe. Se não houver pessoas dispostas a trabalhar para você, clientes interessados em comprar seus produtos e investidores dispostos a colocar dinheiro em sua empresa, você estará em uma posição inexistente. Portanto, é crucial alinhar esses três aspectos do Mercado e direcioná-los para um objetivo comum: ESG. 

Como você avalia a participação desses mercados na virada ESG?

Erlana Castro: como sociedade de consumo, estamos desarticulados e desconectados em muitos aspectos. Essa dinâmica ainda tem muito potencial para se desenvolver e acredito que virá dela a pressão que será a próxima grande motivação para a mudança das empresas, pois ainda não vimos seu pleno impacto.

Além disso, o mercado de trabalho também desempenha um papel significativo como outro “deus” influente. Ao observarmos sua evolução recente, podemos notar transformações significativas e direcionamentos claros. Há discussões essenciais sobre temas como felicidade, propósito, equidade  e inclusão. Podemos prever, que até 2030, essas transformações em todos os três mercados ganharão uma maior sincronia. Diversas tendências e forças estão convergindo para transformar profundamente os negócios.

Como podemos promover uma convergência mais eficaz entre os diferentes mercados para impulsionar a implementação e a escalabilidade de iniciativas inovadoras e criativas que visam criar sistemas mais inteligentes com um menor impacto negativo? E como criar essa demanda sem encarecer os produtos, tornando-os mais acessíveis para os consumidores?

Erlana Castro: muitas vezes, aqueles que estão nas posições de tomada de decisão nas organizações não percebem que o ESG é um chamado do capital. Surge então a questão: quem paga a conta do ESG? Sim, por que para muitos de nós, é pressuposto que o consumidor deva arcar com os custos do desenvolvimento sustentável, mas há inúmeros dados que contam que o consumidor não quer pagar essa conta. Devemos refletir sobre as externalidades negativas do negócio. Se esses custos forem integralmente refletidos em suas contas econômicas, como isso afetaria suas margens de lucro? A rentabilidade atual de muitas empresas é possibilitada pelo fato de que alguém está pagando pelas externalidades que elas geram. Por que você acha que não é necessário arcar com a correção dessas externalidades? Porque espera que a sociedade continue a arcar com esses custos em seu lugar?

O consumidor, naturalmente, não vai pagar por algo apenas porque é “verde” ou “sustentável”. Ele vai pagar por um produto que seja melhor, mais eficiente e que traga resultados significativos. O consumidor está disposto a investir em algo que seja conveniente e que atenda às suas necessidades. Ele pode estar inclinado a escolher produtos que ofereçam benefícios ecológicos ou sociais, mas não significa que esteja disposto a pagar um preço significativamente mais alto por isso. As empresas precisam entender essa dinâmica, sair da zona de conforto e aprender a oferecer produtos que sejam sustentáveis ​​sem comprometer a competitividade, a relevância e a conveniência.

Como suas ferramentas ajudam as empresas a superar esses desafios?

Erlana de Castro: são duas ferramentas que desenvolvi, ambas em comunidade de prática, catalisando a inteligência coletiva. Essas ferramentas são essenciais para orientar os modelos de negócios, como  uma espécie de “Waze”. A primeira é o “Radar da Antifragilidade”, apresentado no SXSW, que identifica e descreve os oito fatores disruptivos mais significativos no contexto atual dos negócios. 

Essa ferramenta visa aumentar a consciência das empresas em relação ao ambiente em que operam, proporcionando uma compreensão mais clara do contexto em que estão inseridas. Muitas empresas carecem de uma compreensão profunda do contexto em que operam e essa pobreza contextual é um enorme fator de risco.

Radar da Antifragilidade (Imagem extraída do vídeo Apresentação – Radar da Antifragilidade)

É uma ferramenta que conecta a empresa ao contexto externo a partir dos desafios?

Erlana Castro: essa ferramenta não apenas fornece uma visão das oito dimensões disruptivas que estão atualmente em jogo. Ela permite que você se posicione em meio a essas conversas inescapáveis do momento. Você poderá compreender melhor em que medida seu negócio está (ou não) dialogando com o contexto. 

O primeiro passo é adquirir essa consciência e entender sua posição em cada uma dessas discussões, para compreender suas fragilidades, bem como o conjunto de sua antifragilidade. Em seguida, é preciso revisitar o seu modelo de negócio, pois é aí que tudo começa. Não se trata de uma solução  periférica; é essencial reexaminar como você cria, distribui e captura valor. Aqui entra a segunda ferramenta: o Business Model (RE)Generation Canvas ou Canvas ESG. 

É essencial analisar as dimensões do negócio para adaptá-lo ao contexto atual e às discussões em curso. Recomenda-se reservar tempo de qualidade para entender o contexto, as forças em operação e sua velocidade, intensidade e direção. Depois, revisitar profundamente o modelo de negócio, mesmo que isso envolva conversas desconfortáveis. O desconforto deve ser a sua nova zona de conforto e isso aumentará as chances de sucesso a partir de 2025.

Como você enxerga a importância de uma governança específica dentro das organizações para fomentar espaços de diálogo e estruturar discussões, e como isso está relacionado a uma estrutura que possibilita reflexões e até mesmo questionamentos desconfortáveis, como mencionou anteriormente, contribuindo para uma cultura de autocrítica e melhoria contínua?

Erlana de Castro (Foto: Divulgação)

Erlana Castro: há uma maneira de percebermos que estamos em um momento de disrupção, o que é sintomático e fácil de identificar. É quando a simetria entre o passado recente e o futuro próximo simplesmente desaparece. Nas empresas, para discutir os próximos cinco anos, a primeira coisa que fazíamos era olhar os últimos cinco anos. Isso se baseava na premissa de que havia uma simetria entre o passado recente e o futuro próximo. Entretanto, perceber que essa simetria desaparece é um sintoma do ponto  de disrupção. Na verdade, essa simetria nunca esteve presente; ela é uma abstração. 

É interessante como essa pretensa simetria influencia nossas decisões, muitas vezes nos levando a adotar a postura de “sempre foi assim, deixa como está”, sem considerar uma avaliação verdadeira do que está acontecendo ao nosso redor e do que realmente precisamos fazer para tomar a melhor decisão. Esse padrão de pensamento é profundamente arraigado, e precisamos reconhecer que muitas vezes agimos como se estivéssemos programados para isso. No entanto, diante dos desafios atuais, como a crise climática, é crucial questionarmos: qual é o “time” que está realmente “ganhando” nesse contexto?

Como o ESG se insere nesse contexto ao propor diálogos e impulsionar mudanças a partir de uma ruptura cultural?

Erlana Castro: o ESG propõe uma abordagem desafiadora ao questionar as bases do capitalismo. Qual é, afinal, a essência criativa do  capitalismo? Como as empresas operam sob essa ideologia? Como podemos concretizar a proposta de criar valor extraordinário? Qual é o processo prático para fazer isso acontecer? Em última análise, como o ESG maximiza valor? O ESG traz para o negócio uma nova equação para criação de valor extraordinário. Foi isso o que me gerou inquietação e impulsionou a formação do grupo de estudos avançados #ESGpraJÁ. O ESG também propõe  uma nova equação criativa para as  marcas, e isso é especialmente importante  porque o valor intangível responde pela maior parte do valuation das empresas.

Reprodução/ Site do grupo #ESGpraJÁ

Que insights você já pôde extrair das discussões dentro da comunidade de prática do #ESGpraJá?

Erlana Castro: um dos insights é que, no final das contas, o capitalismo é estrutural e precisamos encontrar soluções dentro dessa estrutura. Não é que o capitalismo seja uma ideia ruim, na verdade, é uma ideia brilhante, mas com alguns problemas sérios de design. Por exemplo, não há teto para a concentração de riqueza, o que é claramente um erro de design. Recentemente, saiu um relatório da Oxfam que aponta que um único indivíduo brasileiro possui uma riqueza equivalente à de 107 milhões de brasileiros mais pobres. Isso mostra como uma única pessoa pode deter uma quantidade desproporcional de recursos. Essa é uma ideia sem futuro e já estamos cientes disso. Tanto que a sociedade atualmente está debatendo sobre a questão dos bilionários, que – em minha opinião –  resultam de um erro de design.  

Existe outro problema de design que precisamos corrigir, que é a ausência de um piso para a miséria humana. Atualmente, há uma discussão em curso no cenário econômico global sobre a implementação de uma renda mínima universal por meio de nossos dados pessoais, que hoje estão por aí, de graça. Isso indica que estamos realmente repensando, reformulando e encontrando um novo equilíbrio para o sistema. Como empresas, temos um papel fundamental nesse processo, já que somos os agentes responsáveis por operacionalizar a relação entre o capital e a sociedade.

Então, é essa entidade, a empresa, que cumpre essa promessa do ESG. É fundamental que as empresas compreendam isso e é justamente a capacidade de monetizar a salvação do mundo que nos traz esperança, neste momento.

Como você vê o futuro do capitalismo e dos negócios?

Erlana Castro: a PwC realiza uma pesquisa anual sobre as expectativas e perspectivas das principais empresas do mundo. Essa pesquisa possui uma base muito representativa, da qual o Brasil também faz parte. No ano passado, 40% dos CEOs entrevistados afirmaram que seus negócios não teriam viabilidade econômica nos próximos 10 anos. Este ano, o número aumentou para 45%. Isso pode ser corroborado com o relatório de riscos do Fórum Econômico Mundial. Ao analisar o impacto temporal dos fatores de risco, percebe-se uma concentração dos eventos entre 2026 e 2030. Se consolidarmos isso com a pesquisa da PwC, podemos imaginar o Tsunami contratado. Até 2030, cerca de metade dos negócios existentes atualmente podem desaparecer.

Nós, enquanto comunidade de negócios e também parte da sociedade de consumo, juntamente com os colegas do mercado de capitais, temos a responsabilidade de evoluir o sistema existente. O ESG é uma narrativa que nos impulsiona a fazer essa transição para um novo modelo de capitalismo, o chamado capitalismo de stakeholder, no qual capturar valor requer criar valor para todos os públicos envolvidos e onde o planeta é um stakeholder soberano. Daqui a 10 anos, espero que essa transição esteja solidificada e que estejamos avançando para respostas e resultados mais sofisticados. No recente filme publicitário da Apple, intitulado “Mother Nature”, a Natureza estava sentada na cabeceira da mesa. Óbvio que está. Agora, vê quem quer.  

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