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Sociedades matriarcais: descobrindo o caminho para o poder e a equidade de gênero
Veja como alguns povos ao redor do mundo têm a liderança feminina no centro da gestão comunitária.
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Redação em 14 de novembro de 2023 8minutos de leitura
Quem comanda o mundo? Garotas! Nas sociedades matriarcais, esse não é somente um refrão de empoderamento da música Run the World, de Beyoncé, mas um fato! Nelas, são as mulheres que ocupam posições de poder e autoridade e dão as decisões tanto nas suas famílias como na comunidade. Embora o patriarcado tenha dominado as sociedades ao longo da história, ao redor do mundo existem diversos exemplos de culturas organizadas e lideradas por mulheres, que resistiram ao tempo e às normas impostas como certas.
Nos tempos atuais, onde discursos sobre gênero, feminismo e empoderamento feminino se tornaram uma constante, a curiosidade sobre o assunto ganhou força. Tanto que, recentemente, o canal GNT produziu uma interessante série documental sobre o tema, mostrando como funciona a dinâmica dessas sociedades femininas em lugares remotos.
Sociedades matriarcais têm forte presença de linhagens matrilineares
O reconhecimento de uma sociedade matriarcal se dá onde a descendência é rastreada pela linhagem materna e os bens e recursos são transmitidos através das mulheres. Nelas, as mulheres muitas vezes têm uma posição de destaque na comunidade, exercendo influência em aspectos como política, economia e religião. No entanto, não se pode precisar – ou datar – o nascimento dessas comunidades femininas. A maternidade e sua importância são indiscutíveis desde sempre, mas a liderança de mulheres neste contexto, não!
A teoria sobre sociedades matriarcais pré-históricas é controversa e não é amplamente aceita. Não há evidências sólidas de que essas sociedades tenham existido como descritas. Em entrevista ao IHU Unisinus, Cynthia Eller, pesquisadora e escritora americana especialista em religião, questões de gênero e matriarcado, argumenta que as representações femininas encontradas em sociedades antigas não comprovam a centralidade feminina. Para ela, a adoração de divindades femininas não garante liberdade e igualdade para as mulheres.
“Provavelmente nunca existiu uma sociedade matriarcal”, afirma a autora do livro Gentlemen and Amazons: The Myth of Matriarchal Prehistory, 1861-1900 , no qual disseca a construção do mito do matriarcado feita pelos primeiros antropólogos, no século XIX.
Origens e abandono da teoria do matriarcado
A teoria do matriarcado remonta ao século XIX, com base em mitos que retratam as mulheres como detentoras do poder ancestralmente. No entanto, essa teoria foi abandonada por muitos antropólogos no século XX, embora tenha sido adotada por algumas correntes feministas e pelo pensamento comunista.
A jornalista científica Angela Saini, aborda no livro “Os Patriarcas – Como os Homens Chegaram a Governar”, questões das sociedades matriarcais reais e míticas quanto às formas reais e imaginárias pelas quais “os patriarcas” as derrubaram. Ela garante que embora a maioria dos dicionários diga que essas comunidades são “hipotéticas” – e historiadores ocidentais altamente conceituados do século XX, como Gerda Lerner, declararam categoricamente que “nunca existiu nenhuma sociedade matriarcal” – algumas pesquisas baseadas em estudos antropológicos de décadas atrás confirmam que há pelo menos 160 comunidades matrilineares no mundo em nações como Índia, África, Indonésia e Américas.
Em seu trabalho, a autora destaca ainda a existência de três tipos de sociedades matriarcais:
Sociedades matrilineares: são sociedades em que a descendência é traçada através da linha feminina e não da linha masculina e a propriedade é muitas vezes herdada da mesma forma;
Sociedades matrilocais: em que a mulher permanece com ou perto da sua família após o casamento e homem muda-se para onde vive a família da sua esposa;
Sociedades matricêntricas ou matrifocais: em que uma mulher é a chefe do agregado familiar, mas isto não se estende necessariamente à governação social.
Reivindicando as sociedades matriarcais
O termo matriarcado, porém, carrega um significado ligeiramente diferente, na medida em que está ligada ao poder. No uso popular, ele transmite uma ideia de dominação feminina, uma imagem espelhada do patriarcado, em que as mulheres têm autoridade absoluta sobre homens e crianças. Por isso, talvez, explicar os matriarcados através de lentes patriarcais pareça tão equivocado.
As sociedades que reivindicam um estatuto matriarcal real e não hipotético ou imaginário – incluindo os Mosuo, na China, os Khasis, no norte da Índia, e os Minangkabau, na Sumatra Ocidental -, são muito complexas.
Os Minangkabau, por exemplo, considerada a maior sociedade matrilinear contínua do mundo, com uma população de mais de 5 milhões de habitantes e uma cultura antiga baseada na prática consuetudinária – chamada “adat” -, transformou-se após a conversão ao Islã no século XVI e mais de dois séculos de domínio colonial europeu. Mas a propriedade da terra pelas mulheres continua a garantir o seu poder e a série de costumes, práticas e crenças que são aceitos como regras obrigatórias de conduta e não permite que os homens ajam sem elas.
Nessas comunidades, maioritariamente agrícolas, a ancestralidade e o nome de família continuam a ser transmitidos através da linha feminina, juntamente com a casa, a terra e o gado, embora os homens possam agora transferir os rendimentos dos negócios para os seus filhos, seguindo a lei islâmica. Contudo, os maridos continuam tendo que se mudar para as casas das suas esposas no momento do casamento e todas as tomadas de decisão requerem consenso baseado em princípios de responsabilidade mútua.
Comunidades lideradas por mulheres prezam por linhagem materna
Já no estado de Meghalaya, – “Morada das Nuvens” em tradução livre, em referência ao terreno montanhoso que ocupa um espaço entre o Butão e Bangladesh no nordeste da Índia -, vivem os Khasi. Esta é uma das poucas sociedades matrilineares onde a filha mais nova de uma família – e não a mais velha – herda a riqueza e os bens da mãe.
Todas as crianças traçam sua linhagem do lado materno da família. Neste contexto, a filha mais nova, conhecida como “khadhuh”, ou chefe da família, é quem herda os bens familiares. A casa feminina, porém, está aberta a todos, incluindo quaisquer parentes do sexo masculino, órfãos ou solteiros. Os tios maternos têm o direito de atuarem como conselheiros, mas não exercem autoridade sobre nenhuma mulher.
A liderança feminina tem criado comunidades ancestrais
Existem muito mais sociedades nas quais as tradições matriarcais do passado continuam a moldar a organização social no presente. As sociedades matrilineares da África, o “cinturão matrilinear”, remontam a mais de 5 mil anos. Acredita-se que elas se originem de uma antiga diáspora de povos de língua bantu de uma área ao redor da atual Nigéria e Camarões, espalhando-se por todo o continente.
As tradições matrilineares de descendência e de herança de terras ainda são seguidas em muitas comunidades, incluindo os povos Bemba e Luapula da Zâmbia, por exemplo. As tradições matrilineares reforçaram o estatuto socioeconômico destas mulheres, em comparação com as sociedades não matrilineares vizinhas.
E, claro, existem outras sociedades que não se enquadram em nenhum destes binários simples. Exemplo disso é o povo aborígene da Austrália, que tem uma variedade de diferentes disposições de gênero, incluindo tradições em que os homens governam os homens e as mulheres governam as mulheres.
Veja como funcionam algumas sociedades matriarcais ao redor do mundo
Tribo Khasi, da Índia
Na cultura Khasi, a propriedade e a riqueza são herdadas através da linha feminina e as mulheres têm uma forte influência nas decisões domésticas e comunitárias. Além disso, as mulheres também são livres para escolher os seus próprios parceiros e o divórcio não é estigmatizado. Outro fator distintivo de boa parte das culturas ocidentais é que as crianças recebem o sobrenome da mãe, e não do pai. Outro dado curioso é que mesmo vivendo na Índia, local em que os papéis tidos como “tradicionais” costumam ser cumpridos, as mulheres saem para trabalhar enquanto os homens ficam em casa cuidando dos filhos.
Povo Mosuo, da China
Frequentemente referido como a “última sociedade matrilinear na China” ou “Reino das Mulheres”, fica no sudoeste da China. Nesta sociedade matriarcal, qualquer propriedade é transmitida através da linha feminina e as mulheres são as principais tomadoras de decisões na família. As crianças são criadas pelas mães e tios maternos e não existe o conceito de casamento tal como o conhecemos. Em vez disso, homens e mulheres têm relacionamentos conhecidos como “casamentos ambulantes”, nos quais são livres para terem tantos amantes quanto desejam. Inclusive, é relativamente comum que não se saiba quem é o pai de uma criança. Mas, como a linhagem é feminina, não existe a ideia de filho ilegítimo.
Povo Minangkabau, da Indonésia
É uma sociedade matriarcal onde a propriedade e a riqueza são herdadas através da linha feminina. As mulheres ocupam um status elevado na cultura Minangkabau e muitas vezes são elas que tomam decisões em relação aos assuntos familiares e comunitários. No entanto, os homens ainda ocupam cargos importantes no governo e nas instituições religiosas, após terem permissão das mulheres, claro!
Mais de 4 milhões de pessoas participam dessa sociedade. Nesta localidade, nascer mulher é uma vantagem e não uma desvantagem, como em boa parte do mundo. Um detalhe curioso dos Minangkabau é que, após o casamento, é o noivo quem se muda para a casa da noiva.
Povo Akan, de Gana
A herança e a sucessão são traçadas através da linha feminina. As mulheres ocupam um status elevado na cultura Akan e muitas vezes são elas que tomam decisões importantes em relação aos assuntos familiares e comunitários. Os homens ainda ocupam posições de poder no governo e nas instituições religiosas, mas as mulheres têm uma forte presença na sociedade Akan.
Povo Bribri, da Costa Rica
É uma comunidade indígena da Costa Rica onde as mulheres são as chefes de família e responsáveis por transmitir a sua cultura, tradições e terras às suas filhas. Os homens têm papéis importantes na sociedade Bribri, mas não detêm o mesmo nível de autoridade que as mulheres. A organização é feita por clãs determinados por meio da linhagem materna. Por isso, os homens não criam seus próprios filhos, apenas os filhos de suas irmãs. As mulheres têm vários privilégios neste povo como herdar as terras – aliás, eles demonstram um profundo respeito pela natureza e cultivam práticas agrícolas sustentáveis – e preparar os rituais religiosos importantes para os Bribri.
Sociedade Nagovisi, da Austrália
É uma das três tribos da ilha South Bougainville, localizada no norte da Austrália e a oeste da Nova Guiné. As mulheres são autoridade neste território: são elas que têm direito à produção de alimentos, o trabalho fundamental desempenhado na ilha.
Quando fica adulta, cada mulher tem o direito de cultivar a terra de seus antepassados e esse privilégio é passado para suas filhas, e não filhos.
Sociedade Hopi, nos EUA
São uma tribo nativa norte-americana que habita a região do Arizona. Eles vivem neste local e entendem-se como uma nação soberana, com constituição e tudo. Este povo também é matrilinear: os sobrenomes das crianças seguem o lado materno da família. Aliás, o nome dos bebês é definido coletivamente, aos 20 dias de idade, quando as mulheres da tribo se reúnem para discutir como a criança será batizada. Esta é uma sociedade extremamente cooperativa em todos os sentidos.
Busca por uma sociedade igualitária deve ser prioridade
Ainda muito se discute se as sociedades contemporâneas acima citadas como matriarcais, realmente, atendem aos critérios de um verdadeiro matriarcado, pois ainda apresentam a presença masculina. Mas é difícil obter uma interpretação etnográfica unânime e as perspectivas e opiniões podem variar entre estudiosos.
De certo é que, para além de ser uma forma de governar, as sociedades matriarcais oferecem uma perspectiva única sobre os papéis e relações de gênero, desafiando, em última análise, a visão tradicional da dominação masculina e dos patriarcados. Ao examinar estas sociedades que priorizam as mulheres, podemos obter uma melhor compreensão da diversidade da cultura humana e das muitas formas como as pessoas se organizaram ao longo da história.
É importante também ressaltar que a discussão sobre sociedades matriarcais não deve ser vista como uma batalha entre matriarcados e patriarcados, mas sim como uma reflexão sobre a diversidade cultural e a busca por sociedades mais igualitárias.
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