Arquitetura bioclimática faz do clima um elemento estratégico

Arquitetura bioclimática integra forças naturais e tecnologias inovadoras para oferecer respostas eficazes aos desafios climáticos.

Por Redação em 29 de novembro de 2024 7 minutos de leitura

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Foto: Shawn.ccf/ Shutterstock

O clima é um elemento central na arquitetura, moldando a forma como os seres humanos constroem seus espaços de convivência e proteção. Historicamente, as habitações foram projetadas para proteger do frio, do calor e de intempéries, criando refúgios confortáveis para o corpo humano, que opera de forma ideal a uma temperatura interna de 37°C. Para garantir esse conforto, edifícios são desenhados para manter ambientes entre 20°C e 28°C, promovendo um microclima constante.

Hoje, no entanto, o setor de construção civil enfrenta um grande paradoxo. Ao mesmo tempo em que protege da ação do clima, é também um dos maiores contribuintes para o problema climático global. Estima-se que 39% das emissões globais de CO₂ derivem da construção civil, tanto pela energia necessária para a fabricação e transporte de materiais, quanto pelo uso de sistemas de climatização nos edifícios. Esses dados, divulgados pelo Conselho Mundial de Edifícios Verdes (World Green Building Council), apontam para a urgente necessidade de mudanças.

Para mitigar esse impacto, arquitetos e engenheiros estão buscando alternativas que permitam projetar diretamente a favor do clima, utilizando as próprias forças e condições naturais como elementos de construção. Esse conceito, conhecido como “arquitetura bioclimática”, vai além da simples adaptação às condições ambientais e propõe que os fenômenos naturais – como vento, incidência solar ou até um rio inteiro – sejam integrados ao projeto de maneira ativa.

Arquitetura bioclimática: construir de acordo com o clima

Civilizações antigas já adaptavam suas construções ao clima, aproveitando as condições naturais para criar espaços protegidos e agradáveis. Porém, os estudos sobre arquitetura bioclimática começaram na década de 1960, acompanhando o movimento ecológico dos anos 1970, que ainda influencia o campo.

Os irmãos Victor e Aladar Olgyay foram pioneiros, com obras como Design with Climate (Projetando com o Clima, em tradução livre) e Architecture and Climate (Arquitetura e Clima, em português), onde introduziram o conceito de bioclimatismo. Derivado do termo “bioclima” (o clima específico que favorece o desenvolvimento de seres vivos), o bioclimatismo aplica esses princípios à arquitetura, buscando soluções que integrem clima e construção. Na abordagem dos Olgyay, áreas como meteorologia, biologia, climatologia e física estão incluídas na ideia de um projeto arquitetônico com o objetivo de criar edifícios mais harmônicos e energeticamente eficientes.

Diante das urgências climáticas e do impacto significativo do setor de construção nas emissões globais, a arquitetura bioclimática volta a ganhar relevância.

Integrando natureza e tecnologia 

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Foto: zawalin/ Shutterstock

Um exemplo concreto dessa abordagem foi implementado no projeto de um parque de 70 hectares em Taichung, Taiwan. O Central Park é um parque público construído sobre o antigo terreno de um aeroporto, transformando uma área abandonada em um oásis verde para os três milhões de habitantes da cidade. Integrado a um novo empreendimento imobiliário de 256 hectares, o parque atua como uma “esponja” ambiental, retendo a água da chuva em seus vales e prevenindo enchentes no distrito. Além disso, com a plantação de quase 12 mil árvores, o local cria um refúgio fresco e menos poluído em meio ao clima tropical quente e úmido da região.

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A estrutura do parque foi projetada com foco no clima, criando camadas de microclimas que variam em calor, umidade e qualidade do ar. O objetivo é resfriar, secar e purificar o ar do parque, tornando-o um espaço mais confortável e saudável para os visitantes. Na camada de calor, foram identificadas correntes de vento frio, e a vegetação foi estrategicamente plantada em locais onde o vento resfria naturalmente, criando áreas sombreadas e refrescantes conectadas por caminhos que incentivam a circulação pelo espaço.

A segunda camada se concentrou na umidade do ar, com áreas mais secas planejadas para acomodar atividades esportivas, aproveitando a evaporação para resfriar o corpo. Nessas zonas, o solo e a vegetação foram selecionados para absorver e drenar a água rapidamente, facilitando a circulação e evitando o desconforto causado pelo acúmulo de umidade. A topografia do parque também foi ajustada para gerenciar o escoamento de água da chuva, garantindo que o ambiente se mantenha acessível e agradável em diferentes condições climáticas.

A terceira camada priorizou a limpeza do ar, essencial em um parque urbano. Para isso, espécies de árvores que purificam o ar foram plantadas ao longo das áreas mais expostas à poluição, como próximas a estradas, formando barreiras naturais que protegem zonas de recreação, como playgrounds

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Foto: Brandon Chou/ Shutterstock

O parque ainda é abastecido por 10 mil m² de painéis solares, tornando-o totalmente neutro em carbono e um ambiente seguro para a vida silvestre, com iluminação ajustada para respeitar os ciclos biológicos dos animais. Sensores instalados a cada 50 metros monitoram em tempo real a temperatura, umidade e níveis de poluição, gerando um mapa interativo acessível via smartphone que orienta os visitantes sobre os melhores percursos de acordo com suas preferências climáticas. Com essa integração entre tecnologia e natureza, o parque proporciona um espaço acessível e confortável, promovendo atividades ao ar livre e o bem-estar dos moradores de Taichung ao longo de todo o ano.

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Parques urbanos redefinem a mobilidade e sustentabilidade

Os parques urbanos vão além de espaços de relaxamento e bem-estar; eles podem transformar a dinâmica das cidades, reduzindo a dependência de carros e promovendo a mobilidade sustentável. Autoestradas urbanas são frequentemente construídas como solução para o congestionamento de veículos. No entanto, essa estratégia muitas vezes se mostra ineficaz, pois a ampliação de vias tende a incentivar o uso contínuo de carros particulares, em detrimento do transporte público ou de alternativas como bicicletas. O resultado é que o trânsito não diminui, perpetuando o problema. Em contrapartida, algumas cidades têm optado por priorizar a mobilidade sustentável e o planejamento urbano integrado, substituindo vias asfaltadas por parques urbanos.

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Um exemplo disso é a revitalização da orla do Rio Manzanares, em Madri, na Espanha. Até 2005, suas margens eram dominadas pela rodovia M-30, com cerca de 200 mil veículos transitando diariamente. Esse cenário transformou o rio em um elemento marginalizado da paisagem urbana, enquanto os moradores enfrentavam problemas como poluição sonora e falta de infraestrutura pública. Para reverter a situação, a prefeitura decidiu priorizar modais sustentáveis e lançar um concurso para revitalizar a área. O projeto vencedor, liderado por Ginés Garrido, foi concluído em 2011 após um investimento de 5,1 bilhões de euros.

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Foto: Daniel Myjones/ Shutterstock

O grande diferencial do projeto foi sua abordagem integrada, que considerou todo o curso do Rio Manzanares, e não apenas o trecho que atravessa Madri. Segundo o arquiteto Ginés Garrido, a proposta buscava criar conexões humanas inspiradas pela própria natureza do rio, que une diferentes regiões ao longo de seu trajeto. Essa visão ampliada permitiu um planejamento mais coerente e alinhado às necessidades do território e da população.

Embora o Manzanares seja um rio relativamente pequeno — com nascente a 70 km ao norte de Madri e foz a 20 km ao sul —, ele tem importância estratégica por atravessar uma região árida, com poucos rios e baixa pluviosidade. Esse contexto climático desafiador tornou a criação de um ambiente mais verde ainda mais complexa. Em uma passagem pelo Brasil, Garrido destacou que, em cidades como São Paulo, onde há maior abundância de chuvas, empreendimentos desse tipo seriam mais fáceis de implementar.

O Madrid Río transformou a área em um amplo espaço de lazer com ciclovias, praças, quadras esportivas, recreação infantil, fontes, uma praia artificial e centros culturais. Para isso, a autopista não foi completamente demolida, mas rebaixada para túneis subterrâneos, liberando a superfície para uso público. Além de oferecer espaços para atividades ao ar livre, a iniciativa incentivou os moradores a optarem por meios de transporte não motorizados, como bicicletas e caminhadas, ao invés de veículos particulares. 

Conectando mobilidade e arquitetura bioclimática em São Francisco

Foto: Engel Ching/ Shutterstock

O Transbay Transit Center, localizado em São Francisco, também é um exemplo de como os projetos urbanos podem combinar mobilidade, sustentabilidade e eficiência, levando em consideração o clima. Esse complexo foi desenvolvido para melhorar a infraestrutura de transporte e, ao mesmo tempo, atender ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 11, que visa tornar as cidades e os assentamentos humanos mais inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis. 

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O antigo terminal de ônibus, uma construção brutalista da década de 1960, era caracterizado por um design monofuncional e elevado consumo de energia. Após uma grande transformação, o Transbay Transit Center se apresenta como um complexo multifuncional que não só conecta os edifícios ao redor, mas também oferece aos moradores de São Francisco um espaço público gratuito, um parque no terraço, proporcionando áreas verdes em um ambiente urbano denso.

O projeto incorporou diversos elementos de design sustentável e arquitetura bioclimática. Um dos destaques é um grande poço de luz central, que não apenas ilumina naturalmente os vários níveis do complexo, mas também atua como um eixo de ventilação. Isso melhora a qualidade do ar e a ventilação natural, ao mesmo tempo em que reduz significativamente a demanda por energia elétrica, contribuindo para a eficiência energética do edifício. 

A integração de diferentes modos de transporte no nível mais baixo do centro também promove a mobilidade eficiente, permitindo o fluxo de pedestres sem obstáculos e conectando facilmente o edifício ao nível da rua da cidade. O terminal de ônibus e o edifício adjacente de escritórios estão diretamente acessíveis, proporcionando uma conectividade completa dentro do complexo.

Foto: Aurora Angeles/ Shutterstock

Além das inovações arquitetônicas e de infraestrutura, o Transbay Transit Center adota tecnologias ecológicas, como trocadores de calor e tanques de armazenamento de água. para a reutilização de águas pluviais. A presença de árvores ao longo do complexo, incluindo no telhado, ajuda na purificação do ar, na regulação do clima e no sequestro de carbono, um benefício ambiental importante em uma cidade com altos níveis de poluição e emissões de gases do efeito estufa.

Projetos como o Central Park em Taiwan, o Madrid Río e o Transbay Transit Center exemplificam como a integração de recursos naturais e tecnologias sustentáveis pode transformar áreas urbanas, promovendo não apenas o conforto e a mobilidade dos cidadãos, mas também contribuindo para um futuro mais sustentável. À medida que a arquitetura bioclimática se expande, ela não só melhora a qualidade de vida urbana, mas também representa uma resposta aos desafios ambientais globais, demonstrando que é possível construir com o clima e para o clima, criando cidades mais resilientes e adaptadas às necessidades do mundo.

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