Carlos Lemos: uma vida dedicada à cidade e à cultura

Arquiteto, educador, pesquisador e guardião do patrimônio, Lemos transformou a arquitetura em um diálogo vivo entre cultura, memória e cidade.

Por Nathalia Ribeiro em 27 de agosto de 2025 6 minutos de leitura

Edifício Copan, projeto de Oscar Niemeyer que contou com a colaboração de Carlos Lemos
Edifício Copan, projeto de Oscar Niemeyer que contou com a colaboração de Carlos Lemos (Foto: wideweb/ Shutterstock)

Carlos Alberto Cerqueira Lemos dedicou sua vida a entender e transformar a cidade para além da arquitetura convencional. Para ele, a cidade não era apenas um espaço físico, mas um organismo vivo, carregado de histórias, memórias e significados profundos. Como educador e guardião da cultura arquitetônica brasileira, Lemos ajudou a construir uma visão que valoriza a identidade e o patrimônio do País, fazendo da arquitetura uma forma de diálogo com o tempo e a sociedade. Essa trajetória rica e inspiradora chegou ao fim em 6 de agosto, quando faleceu aos 100 anos.

Arquiteto, professor, pesquisador, artista e defensor do patrimônio cultural, Lemos foi movido pela convicção de que a arquitetura é uma linguagem capaz de revelar e moldar a identidade de um povo. Ele inspirou inúmeras gerações de arquitetos e urbanistas a olhar para a cultura brasileira com sensibilidade e profundidade.

Nas redes sociais, o Departamento do Patrimônio Histórico (DPH), da Prefeitura de São Paulo, salientou a contribuição intelectual do arquiteto para o “reconhecimento do patrimônio cultural e para a história da arquitetura e do urbanismo brasileiros”. E acrescentou que Carlos “dedicou sua trajetória à valorização da arquitetura brasileira, à preservação e difusão da nossa memória urbana, e à formação qualificada de profissionais e pesquisadores.”

Vida e formação

Carlos Lemos nasceu em 1925, em São Paulo, e formou-se arquiteto em 1950, integrando a primeira turma da Faculdade de Arquitetura do Mackenzie. Desde cedo, demonstrou interesse tanto pelo fazer arquitetônico, quanto pela reflexão crítica sobre o espaço urbano e suas transformações.

Ainda muito jovem, com apenas 25 anos de idade e recém-saído da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Lemos, que nas horas vagas também se aventurava pelas artes como pintor, foi contratado pelo escritório de Oscar Niemeyer em São Paulo. Na época, Niemeyer estava inteiramente dedicado ao projeto de Brasília. Coube a Lemos a missão de chefiar a construção do Copan, o emblemático edifício localizado no número 200 da Avenida Ipiranga, considerado um dos maiores na categoria residencial. Mais do que apenas executar, ele fez ajustes no desenho original e ajudou a dar forma ao que viria a ser um dos maiores ícones da arquitetura paulistana.

Parque Ibirapuera (Foto: ByDroneVideos/ Shutterstock)

Além disso, Lemos colaborou em outro projeto emblemático de Niemeyer, o Parque Ibirapuera, e deixou sua assinatura em edifícios marcantes da cidade, como o Eiffel, o Montreal e o Triângulo. Sua atuação também se estendeu ao desenho de residências em diferentes localidades, de São Paulo/SP a Ubatuba/SP, passando por Ibiúna/SP. Entre seus clientes ilustres, esteve o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Mas sua formação foi além dos canteiros de obras. Interessado pela história da arquitetura, pelas formas de morar e pelas manifestações populares, Lemos mergulhou em estudos sobre o patrimônio construído e as características da arquitetura brasileira. Essa combinação entre prática, pesquisa e preservação se tornaria uma constante em sua trajetória.

A cidade como ação múltipla

Em 1954, Carlos Lemos iniciou sua longa trajetória como professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP), onde lecionou por 60 anos, influenciando gerações de arquitetos. Com olhar atento para as especificidades culturais e históricas do País, foi um dos principais responsáveis por inserir o estudo da história da arquitetura nacional e da preservação do patrimônio no centro da formação acadêmica.

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, onde em Em 1954, Carlos Lemos iniciou sua longa trajetória como professor
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (Foto: Wikimedia Commons)

Em nota, a FAU-USP manifestou os mais sinceros sentimentos à família de Carlos Lemos, exaltou a excepcionalidade de sua trajetória e relembrou que, em 2022, Lemos recebeu o título de professor emérito da instituição, uma forma simbólica de reconhecer a importância de seu trabalho como pesquisador, educador e defensor da cultura arquitetônica nacional. 

No entanto, a trajetória de Lemos foi muito além da sala de aula. Ele foi o primeiro diretor técnico do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (CONDEPHAAT), cargo que ocupou entre 1968 e 1981, período em que ajudou a consolidar políticas públicas voltadas à proteção de bens culturais paulistas. Também assumiu, em seguida, a curadoria do Museu de Arte Sacra de São Paulo, entre 1982 e 1984, onde coordenou uma renovação da expografia com foco na valorização dos acervos e da arquitetura do próprio museu.

Essa atuação multifacetada, refletia sua convicção de que o arquiteto e urbanista deve ser também mediador cultural e agente público. Não por acaso, esteve presente em diversas instâncias de planejamento e preservação, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (CONPRESP), sempre defendendo políticas que reconhecessem os valores histórico, social e simbólico da paisagem construída.

Por conta dessas contribuições, a seccional paulista do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB/SP), em sua nota de pesar, reconheceu Carlos Lemos como “uma das figuras centrais da arquitetura brasileira no século XX e início do XXI. Dotado de vasta erudição e generosidade intelectual, ele formou inúmeras gerações de arquitetos e urbanistas, contribuindo decisivamente para a consolidação de importantes áreas de pesquisa, ensino e preservação do patrimônio cultural no Brasil.”

Entre arte e arquitetura

Paralelamente às vidas acadêmica e institucional, manteve intensa produção artística. Participou de salões e bienais, teve obras premiadas em concursos estaduais e integradas ao acervo da Pinacoteca de São Paulo. Entre os projetos de investigação que coordenou, destaca-se a pesquisa sobre habitação popular paulistana, que antecipou debates contemporâneos sobre moradia e urbanização. Em 1978, promoveu um dos primeiros cursos de especialização do País voltado ao patrimônio ambiental urbano, reunindo arquitetos, urbanistas e gestores em torno da discussão sobre preservação em contexto metropolitano.

Ao longo da vida, publicou mais de uma centena de artigos e 18 livros de referência como Casa Paulista, Dicionário da Arquitetura Brasileira, O que é Arquitetura, Alvenaria Burguesa e Da Taipa ao Concreto, todos voltados a documentar e interpretar a história da arquitetura nacional com profundidade e sensibilidade. Lemos compreendia que a arquitetura brasileira precisava ser estudada a partir de suas próprias raízes e não apenas pelas lentes importadas das escolas europeias.

Para o professor da USP e arquiteto, Hugo Segawa, Lemos era “um escritor e narrador, cujo apreciável manejo de palavras, com a coloquialidade que importunava acadêmicos enrustidos, introduzia e facilitava a compreensão da arquitetura e novos e complexos temas que emergiam nos anos 1980 para os leitores, especializados ou não”.

Arquitetura e urbanismo com olhar sensível

Embora tenha se destacado como professor, pesquisador e artista, Carlos Lemos nunca deixou de lado a prática da arquitetura. Seu portfólio reúne uma diversidade de projetos que vão do residencial ao institucional, do desenho urbano à atuação em políticas públicas.

Nos anos 1950, sua colaboração com Oscar Niemeyer no escritório de São Paulo foi decisiva para sua formação como arquiteto moderno. Mas foi também fora dos grandes centros que seu olhar projetual encontrou espaço para experimentações mais profundas. Como urbanista, desenvolveu loteamentos que conciliavam ocupação humana e preservação ambiental, conceito que hoje soa contemporâneo, mas que ele já praticava há décadas. 

Destacam-se dois projetos nesse sentido: o loteamento da Praia Vermelha do Sul, em Ubatuba/SP, conhecido como “praia dos arquitetos” por reunir construções integradas à paisagem nativa, e o Jardim Mirim-Açú, em Ibiúna/SP, às margens da represa de Itupararanga, que propôs uma ocupação com foco em qualidades ambiental e paisagística.

Uma trajetória marcada por reconhecimento 

Mais do que um autor de obras arquitetônicas e literárias, Carlos Lemos foi um formulador de ideias. Seu legado não se resume à produção material, embora ela exista e resista, mas sobretudo à maneira como ajudou a moldar a consciência crítica sobre o espaço construído no Brasil. Por isso, foi reconhecido de diversas formas.

Em 1962, foi agraciado com a Medalha Martim Afonso de Sousa pelo Instituto Histórico e Geográfico Guarujá-Bertioga, reconhecimento que valoriza sua ligação com a história regional e sua atuação na preservação da memória. Mais tarde, em 1987, recebeu a Medalha Rodrigo Mello Franco de Andrade, concedida durante as comemorações dos 50 anos da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), um marco institucional para a proteção do patrimônio brasileiro.

Sua produção intelectual também foi amplamente reconhecida. Em 1994, conquistou o Prêmio Jabuti na categoria Ensaio, com o livro Ramos de Azevedo e seu escritório, evidenciando sua contribuição para a documentação e reflexão sobre a história da arquitetura paulista.

A projeção internacional de Lemos foi confirmada em 1997, quando participou como delegado brasileiro no V Encuentro Internacional sobre Preservación del Patrimonio Histórico y Urbanístico del territorio de Moxos y Chiquitos, evento que lhe rendeu o título de Huesped Ilustre da cidade boliviana de San Ignacio de Moxos, patrimônio tombado pela UNESCO.

No campo da crítica e valorização das artes, a Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) reconheceu seu trabalho em 1999, concedendo-lhe o diploma de Sócio Honorário por sua contribuição à arte e cultura nacionais.

Nas últimas décadas, seu impacto foi reafirmado por várias instituições. Em 2012, recebeu o Grau de Comendador da Ordem do Mérito Cultural, outorgado pelo Ministério da Cultura, além da Medalha Anchieta e do Diploma de Gratidão da Cidade de São Paulo, concedidos pela Câmara Municipal.

Em 2017, nos 80 anos do IPHAN, recebeu a Medalha Mário de Andrade pelo reconhecimento de sua longa e notória dedicação à valorização e proteção do patrimônio cultural brasileiro. Mais recentemente, em 2021, foi homenageado no III Congresso Nacional para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural, organizado pelo CICOP Brasil, Instituto Federal de São Paulo e Universidade Federal de São Paulo, reforçando sua influência na preservação cultural contemporânea.

Essa extensa lista de reconhecimentos expressa a relevância e a consistência de sua atuação, que atravessou fronteiras disciplinares e geográficas, deixando um legado para a arquitetura, o patrimônio e a cultura brasileiras.

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