O patrimônio cultural como ativo de desenvolvimento urbano

A arquiteta Ana Carolina Pereira Vaz mostra que, longe de ser um entrave, a preservação cultural é um componente de qualificação das cidades.

Por Paula Maria Prado em 23 de dezembro de 2025 4 minutos de leitura

Fotografia de Ana Carolina Vaz em frente a uma construção moderna, vestindo blusa preta e saia de xadrez, com expressão confiante e cenário urbano ao fundo.
Ana Carolina Vaz (Foto: Divulgação)

Patrimônio cultural, para muitos, ainda é sinônimo de passado, entrave ou exceção ao desenvolvimento. Já para outros, um tema restrito a especialistas, distante da vida cotidiana das cidades. É justamente contra essas leituras simplificadas que a arquiteta e urbanista Ana Carolina Pereira Vaz construiu sua atuação profissional.

Com mais de 20 anos dedicados ao campo do patrimônio cultural, Ana Carolina trabalha a partir de uma ideia central: preservar não significa interromper a transformação urbana, mas qualificá-la. À frente da Temporis Consultoria e da Casa Temporis, ela atua em um território pouco explorado no Brasil: o da mediação técnica entre memória, mercado imobiliário e políticas públicas, onde decisões sobre o passado impactam diretamente o futuro das cidades.

Seu trabalho envolve desde pesquisas históricas e perícias judiciais até projetos de restauro, retrofit e a corretagem especializada de imóveis com valor cultural. Mais recentemente, essa trajetória se materializou no “Guia do Patrimônio Cultural de Belo Horizonte”, publicação recém-lançada, que sintetiza duas décadas de prática profissional e propõe uma leitura menos mitificada e mais estratégica do patrimônio urbano.

Nesta entrevista, Ana Carolina reflete sobre o que define o valor de um bem cultural, por que a preservação ainda é vista com resistência em tantas cidades brasileiras e como o patrimônio pode deixar de ser tratado como obstáculo para se tornar parte estruturante do desenvolvimento urbano. Confira!

Quando falamos em patrimônio cultural, do que estamos realmente falando: apenas de prédios antigos ou de algo mais amplo que estrutura a vida das cidades?

Ana Carolina Pereira Vaz: Patrimônio cultural não se resume a edifícios antigos. Ele é um sistema de referências materiais e imateriais que estrutura a forma como a cidade foi construída, vivida e reconhecida ao longo do tempo. Envolve arquitetura, sim, bem como os modos de ocupar o território, a malha urbana, as paisagens, os saberes, as práticas sociais e os valores simbólicos.

Quando reduzimos o patrimônio a um “objeto isolado”, perdemos sua dimensão mais potente: a de infraestrutura cultural da cidade, capaz de orientar identidade, pertencimento e qualidade urbana. O patrimônio é tempo acumulado no território e é isso que dá espessura à vida urbana.

Você comenta que o tema do patrimônio ainda é cercado por muitos mitos e resistências, tanto por parte da sociedade quanto do mercado imobiliário. Quais resistências você observa? E por que esses mitos existem?

Ana Carolina Pereira Vaz: A principal resistência vem da associação direta entre patrimônio e restrição, custo ou imobilidade. Ainda é comum a ideia de que preservar significa “congelar” o imóvel ou inviabilizá-lo economicamente.

Esses mitos existem porque, historicamente, a política de preservação no Brasil foi muito reativa e pouco comunicada, focada na proibição e não no projeto. Soma-se a isso a falta de integração entre planejamento urbano, política habitacional e instrumentos econômicos.

Quando o patrimônio não é apresentado como parte do desenvolvimento, ele passa a ser visto como obstáculo, e não como um ativo.

O tombamento, aliás, costuma ser visto como um entrave. Em que momento essa percepção se distancia do que ele realmente representa?

Ana Carolina Pereira Vaz: Essa percepção se distancia da realidade quando o tombamento é entendido apenas como um ato final, uma sentença, e não como um instrumento de reconhecimento e gestão. O tombamento não impede transformação, ele qualifica a transformação.

O problema não está no instrumento em si, mas na ausência de projetos, diretrizes claras e mecanismos de viabilização econômica. Quando o tombamento vem desacompanhado de estratégia urbana, ele vira conflito. Quando vem acompanhado de leitura técnica, incentivos e projetos, ele se torna oportunidade para ricos produtos.

Livro da Ana Carolina Vaz
Foto: Divulgação

Como conciliar preservação do patrimônio cultural e desenvolvimento urbano sem que um anule o outro?

Ana Carolina Pereira Vaz: Conciliar preservação e desenvolvimento exige abandonar a lógica do “ou” e adotar a lógica do “e”. Patrimônio e desenvolvimento não são campos opostos, são dimensões complementares do projeto urbano.

Isso passa por planejamento integrado, leitura de vocações, instrumentos como transferência do direito de construir, usos compatíveis e, sobretudo, por entender que desenvolver não é apenas construir mais, mas qualificar o que já existe.

Cidades que conseguem fazer isso transformam seu patrimônio em motor de regeneração urbana, inovação e economia criativa.

O que faz um imóvel histórico ter valor? Quem ou o que decide aquilo que merece ou não ser preservado?

Ana Carolina Pereira Vaz:  O valor de um bem cultural não está apenas em sua estética ou antiguidade, mas em sua significância cultural, ou seja, no conjunto de valores históricos, arquitetônicos, urbanos, sociais e simbólicos que ele concentra.

Essa decisão deve ser técnica, baseada em estudos, inventários e critérios claros, mas também coletiva, porque o patrimônio só existe plenamente quando é reconhecido pela sociedade. Preservar não é um gesto nostálgico; é uma escolha sobre que cidade queremos construir a partir da que herdamos.

Na prática, o que muda para uma cidade quando ela reconhece, estuda e ativa seu patrimônio em vez de ignorá-lo?

Ana Carolina Pereira Vaz: Muda a relação da cidade com ela mesma. Quando o patrimônio é reconhecido e ativado, ele gera centralidade, identidade, vitalidade urbana e valor econômico sustentável.

Imóveis antes vistos como problema passam a atrair novos usos, investimentos e pessoas. A cidade ganha continuidade histórica, diversidade tipológica e maior qualidade ambiental, além de uma riqueza cultural que tanto buscamos e admiramos fora do Brasil. Ignorar o patrimônio, ao contrário, produz cidades genéricas, fragmentadas e sem memória, e isso tem um custo urbano e cultural alto.

Você atua como ponte entre órgãos de preservação e investidores. Onde costuma estar o maior ruído nessa relação?

Ana Carolina Pereira Vaz: O maior ruído está na linguagem e no tempo. Órgãos de preservação falam a partir do valor cultural; investidores falam a partir da viabilidade econômica. Quando esses campos não se escutam, surgem conflitos desnecessários.

Nosso trabalho na Temporis Consultoria e Casa Temporis é justamente traduzir valores em estratégias, mostrar que preservação não é inimiga do investimento, e que o mercado pode ser aliado quando compreende as regras, os limites e, principalmente, as oportunidades do patrimônio.

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