Se o mundo é figital, a cidade é uma rede

O professor PHD em Ciências da Computação e sócio-fundador da The Digital Strategy Company, Silvio Meira, reflete sobre a noção de tempo (presentismo), a convergência físico, digital e social (figital) e sobre a necessidade de redesenho das cidades.

Por Redação em 14 de outubro de 2021 28 minutos de leitura

figital

O passado, o presente e o futuro formam a nossa noção de tempo. E somos os seres vivos com a melhor noção de tempo que conhecemos. Privilégio da natureza? Talvez. Ou, melhor: provável, mas não significa que o usamos a contento. Para o professor Silvio Meira, PHD em Ciências da Computação e cientista-chefe da The Digital Strategy Company – entre outras ocupações, com destaques para as presenças em conselhos administrativos de grandes companhias – “o presente é uma máquina de moer futuros”.

O presentismo é um dos conceitos criados por Silvio e abordados nesta entrevista. O figital, que ele não criou mas tem popularizado e amplificado raciocínio sobre, também é explicado por ele, que ainda faz uma reflexão ampla sobre como as cidades devem ser redesenhadas com foco nas pessoas e do porquê a inteligência artificial que conhecemos hoje não é verdadeiramente inteligente.

O senhor tem falado sobre o presentismo, e contra ele sugere o presente estendido. O que isto significa?

Vamos pensar em uma máquina de moer cana. Ela é um moinho, bem pequeno. Tem dois rolos e assim você bota a cana para moer. O futuro é a cana. O presente é o moinho, que consome futuros e imediatamente cria passados, que são os bagaços.

Então todas as performances que estamos executando agora, como esta entrevista aqui, vieram do passado, não do futuro. A gente sabe fazer a entrevista [tem a experiência do passado], tem o material necessário e um bocado de outras coisas disponíveis. Outra situação é olharmos do futuro para o presente e imaginarmos como o presente poderia ser no futuro. Nós não conseguimos levar o presente para o futuro, porque o presente, na prática, é o que não existe. O presente é só uma máquina de consumir possíveis futuros e transformá-los imediatamente em passado, como o moinho de cana.

O presente é tão estreito quanto a nossa atenção. A pessoa fala: “olha, eu estou vivendo no presente”. É mentira! É absolutamente mentira! Ela vive numa combinação de passado, presente e futuro, onde o presente, que a gente está vivendo agora, é irrepetível, é inimaginável e se acaba a cada segundo que passa. Estamos em um fluxo e o presente está se acabando o tempo todo. Se olharmos assim, é desesperador, né? E não só o presente está se acabando o tempo todo, como você também está. A cada dia, a cada segundo, você está mais perto de morrer. Então o presente passando significa que você está morrendo. Você e eu também… e todo mundo.

Então o presente estendido e o presentismo são conceitos de tempo?

O passado e o futuro são criados pelo tempo. E o tempo que cria o passado e o futuro é quem forma a nossa noção de tempo. Pouquíssimos animais têm uma noção de tempo, o que permite fazer planos. Nós temos. E uma das capacidades disso é o pensamento sobre o futuro. Inclusive o futuro de longo prazo. A ficção científica é um exemplo que, no fundo, nada mais é do que uma mentira, potencialmente realizável com base em tecnologia. Então, alguém diz: “nós vamos encontrar uma forma de trafegar na galáxia, de um ponto a outro instantaneamente”. Imagine que isso fosse possível? Vamos imaginar uma possibilidade que torne isso viável. Vamos pensar no entrelaçamento quântico. Temos aqui [nas mãos] dois mouses. Imagine que são duas partículas que eu consegui entrelaçar. Aí, eu as separo. Mas como estão entrelaçadas quanticamente, elas continuam conectadas, independentemente de onde estiverem no universo. Eu mando uma para Marte e deixo a outra aqui e tudo que acontecer em uma acontecerá e será sentido na outra. Agora, imagine que consigamos pegar uma cópia de nós mesmos e entrelaçar, como esses mouses. Pois bem, não estou falando mais do quântico. Agora eu estou é mentindo mesmo (risos). Como um romance, um conto, uma poesia. Parte significativa deles é mentira.

O presente é só uma máquina de consumir possíveis futuros e transformá-los imediatamente em passado, como o moinho de cana.

Voltemos à hipótese do entrelaçamento quântico. Isto é possível agora? Não. Mas dá para imaginar o que poderá ser feito quando for possível. Eu estaria nesta entrevista agora, por exemplo, e também estaria fazendo qualquer outra coisa. Isso teria vantagens fantásticas, mas também teria problemas. Afinal, se não conseguimos nos administrar sendo um só, imagine sendo dois ou mais, pensando que essa lógica permite multiplicar ao infinito.

Estou dando esse exemplo para demonstrar que, se soltarmos a imaginação além da realidade, começaremos a imaginar coisas que deveríamos ter a obrigação de imaginar sempre, mas não imaginamos porque estamos presos no presente.

Nós estamos presos ao que é possível agora, no que temos meios para executar. Ou, melhor: estamos presos às demandas imediatas, que temos de resolver a qualquer custo.

Como praticar o presente estendido em locais de grandes déficits, com pessoas em situações-limites e, portanto, sem paciência?

Você falou das pessoas que têm pressa… Nós temos, pelo menos, 100 milhões de brasileiros com pressa, sendo que desses, 30 milhões [miseráveis] têm muita pressa. Primeiro: em um país com tanto alimento como o Brasil, essas 30 milhões de pessoas não deveriam estar assim. E só estão porque, no passado, não pensaram no futuro. Se tivessem pensado, teríamos um nível de educação fundamental no Brasil que habilitaria todas as pessoas a participar de processos associados a trabalho e, eventualmente, a emprego (trabalho e emprego são coisas diferentes). Isso levaria essas pessoas a ter rendas mínimas, capazes de tirá-las da linha da miséria. Mas não só isso, pois, mesmo que não fosse possível colocar todos os brasileiros no mercado de trabalho, temos ainda as políticas públicas. Acabamos de fazer uma [Auxílio Emergencial] e olha aí o monte de coisa que aconteceu.

Se nós pegássemos 30 milhões de pessoas e déssemos mil reais mensais para cada uma delas não passar fome, teríamos um custo anual de 360 bilhões de reais. Agora, calcule o custo dessas pessoas irem para as milícias, para o tráfico, para a miséria, para o roubo… É muito mais barato o plano de mil reais mensais. E isso sem contar o custo das vidas abreviadas pela miséria, pela criminalidade. É até difícil falar disso, mas, fazendo um cálculo de quanto custa ao país cada vida abreviada, imaginando pessoas que morrem por questões sociais aos 30, sendo que a expectativa de vida do país está perto dos 75 anos, estamos falando de 45 anos que cada uma delas deixou de contribuir para o país. Traduzindo em PIB per capita, que é uma tradução burra e não deve ser feita, já é possível ter ideia do quanto se perde. Se estendermos o presente – e eu digo estender o presente porque se eu disser antecipar o futuro as pessoas se espantam – é possível fazer exercícios como esse.

Então o presente estendido é o mesmo que antecipar o futuro?

Na realidade, estender o presente é a mesma coisa que se deslocar para o futuro, para que se possa ver o presente a partir de lá. Isso exige uma espécie de salto de imaginação. Eu tenho de ir para o futuro e, olhando para o presente, perguntar como é que eu desenharia o presente de novo, a partir de agora, para que ele não continue acontecendo do jeito que está.

E, novamente, a melhor forma de pensar nesse conceito é relacionar que o presente é uma máquina, que consome o futuro, como o moinho de cana.

Para a questão da miséria, como seria um pensamento prático do presente estendido?

O Pronatec (Programa Nacional de Cursos Tecnológicos), por exemplo, deu bolsas de estudos para todo mundo. As pessoas fizeram os cursos e não têm trabalho. Não adiantou de nada. Continuam na miséria. Porque a formação não foi articulada com o mercado.

Como assim?

O Brasil tem um milhão de bacharéis em direito, com a carteira da OAB. Esse foi um erro estratégico de formação de capital humano com um número muito grande de pessoas induzidas a fazer Direito. O que já acabou? Concursos públicos. O que é que está acabando? O trabalho para advogado, pois a informática está automatizando, sistematizando, os processos judiciais. Se olharmos do futuro para o presente, em 2030 é bem possível que um escritório que tem 100 advogados hoje só vá ter 20. Os outros 80 vão fazer o que, criar outro escritório de advocacia? Não, não dá. E não estamos falando da extinção do advogado. Estamos falando do aumento da efetividade. A eficiência é a forma de resolver rápido e bem. A combinação da eficiência com a eficácia compõe a efetividade. Então, para o trabalho do advogado, no lugar de cinco, a efetividade fará com que precisemos de um. Os processos repetitivos serão automatizados, cada vez mais. Este é um problema que deveríamos estar tratando agora. Mas isso precisa vir do futuro para o agora. Ou, ao contrário, vamos tentar resolver o problema arrumando trabalho para um milhão de advogados, impedindo a chegada de tecnologia e mantendo os advogados fazendo trabalho repetitivo? Não dá!

As pessoas estão preparadas para isso?

Há uma pesquisa feita no ano passado mostrando que 66% das pessoas no mundo inteiro querem, agora, que a parte repetitiva do seu trabalho passe a ser feita por softwares ou robôs. Ou seja, os trabalhadores já descobriram que se ficarem empregados, fazendo uma coisa repetitiva, tentando impedir que a tecnologia chegue para resolver, terão uma derrota, pois em alguma hora a tecnologia vai tomar o posto. E mais: quando a tecnologia avança, esses profissionais não têm tempo de se adaptar a atividades superiores.

Nos dê um exemplo de tomada tecnológica e falta de adaptabilidade, por favor.

Se lembrarmos que entre 1900 e 1920 a tração animal foi substituída pelo motor a combustão, constataremos que nenhuma fábrica de carroça conseguiu montar uma fábrica de automóveis. Também não adiantaria melhorar a qualidade do cavalo, o modificando, por exemplo, para que comesse menos capim, bebesse menos água, tivesse mais força, fosse mais efetivo e econômico. Esse não era o problema. O problema era o tamanho da mudança, pois, se o cavalo fosse deixado três dias no estábulo, sem capim e sem água, morreria. Mas se deixasse o automóvel um mês parado, não aconteceria nada. Enfim, isso foi uma ruptura.

Então, o futuro, ele vem de lá e pronto. Há uma frase do Machado de Assis que diz que “o futuro nunca se engana”. E não se engana mesmo.

O futuro sabe para onde está indo, e ele está indo para um endereço chamado presente. E vai passar por ele, e vai transformá-lo. Quanto mais soubermos disso, mas teremos pessoas olhando do futuro para o presente e dizendo: como é que eu vou me posicionar nesse futuro?

O presente estendido, então, é a perspectiva de olhar a partir do futuro?

Sim, e isso é independente – de uma certa forma – de sabermos o que as pessoas querem agora. Nós temos de ir para o futuro para saber o que as pessoas irão querer lá. Se tivessem perguntado aos usuários de celulares dos anos 1990 ou início de 2000, quando os aparelhos tinham botões, se eles gostariam que esses botões fossem todos para dentro de uma telinha, ninguém ia querer. E isso são os smartphones. Os smartphones vieram do futuro, foram testados como hipóteses em laboratório experimentais, por grupos pequenos de pessoas, e paulatinamente foram assumindo o formato de ruptura. Quando os smartphones apareceram, eu me lembro de um monte de gente dizendo: eu nunca vou usar isso, pois eu preciso de um teclado. Não sei o que aconteceu com essas pessoas, se elas desapareceram todas da face da terra, mas faz muito tempo que eu não vejo um celular com teclado. (risos) Isso demonstra que todo mundo se adaptou.

Olhando do futuro para o presente, como o senhor sugere, é possível avaliar como as tecnologias que despontaram recentemente, como a inteligência artificial e o machine learning, estarão ou não consolidadas no nosso cotidiano em algum tempo?

Tem uma coisa que acontece, e fazemos isso profissionalmente na TDS Company, onde eu sou cientista-chefe atualmente, que é um paralelo ao método científico. Não dizemos que é um método científico porque as pessoas dizem: “não, isto é ciência e eu não quero nada com ciência”. Mas um método científico é você se perguntar o tempo todo o que é que não se sabe. E mesmo sobre o que já sabe, o que é que sabe. Afinal, sempre há níveis mais profundos de entendimento do que o que você já sabe.

Uma pergunta, por exemplo, é como as pessoas gostariam de morar agora? Tem de criar hipóteses disso. Mas não hipóteses quaisquer, do tampo da imaginação, como: “eu acho que o brasileiro gostaria de morar em cápsulas, como se mora no Japão”. Se tivéssemos a estrutura de mercado, a estrutura de custos, a estrutura de salários, a compactação do Japão, talvez cápsulas fossem viáveis no Brasil. Mas no Brasil, que eu saiba, ninguém quer morar em cápsulas e ter exatamente só duas camisas e duas calças. Quero dizer com isso que, mesmo para criar hipóteses, é preciso partir de um cenário. Dentro desse cenário, tem de ter as personas. Quem são os representantes das pessoas que eu quero demonstrar com a minha oferta dentro de um cenário? Isso envolve cultura, que envolve renda, língua, práticas, política, família e como é que ela funciona naquele lugar. Se tivermos um conjunto mínimo dessas informações, temos uma hipótese. E é preciso algumas hipóteses para, então, validá-las em um laboratório. Nós devíamos ter a possibilidade de criar experimentos, sobre qualquer coisa que se queira criar. Digo, experimentos de resolução cada vez melhor.

Se soltarmos a imaginação além da realidade, começaremos a imaginar coisas que deveríamos ter a obrigação de imaginar sempre, mas não imaginamos porque estamos presos no presente.

O que é a resolução do experimento? Mesmo o experimento de baixa qualidade não é só dizer: eu acho que eu tenho uma nova forma de gerenciar condomínio. Para fazer um experimento de baixa resolução, primeiro é preciso, dentro de um negócio, como o de habitação, ver se as pessoas concordam com a hipótese sobre a melhor forma de gerenciar condomínio e se elas acham que vale a pena testar isso. Depois faz um protótipo de baixa resolução, que pode ser só para instrumentalizar mesmo. Algo como telas desenhadas em folha de papel, que vão para as mãos de um grupo pequeno de condôminos com perguntas como: se você tivesse um aparelho que pudesse clicar aqui e fazer isso e clicar ali e fazer aquilo, você gostaria? Isso é um experimento de baixa resolução, de baixo custo, e que pode ser feito com as pessoas para tentar validar se vale a pena fazer um experimento de média resolução.

Então se implementa uma parte daquelas funcionalidades, cria um aplicativo bem gambiarrento, onde as pessoas só podem usar quando se diz a elas: “olha, se você clicou aqui, agora pode clicar aqui também”. Esta é uma experiência quebrada, que não foi completa. Mas é possível ir aumentando a resolução da coisa, até chegar a um ponto no qual a solução funciona e permita tentar ampliá-la em escala. Ainda não se sabe se as pessoas vão aceitar aquilo em escala, mas, nos limites dos testes, funcionou.

O senhor pode dar outro exemplo?

Como desenvolvemos a vacina para o Sars-CoV-2? O começo foi perguntando o que não se sabia sobre o vírus, como era a sequência genética dele. Lembro que em março do ano passado isso já estava respondido. As primeiras respostas, aliás, surgiram já em janeiro. Depois a pergunta foi: como o vírus entra nas células? Ah, tem uma proteína spike aqui. Como é que a gente ataca isso? Enfim, essas são algumas das milhões de perguntas que tivemos. Mas, na hora que chegou a pergunta “como vamos atacar isso?”, já havia um cenário, um contexto, no qual as pessoas estavam sendo infectadas e morrendo. E esse contexto foi ficando cada vez maior, permitindo identificar as personas mais susceptíveis. Aí sim começaram-se a criar hipóteses sobre como atacar o vírus. Só depois iniciaram testes de imunizantes e, para isso, primeiro se faz uma cultura de células com o vírus num prato. “Eita, matou 30%”, alguém percebeu. Mas não era bom o suficiente. Volta para o conhecimento, volta para o prato e alguma hora a solução está matando 95% do vírus no prato. Partiram para testar em ratos. Há um negócio chamado modelo humano em rato. Se funcionar, você testa em macaco, que é um modelo de maior resolução, mais próximo e mais complexo como o ser humano. Mas é mais caro também, pois tem muito mais fatores acessórios. Daí a pouco observaram: “funciona 75%”. Então melhoraram isso e aquilo e partiram para testar em humanos. Foi um grupo limitadíssimo de voluntários, que poderiam morrer tomando a vacina. Esses são os heróis anônimos. Depois disso, os testes foram para grupos maiores, para a classe médica, que está ali no meio, e aí sim para pessoas que já estavam em uma situação delicada, na qual, se não tomassem a vacina, provavelmente iriam morrer se infectadas.

Eu tenho de ir para o futuro e, olhando para o presente, perguntar como é que eu desenharia o presente de novo, a partir de agora, para que ele não continue acontecendo do jeito que está.

Viu o que foi feito? Saíram do conhecimento para hipóteses e foram até os experimentos, chegando ao momento de confirmação de confiança na vacina, no qual se pediu autorização das autoridades globais de saúde para vacinar a população. Começando por quem? Por aquelas personas que foram identificadas lá atrás, como grupo de risco. É aí, também, onde está está o maior potencial de resolução, de sucesso. Sim, diretamente assim. Funcionou? Funcionou. Então escalaram para vacinar todo mundo.

Mesmo assim, repare que há países no mundo que até hoje não autorizaram vacina abaixo de 12 anos de idade porque não sabem quais serão as consequências. E nós estamos há quase dois anos do começo dessa confusão.

O senhor definiu o método científico…

Exatamente, acabamos de definir o método científico com os exemplos do condomínio e da vacina. O processo é exatamente igual. O que as empresas estão descobrindo hoje, e que as startups descobriram bem antes, é que se usarmos esse método, conseguiremos construir processos de elaboração de conhecimento e entendimento mais aprofundado do conhecimento. Mais do que os que temos agora, com criação de hipóteses de mudança de cenário ao nosso redor, de verificação e validação dessas hipóteses em experimentos controlados de resolução cada vez mais altas. E os impactos serão cada vez maiores, criando funções dentro do nosso negócio, que são ofertas de coisas para a sociedade, que se começarem a dar certo, a gente pode escalar e transformar até num novo negócio totalmente diferente.

Reduzindo aqui para o caso da MRV&CO, só para dar um exemplo: veja a Luggo. É um experimento, que está virando um negócio separado, com fundo imobiliário na Bolsa de Valores e tudo. Mas no começo era só uma tese: “ah, e se a gente só alugar imóveis?” Repare: a tese, que era uma hipótese lá no começo do processo da MRV&CO, era bem escabrosa para uma construtora, certo? É a mesma coisa que uma fábrica de automóveis perguntar “ah, por que eu não alugo carros?”. Tanto que nenhuma fábrica de automóveis tem uma oferta decente para alugar carros até hoje. Mas a MRV&CO fez o processo, e aí escalou, e agora está na Bolsa de Valores, levantou fundos, etc. E agora tem é de fazer escala mesmo. Em vez de ter uns prédios da Luggo por aí, tem que ter centenas. Enfim, a Luggo mudou o jogo. Mas o que está por trás disso? Mesmo que de forma ingênua, é o método científico que eu acabei de descrever.

Na TDS Company, onde eu sou cientista-chefe, chamamos isso de stratigikí (estratégia em grego), avaliando como é que se sai lá do começo, do conhecimento básico, para o cenário, até você ter que criar um negócio em escala no mercado. Isto vale para qualquer coisa, porque vem sendo feito assim, incrivelmente, desde o começo da humanidade. Júlio César não foi um cara aleatório, que fez o Império Romano se tornar grande por sua causa, entende? Aquilo foi uma construção de séculos, literalmente. O mercado imobiliário lida com um produto cada vez mais importante para as pessoas, pois passamos mais da metade do nosso tempo dentro de casa.

Agora sim, voltando às tecnologias: como soluções em utilização, que já passaram da concretização pelo método científico, como a Inteligência Artificial, podem ser avaliadas na perspectiva do presente estendido?

Podemos dizer que estamos na terceira onda da inteligência artificial. As duas anteriores deram errado. Porque esse negócio de inteligência é um problema quase que maior do que nós mesmos. Na primeira onda da inteligência artificial, ali pelos anos 1970, almejávamos que, em algum momento, os sistemas iriam replicar o comportamento humano. Isso não aconteceu, pois não havia nem métodos e nem máquinas para isso.

Já na segunda onda, pensávamos que iríamos replicar a inteligência humana. Deu errado também. Agora, a terceira onda, é um pouco mais contida e quer replicar o trabalho repetitivo da inteligência humana. Aí tem! Isso porque ela nos permite pegar um sistema analítico, seja qual for ele, e mostrar exemplos certos ou errados. Vamos pensar nas radiologias.

Pediremos para que o sistema avalie algumas características quaisquer, se é X ou não X. E isso é feito repetidas vezes, até que o algoritmo possa discernir X de não X, com uma taxa de acerto superior a 97%, por exemplo. Quando isso acontece, significa que ele está conseguindo olhar para as imagens e dar um diagnóstico.

Eu usei a radiologia como exemplo para mostrar que não será o caso da inteligência artificial substituir os radiologistas. Mas sim de radiologistas que usam inteligência artificial substituírem radiologistas que não usam. Afinal, eles poderão bater a chapa – para usar uma referência dos anos 1970, quando as chapas eram de metal mesmo – e ela já virá pré-analisada. Com apontamentos mesmo, mostrando que tal ponto é X e tal ponto é não X. A partir daí, o radiologista entra com o crivo: “é X mesmo” e a taxa de erro [que era de 3%] passa a ser próxima a zero.

Portanto, foi alcançada uma taxa de erro menor do que a que o corpo profissional de radiologia alcançaria. Mas, novamente, sem eliminar os olhos críticos do profissional, pois o sistema ainda pode errar, mesmo que uma a cada dez ou cinco mil vezes.

Bom, podemos traduzir isso para outras situações. Vamos discutir se é um ato de inteligência essencialmente humana dirigir um carro, por exemplo? De pronto vamos descobrir que não é. E o que um humano faz num carro, literalmente, é usar as mãos e os pés para fazê-lo ir para frente, para trás, fazer curva, parar, etc. Para isso, é possível capturar dados do movimento humano, o que é relativamente fácil de se fazer com o uso de câmeras. E com isso se treina a inteligência artificial, dizendo a ela: comporte-se como um humano na direção. Isto permite ainda saltos qualitativos, como a eliminação de erros como esquecimento das placas de trânsito, ultrapassar velocidade, furar o farol vermelho, etc.

Temos de fazer perguntas do tipo: como é que, em 2040, o número de brasileiros na linha da miséria e abaixo dela vai ser zero? Essa é uma pergunta que se faz do futuro para o presente.

Mas não é a inteligência artificial que está fazendo nada disso. Lembro que foram inseridos nela algoritmos, um conjunto de regras, com as leis de trânsito, etc. Dirigir um carro é algo mecânico, e tem uma coisa que ninguém está percebendo nisso tudo, que é o potencial de mercado. Se tirarem todos os motoristas dos carros, acabam com os Detrans, as indústrias de placas, de sinais… Acabam com absolutamente tudo que está aí. Não terá mais placas, o mapa será digital e vai para dentro do carro. O carro entra na rua que diz a ele: 60 km por hora. Certo dia, quando tiver uma pane qualquer, vem o comando da rua pro carro e diz: pista da direita liberada, a 30 km por hora. E o carro obedece. Qual é a inteligência artificial disso? Nenhuma. É só um sistema cibernético, que é figital (físico, digital e social). O social ocorre porque o carro se relaciona com os outros carros ao redor.

E é figital porque há humanos no looping, dentro dos carros. Mas os carros têm a própria direção. A pessoa então pode pegar sua cerveja, sentar no lugar onde era o banco do motorista e sair bebendo por aí. Não terá nada para fazer lá. A única coisa que você vai dizer é: me leva para a Praça do Arsenal (em Recife-PE). O carro, eventualmente, pode até perguntar: “o senhor prefere o caminho mais direto, que é mais rápido, porém mais confuso, passando pelo setor industrial, ou o caminho pela orla, que é mais agradável, porém mais demorado?”. A pessoa escolhe a vista mais bonita, com a cerveja do lado, vai escrevendo um texto, enfim… Mas, novamente, o grau de inteligência envolvido nisso é zero.

Uma boa parte do que a gente chama de inteligência artificial hoje não tem inteligência nenhuma. Inclusive essa inteligência artificial que dirige um carro. E isso é muito mais complicado do que analisar a radiografia que exemplificamos há pouco. Basicamente, é exigido que o carro se transforme em um supercomputador. Mas não o torna inteligente.

Ele seria inteligente se tomasse a decisão de dizer: “acho que o senhor não deveria ir trabalhar hoje. Pois, levando em conta todas as considerações, inclusive a sua reunião, acho que é melhor o senhor fazer as suas tarefas daqui mesmo”. Nesse nível sim, ele teria uma capacidade de entendimento da realidade, de julgamento do mundo, de possibilidades adicionais e de entendimentos de futuros possíveis.

A proposta atual de inteligência artificial que estamos vendo aparecer nas empresas não é nada disso. Pensam que porque jogaram um bocado de dados no sistema e ele tomou uma decisão de oferecer tal filme, é inteligência. Para mim não é, não me impressiona, sabe?

É fácil perceber que estou assistindo filmes de terror e sugerir que eu assista mais filmes de terror. Qualquer idiota consegue fazer isso. Na verdade, o cara da locadora de vídeo conseguia fazer isso muito melhor. Agora, quero ver é entender que eu assisto filmes de terror porque tem determinado ator ou atriz. Ou então me sugerir um filme que não é de terror, mas se passa em uma mansão que esteve presente nos últimos cinco filmes que eu assisti. Eu nunca vi isso ser sugerido por nenhum desses sistemas que estão aí, entende?

Aí você me diz: mas isso pode ser sugerido pelo algoritmo. Claro que pode, desde que haja um padrão de dados. Mas isso não é inteligência. A inteligência tem a ver com alguém chegar e me dizer alguma coisa, a qual nem eu nem ninguém pensou antes.

Então o senhor está dizendo que a inteligência artificial não tem capacidade de análise e nem de decisão?

Não. Eu estou dizendo que tem capacidade de análises e decisões sim, mas que isso está em ordem de magnitude abaixo do grau de sofisticação de humanos fazendo a mesma coisa. Eu estou dizendo o seguinte: sistemas que hoje a gente acha que são inteligências artificiais, são vendidos como tal, têm sim capacidade analítica e de tomada de decisão, mas isso está muito aquém da capacidade analítica e tomada de decisão humana, mesmo que possam processar muito mais dados, fazer muito mais rápido, etc. E eu nem estou falando de criatividade, certo?

A capacidade analítica e de tomada de decisão humana está em ordem de magnitude acima considerando situações amplas, de cenários maiores, de entendimento da realidade do ponto de vista humano. Porque, veja: o ponto de vista humano envolve tomar uma decisão baseada em cultura, baseada em impacto, na percepção de sociedade, na visão de mundo. Não tem nenhuma inteligência artificial com visão de mundo.

Uma realidade, falando mais radicalmente: não tem nenhuma inteligência artificial que saiba porque ela está tomando aquela decisão. E eu e vocês aqui sempre sabemos. Eu vou tomar uma decisão agora, por exemplo, que eu tenho um trabalho para entregar amanhã. E vou tomar a decisão de que não vou fazer. E a razão é a seguinte: eu não vou fazer porque eu não vou, eu não quero fazer hoje. A inteligência artificial não faria isso.

É como nós aqui. Eu mesmo estou estudando profissionalmente, mas só estudo quando não tenho mais tempo para entregar. Ou seja, se não aparecer a urgência, um cara pra me dizer “olha se não entregar até amanhã, não precisa mais”, eu não faço.

Mas se acontece eu varo a noite e faço. E é uma coisa tão idiota, por que eu faço isso? Porque agora mesmo eu não quero fazer. E eu tenho tempo para fazer. Eu tenho mesmo um trabalho para entregar amanhã, só que eu não vou fazer, vou fazer outra coisa. Vou lá embaixo, ver minhas plantas, ver o cachorro do vizinho, fazer outras coisas. O cara vai ligar “p da vida” às 17h, mas eu já tomei a decisão de que não vou fazer hoje. Essa é uma decisão inteligente, certo? Apesar de ser do ponto de vista contextual totalmente burra, porque se eu fizesse agora eu estava livre de noite. Mas não, eu sei que de noite eu consigo produzir uma coisa mais interessante, com o pavor de ter de entregar amanhã de manhã. Então eu vou virar a noite, trabalhar até 3h, 4h da manhã e isso me faz bem. A inteligência artificial não tem isso.

Talvez não seja uma decisão contextualmente burra, pois se o senhor ficar livre a noite, é porque esteve ocupado agora…

Não, é pior. É muito pior que isso. Eu preciso do pavor da entrega para fazer um negócio que eu me sinta mais gratificado, entendeu? Preciso dizer: “foi difícil, mas eu consegui”. Isso se chama procrastinação estrutural (risos).

Sobre o figital, que o senhor falou acima: até que ponto ele está ligado ao presente estendido, ao método científico, à inteligência artificial?

Nós estamos nessa transição agora [conversando por videoconferência]. Nos dois espectros: físico e digital, orquestrados no espaço social das interações, entre as pessoas, as pessoas e as instituições, em tempo quase real. Esse tempo quase real não é o tempo dos sistemas, nem das organizações, nem dos relógios. É o tempo das pessoas. Tem estudos que mostram, por exemplo, que as pessoas esperam, em interações umas com as outras, que a outra não demore mais de um minuto para reagir. O espaço figital, que é onde as empresas estão competindo, e onde estão as nossas performances, é uma dimensão física, que já estava aí, claramente, e uma dimensão digital, que passou a ser a porta de entrada para esse espaço figital, que é cada vez mais frequentemente, com a dimensão social, das interações. É o físico, o digital e o social, tudo em tempo quase real. É aí que as empresas estão competindo.

No mercado imobiliário, por exemplo, podem dizer que venderam apartamento totalmente online. Não foi. A venda do apartamento foi por um espaço digital, mas o bem, o apartamento, é físico. A pessoa que comprou é física. E a atração para a venda foi feita, eventualmente, pelas redes sociais, na dimensão social do espaço.

A inteligência artificial não abrange a criatividade, então…

Essa é uma discussão filosófica, que vai permear vários dos próximos anos na face da Terra. Mas o ponto principal aqui é: você pode até ver coisas que saem da máquina e parecem criativas do nosso ponto de vista. Mas do ponto de vista dela, da máquina, não é. Ela não entende nada disso. A questão da inteligência está relacionada à consciência. Então, enquanto não criarem alguma coisa artificial – aliás, não é artificial, é natural – isso não muda.

Nós humanos criamos artefatos e eles são naturais. Uma pá é uma criação natural, certo? Porque se os humanos criaram, faz parte da natureza. Que natureza? A natureza humana. A natureza humana é em boa parte definida pelas ferramentas que a gente cria. Se não tivéssemos pá, não tivéssemos alavanca, a roda, estaríamos subindo em árvores até hoje. De alguma forma, os humanos começaram a desenvolver ferramentas. Então quando falamos da natureza humana, envolvemos ferramentas. E nós fazemos uso consciente das ferramentas desde os primórdios.

Há uma frase do Machado de Assis que diz que “o futuro nunca se engana”. E não se engana mesmo.

Sabe o filme “2001: Uma Odisséia do Espaço”? Lembra da abertura? É um macaco com um osso na mão. E aí ele bate, quebra algo e entende que não se trata só de um osso na mão. O osso é uma arma. Aí pronto, mudou tudo, pois a ferramenta passou a ser associada a uma intenção, e a intenção é entendida como tal de forma consciente.

Tem inteligência artificial que é uma metralhadora inteligente. Eles usam na fronteira da Coreia do Sul com a Coreia do Norte. Ao invés de botar gente lá, treinaram o algoritmo da metralhadora para que, se uma pessoa estiver passando, primeiro se anuncia que é uma zona de exclusão, se ela continuar, vai um tiro pra cima, se não parar – e aí tem todo um protocolo, com quantidade de metros de distância e mais – atira no chão perto dela. Se ainda assim ela continuar avançando, atira para matar. Pronto, é um algoritmo de uma metralhadora.

A metralhadora não tem consciência do que está fazendo ali. É só um conjunto de instruções de software. É como se tivesse uma pá lá parada e você vai lá e a levanta. A pá não sabe disso. Ela não sabe que tem a lei de Newton escrita nela, que ela é a lei de Newton. Assim como o foguete não sabe, assim como um ‘software’ não sabe. Foi um humano que fez tudo isso.

Enfim, qualquer sistema só será inteligente quando for consciente. E isso é um mega problema porque a gente não sabe o que é consciência nos seres humanos.

A digitalização tem influenciado o modo como as pessoas habitam as cidades ou como as cidades são preparadas para habitar as pessoas?

Eu não acho que, até agora, tenhamos tratado o espaço da cidade como digital. Uma parte significativa do urbanismo é completamente física, feita por e para humanos, em um contexto onde são os humanos que trafegam na cidade. Mas não há o próprio entendimento da cidade como fluxo, envolvendo fluxo de pessoas, de coisas, de informação. A ideia de cidades como redes ainda é muito preliminar. E a cidade não é uma rede como a internet, onde saímos de um lugar para o outro para fazer coisas e onde as coisas vêm para a nossa casa por alguma razão.

O que vimos agora na pandemia, que foi um choque para a vasta maioria das empresas, é que as pessoas conseguem trabalhar sem ir ao local de trabalho. Se olharmos historicamente, as cidades contemporâneas foram montadas, quase todas, ao redor de fábricas, para levar o trabalhador para perto do meio de produção. Como mais de 70% da economia do Brasil, por exemplo, é de serviços, e uma parte suficiente dos equipamentos para realizar os serviços de processamento de informações do escritório é pequena e simples o suficiente, dependendo de poucas condições de contexto para serem levadas para casa, o trabalho ficou híbrido. Isso significa que ele foi descentralizado, que não precisa ser feito em um local específico. E ele pode ser dessincronizado, pois não precisamos participar dos processos de criação de resultados todos ao mesmo tempo. Afinal, há interfaces e conjunções que podem ser feitas pelo meio digital e social. A nossa articulação conversacional no ambiente de trabalho, mediado pelo digital, as ferramentas e instrumentos digitais em si, permitem que eu faça o meu trabalho à noite, por exemplo.

Há outras razões para ir ao escritório?

O escritório clássico tinha as máquinas e a informação centralizadas lá. Agora, a habilitadora estrutural do escritório está na nuvem e mexemos nas informações lá, através de um laptop. E é possível acessá-las de forma segura, como se estivesse no escritório. Então, para que é preciso ir ao escritório? As razões para ir ao escritório mudaram. Agora são as articulações humanas, a formação de redes, a construção da cognição coletiva, de entendimento coletivo.

Por melhor que seja essa interação que estamos tendo agora [por videoconferência, durante esta entrevista], nos vemos por um plano. Você ou eu poderíamos ser um avatar simulado aqui. Nós não temos a real clareza de que somos reais. Aliás, vamos colocar umas aspas aqui: “eu sou um avatar, deliberadamente”. Mesmo assim, se eu fosse um avatar, eu seria real, só não seria concreto, seria abstrato. O concreto e o abstrato são parte da mesma realidade, o que a gente não sabe ainda é fazer com que a cultura, as estruturas de produções humanas, que estão associadas a propósitos, objetivos, metas, valores, princípios e limites assimétricos, se desenvolvem tão bem nesse espaço aqui, nessa faceta de espaço, como se desenvolve fisicamente. E tem outras coisas importantes nisso: o fato de fazermos uma transição casa-trabalho, e usarmos o fluxo da cidade – pois temos de usar o fluxo da cidade para o trabalho – separa emocional e cognitivamente o que é a casa e o que é o trabalho.

O mercado imobiliário lida com um produto cada vez mais importante para as pessoas, pois passamos mais da metade do nosso tempo dentro de casa.

Quando vamos para dentro de casa e começamos a trabalhar, não há mais separação entre família, casa e trabalho. Quantos amigos vimos, na pandemia, que entraram em conflito caseiro? Quantos se separaram, quantos casamentos ficaram horríveis? Podiam não ser espetaculares, mas eram ali mais ou menos. Isso aconteceu porque, de repente,havia duas pessoas trabalhando em casa e uma atrapalhando a outra o tempo todo. E de resto, ninguém quer viver com alguém o tempo todo. Trabalho é terapia, não é?

Voltando às cidades, como é possível melhorar a convivência nelas?

A construção coletiva, chamada trabalho, está presente nas cidades. Hoje, no mundo inteiro, as cidades estão ficando cada vez maiores. Recife, por exemplo, tinha 100 mil habitantes há 50 anos. Hoje a Grande Recife tem 5 milhões.

Um dos lugares que eu vejo uma luz nesse sentido é Paris, onde a prefeita Anne Hidalgo desenvolveu o projeto da cidade de 15 minutos. A ideia é distribuir o trabalho pela cidade para que não precise distribuí-lo, necessariamente, para a casa das pessoas. É possível fazer o seguinte: uma empresa, em vez de ter um prédio inteiro em Belo Horizonte, teria 10% de dez prédios espalhados pela cidade. Isso causaria menos impactos à cidade, pois os empregados poderiam escolher onde querem trabalhar. Mas exige um desenho figital da cidade. É preciso ver se naquele dia é possível ir a tal prédio, devido aos compromissos físicos, por exemplo. Também precisa avaliar se há lugar disponível para se alocar…, enfim, precisa fazer uma reserva, um check in. E isso tudo pode ser feito digitalmente hoje em dia.

Sobre conceitos como os de Paris, é preciso um planejamento. Não é só dizer: “será a cidade de 15 minutos” e pronto. É preciso fazer alguns estímulos, como separar o IPTU em duas partes, que seria uma da área física total e outra sobre o impacto que o edifício tem para a cidade, por exemplo. É possível estabelecer parâmetros, como: se forem mil pessoas para o prédio todo dia, o IPTU se torna mais caro.

Em todos os mercados, em todo o mundo, não está acontecendo uma transição do espaço físico, das performances físicas para o espaço digital. Não é isso. As pessoas dizem que é, mas não é.

Com isso, as empresas tendem a distribuir seus espaços pela cidade. Tem outros artifícios para isso, como o estabelecimento de que, quanto maior e mais largo o prédio, mais caro é o IPTU. Aí se tem a oportunidade das empresas distribuírem os prédios pela cidade, conectar tudo e criar a cidade de 15 minutos, permitindo que as pessoas possam ir a pé ao trabalho. Isso resulta em menos necessidade de garagens, pois há menos carros.

Eu morei em Boston, entre 2001 e 2012, e uma das decisões mais interessantes que eles tomaram foi habilitar construções de prédios para os quais muita gente iria todos os dias, desde que não tivessem nenhuma garagem. Eu lembro que um desses prédios era um de ensino e pesquisa de uma das universidades de Boston. Eu vi o processo acontecendo, pois era na minha vizinhança e lá tem aquelas pesquisas de vizinhança. Uma vez eu fui a uma reunião e estava um rolo lá porque o pessoal queria botar garagem. A prefeitura disse: “não, com garagem o prédio não será autorizado”.

Aqui no Brasil é o contrário: para fazer um prédio o cara diz que tem de ter pelo menos tantas garagens. Lá não, não tem garagem nenhuma, o cara tem de ir de bicicleta, de metrô, de ônibus, pois a rua não aguenta mais carros. A prefeitura analisa e estipula que não pode mais por carros para trafegar porque vai travar as ruas e piorar para todo mundo que está ali. Eu achei fantástico isso e acho que deveria ser feito imediatamente em todo lugar do mundo.

Mas há outros exemplos parecidos…

Sim, o The Shard, em Londres, que é um dos prédios mais caros da Europa, se não me engano tem menos de 20 garagens. Só os apartamentos do ultra-topo dele têm garagem. São apartamentos de dezenas de milhões de dólares. Enfim, esse redesenho é fundamental para o futuro das cidades. Ou então teremos que demolir cidades inteiras para dar espaço aos carros, enquanto as pessoas vão morar em outro lugar e, quando quiserem andar de carro, vão para essa cidade que foi demolida? Não pode ser.

Isso exige mudanças culturais, não?

Sim. Nem todo mundo precisa ir trabalhar no mesmo dia, no mesmo lugar e nem na mesma hora. Mas é preciso ter escritórios. Eu mesmo trabalho no escritório, o que eu não trabalho é no escritório da empresa. Eu não consigo trabalhar dentro de casa.

Vou contar uma coisa: eu sou parcialmente surdo, mas tenho um olfato que nem pode ser chamado de privilegiado. É uma espécie de problema mesmo, entende? E por isso eu não consigo me concentrar se eu sentir o cheiro de feijão cozinhando. O cheiro de feijão cozinhando, com linguiça e charque dentro, me deixa completamente ensandecido. Enfim, por essa e outras eu não consigo, não posso trabalhar em casa.

Não é razoável dizer que as pessoas vão trabalhar em casa daqui para a frente. Elas não vão, elas não querem. Mas o que as pessoas querem menos ainda é pegar um transporte de duras horas para ir a um local de trabalho. (…) Então nós precisamos redesenhar a cultura da cidade.

Para outros, o problema é o barulho, a reforma… Eu entendo que não é razoável dizer que as pessoas vão trabalhar em casa daqui para a frente. Elas não vão, elas não querem. Mas o que as pessoas querem menos ainda é pegar um transporte de duras horas para ir a um local de trabalho. Ou ir a um lugar onde as pessoas te interrompem a cada dez minutos para perguntar alguma coisa. Então nós precisamos redesenhar a cultura da cidade.

A cidade é uma rede e nas ruas dessa rede passam água, esgoto, comunicação, carro, bicicleta, pessoas. Então essa rede de conexões precisa ser rearticulada para perceber o seguinte: eu acordei hoje e não tem nenhuma reunião física no meu local de trabalho e ninguém do meu trabalho tem o direito de me ligar. A minha agenda é preciosa. Eu estou fazendo uma coisa aqui que não consigo contribuir se você ficar ligando para me dizer para ir ao escritório e, quando eu chego lá, é algo banal.

Voltamos, então, ao figital…

O espaço figital é isso, que junta físico, digital e social, e não precisamos aprender a separar isso em partes, mas sim criar uma unicidade que é exclusivamente de cada um e passa, por exemplo, para a moradia. Então, é legal trabalhar em casa? Sim, se a casa for redesenhada para ser um espaço de trabalho. Mas para trabalhar em cima da mesa da sala, enquanto cozinho feijão, não rola.

Outra questão: será que não deveríamos redesenhar, por exemplo, as garagens dos prédios? Tem dois andares de garagem, com duas vagas para todo mundo. Pega um desses andares e redesenha para um coworking, o que é a coisa mais fácil de se fazer.

Quero mostrar com isso que precisamos não manter um conjunto de práticas que vêm de uma época em que a informação não se movia e os meios de produção só estavam no mesmo lugar.

Em uma entrevista ao Habitability, um especialista em arquitetura e urbanismo avaliou que a pandemia deixou claro que os espaços internos das habitações se revelaram ineficientes para essa nova realidade. Segundo ele, nem tudo cabe mais em alguns metros quadrados e, contra isso, ele sugeriu um redesenho dos modelos de habitação. O senhor concorda?

Sim e não. Porque se mantivermos habitações pequenas e redesenharmos as garagens de edifícios, transformando em coworkings, por exemplo, as pessoas não precisarão ter mais espaço para trabalhar em casa. Na verdade, para mim, pessoalmente, eu não quero ter espaço de trabalho dentro da minha casa. Eu quero trabalhar fora, mas em um outro imóvel próximo. E há um conjunto muito grande de trabalho que precisa de times conexos, que estejam no mesmo lugar fazendo a mesma coisa. E tem certos tipos de projetos que vão ter essa tecnologia digital tacanha que temos aqui hoje.

Se incentivarmos as empresas com o método balduíno mesmo, de cobrar impostos, será que elas vão distribuir seus escritórios como rede na cidade, diminuir o impacto nos escritórios na cidade como um todo, para que as pessoas possam trabalhar perto de casa?

Por curiosidade eu fui analisar e descobri que lançaram vários prédios pequenos perto de onde moro durante a pandemia. Todos com coworking. O que era um salão de festa grande, virou um salão de festas menor e deu espaço a um coworking. Pra poder sair de casa, há rituais e nós humanos temos rituais. Tem ritual para ir a uma festa, quando a gente se arruma, se organiza. E tem o ritual de ir para o trabalho, assim como para o futebol.

Por isso, reforço que é preciso repensar a cidade, e a pessoa na cidade. Isso engloba também a casa, a moradia, mas da perspectiva da pessoa na moradia. É preciso, portanto, repensar as interações entre os espaços, como se a cidade fosse uma rede.

E se a cidade é uma rede, ela tem as suas tubulações de água, eletricidade, comunicação, como eu disse antes.

É preciso repensar a cidade, e a pessoa na cidade. Isso engloba também a casa, a moradia, mas da perspectiva da pessoa na moradia. É preciso, portanto, repensar as interações entre os espaços, como se a cidade fosse uma rede.

A cidade atual não foi pensada para ter internet, por exemplo, e é por isso que está tudo emaranhado nos postes. E se as cidades são redes, como elas se conectam? Como distribuímos as empresas, as pessoas, os hospitais? Certamente é ao contrário de Brasília, onde há o setor de farmácias Sul. Como pode isso, desenhado por algum dos maiores urbanistas do século? Farmácia é uma coisa de proximidade.

Isso mostra que não é só o desenho do urbanista, a questão é como se incluem as pessoas nesse desenho, considerando como elas querem viver. Afinal, no fim, é o desejo de viver de uma certa forma ou de outra que define o que a cidade é, o que a moradia é.

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