Sutil, mas poderoso, conheça o cimento de micróbios 

Neutro em emissão de CO2, biocimento foi criado pela arquiteta cubana Laura Maria Gonzalez a partir da ação de bactérias.

Por Redação em 5 de novembro de 2024 5 minutos de leitura

cimento de microbios 
Foto: Laura Gonzalez

Embora as bactérias sejam comumente associadas a doenças, muitas desempenham papéis fundamentais no organismo humano, como na digestão, na destruição de células patogênicas e na produção de vitaminas essenciais. Os micróbios podem ir além e servir como base de materiais de construção sustentáveis, como o biocimento, uma espécie de cimento de micróbios criado pela arquiteta e designer Laura Maria Gonzalez, que nasceu em Havana, Cuba, e vive nos Estados Unidos. 

O processo de fabricação desse material inovador e surpreendente é sustentável porque é neutro em emissão de gás carbônico, uma vez que não utiliza calor. Sua aparência é similar à do concreto tradicional. Para criar o biocimento, Laura coloca bactérias em moldes 3D e preenche-os com uma mistura de uréia e cálcio. A partir disso, os organismos vivos respondem à alimentação e formam cristais de carbonato, o que aumenta a força geral do material e resulta no cimento de micróbios, que pode assumir diferentes formatos.  

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Cimento de micróbios, origem na arte

O uso do cimento de micróbios está em fase de testes para medição de sua resiliência tanto em relação à dureza quanto à resistência a diferentes condições climáticas. O biocimento foi apresentado na exposição “Microbes Make Mountains”, no Keller Gallery do Massachusetts Institute of Technology (MIT), na cidade de Cambridge, estado de Massachusetts, nos Estados Unidos. A mostra reuniu esculturas moldadas em biocimento por Laura e teve como objetivo revelar a arte que pode resultar da exploração das complexas interações entre micróbios e minerais. Segundo material de divulgação da exposição, o objetivo era estimular a curiosidade sobre o incrível potencial do mundo microbiano e “essas interações sutis, porém poderosas, que resultam em uma notável variedade de cores, texturas e estruturas”. 

Foto: Laura Gonzalez

A exposição resultou do trabalho de três anos de Laura em seu projeto financiado por uma bolsa do Council for the Arts at MIT e pelo Departamento de Arquitetura do instituto. As soluções de design inovadoras criadas por Laura – como o biocimento – buscam conexões entre tecnologias digitais, materiais físicos e organismos vivos, em direção à sustentabilidade. O foco da arquiteta está nas relações intrincadas entre humanos, micróbios e ambiente compartilhado. Sua prática reflete uma profunda apreciação pela interconexão dos sistemas vivos e sua potencial integração no design arquitetônico. 

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De cavernas a Manhattan  

Antes de suas pesquisas com materiais naturais, Laura trabalhou durante quatro anos na construção de uma torre de escritórios em Manhattan, Nova Iorque. A experiência chamou sua atenção para a forte emissão de gás carbônico decorrente da produção de concreto, o que despertou o seu interesse pelas matérias-primas alternativas e, acima de tudo, sustentáveis, como o cimento de micróbios. 

fase de testes
Foto: Laura Gonzalez

A ideia do biocimento surgiu também após Laura observar que bactérias são responsáveis ​​por formações minerais como estalactites, depósitos em forma de pingentes de gelo geralmente encontrados dentro de cavernas. Ela pensou, então, em como alavancar a relação dinâmica entre bactérias e minerais para criar um material de construção orgânico. Em entrevista ao site do Center for Art, Science & Technology do MIT, ela contou: “A grande questão que levei ao MIT foi: podemos construir edifícios?”. Foi então que ela começou sua pesquisa com cimento de micróbios.  

Para criar suas esculturas para a exposição “Microbes Make Mountains”, Laura fez moldes de peças menores e interligadas, em formatos de ossos, e combinou vários minerais e micróbios dentro de cada uma para facilitar o crescimento do biocimento. O design e o formato das esculturas refletem as necessidades de fabricação, como estabilidade, e as necessidades de seus micróbios vivos, incluindo bastante área de superfície para permitir que eles tenham oxigênio, para “encontrar um equilíbrio entre o que os micróbios precisam e o que você quer que eles façam”, define a arquiteta.  

A ideia é que, no futuro, o biocimento não seja apenas contemplado em uma exposição, mas utilizado como matéria-prima pela indústria da construção civil, o que contribuirá para a criação de projetos que respeitem o meio ambiente e funcionem em harmonia com a natureza. 

A arquiteta e urbanista brasileira Helena Ruette, reconhecida por suas contribuições em projetos sustentáveis e inovadores, principalmente com bambu, explica que o próximo passo para um projeto como o do biocimento é, após a fase de testes, “um bom estudo de viabilidade financeira, além de bastante investimento na sua produção, para que seu custo final seja viável”. 

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Cimento de micróbios, elemento transformador 

Helena Ruette, arquiteta e urbanista

Helena classifica o biocimento criado por Laura como material altamente resistente e natural, que “pode ser um elemento transformador para a construção civil”. Para ela, o grande desafio para a sua utilização em larga escala é justamente o fato de o biocimento ser produzido por meio da interação com bactérias e depender, consequentemente, de ciclos e fases de crescimento naturais. “Isso faz com que o material vivo seja sensível a condições climáticas diversas, por exemplo, e precise constantemente de aditivos que regulem o seu crescimento, para que não perca a sua rigidez. Pensando no uso em larga escala, neste momento esse poderia ser um impeditivo para sua aplicabilidade em qualquer ambiente, devido à sua alta sensibilidade”, avalia a arquiteta brasileira. 

“De qualquer forma, imagino que as pesquisas do MIT já estão considerando esses aspectos e garantindo que o produto tenha a rigidez necessária após alguns ciclos de crescimento, podendo se tornar um material inanimado e, aí sim, ser aplicado amplamente, sem depender a todo momento das bactérias”, comenta.

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Tríade 

“Fico extremamente feliz em saber que estão financiando esse tipo de alternativa. Acredito que, se tivéssemos feito isso há um século, estaríamos muito à frente no que tange à sustentabilidade dos materiais usados na construção civil”, frisa Helena. “Acredito que a tríade entre alta tecnologia, materiais naturais e saber ancestral irá nos auxiliar na criação de ´super` materiais com alta performance e durabilidade, que não agridem em nada o meio ambiente”. 

Ela conta que, todo ano, surgem inúmeras pesquisas acadêmicas dedicadas a novos materiais sustentáveis, mas que, “com baixo suporte financeiro e sem um plano de negócios que possa injetar recursos para uma produção em larga escala, esses materiais acabam ficando obsoletos por custarem muito caro e não terem produção”. 

A arquiteta destaca que, em seu escritório, ela já trabalha com alguns materiais nesse sentido, como a resina de mamona, que é brasileira, ou a cortiça projetada, trazida por seu parceiro de trabalho Mauro Tosta, da Espanha, além de materiais naturais tradicionais, como bambu e terra. “No entanto, sempre estamos em busca de novas possibilidades e, consequentemente, ficamos de olho nas novas pesquisas. Acredito que, em alguns anos, se tivermos um investimento maior na produção desses materiais verdadeiramente ecológicos, incentivos fiscais e um bloqueio aos materiais que significativamente depredam o meio ambiente, poderemos reverter essa lógica, trazendo vida para a construção civil e não eliminando nossas possibilidades de habitarmos em harmonia o planeta Terra”, finaliza Helena.