A crise climática intensifica a pressão sobre governos, empresas e centros urbanos para reconfigurarem seus modelos de desenvolvimento. Com cerca de 75% das emissões globais de Gases de Efeito Estufa (GEE) associadas à queima de combustíveis fósseis, segundo a Revista Pesquisa FAPESP, o debate em torno da transição energética ganha centralidade nas agendas multilaterais, especialmente às vésperas da 30ª Conferência das Partes (COP30), marcada para ocorrer em Belém. Neste contexto, o Brasil assume posição estratégica ao sancionar, em outubro de 2024, a Lei nº 14.993 — o novo marco legal apelidado de Lei do Combustível do Futuro.
A legislação estabelece diretrizes para fomentar o uso de biocombustíveis, viabilizar a captura e o armazenamento de carbono, regulamentar o uso de combustíveis sintéticos e incentivar cadeias produtivas voltadas à descarbonização do setor de transportes. A meta é evitar a emissão de 705 milhões de toneladas de CO₂ até 2037. A proposta, além de posicionar o País como um dos principais fornecedores de energia limpa para os mercados internacionais, ancora a narrativa brasileira de protagonismo climático em um contexto de crescente demanda por soluções energéticas sustentáveis.
Entre os pilares da nova lei estão programas como o ProBioQAV, que estimula a produção e uso do Sustainable Aviation Fuel (SAF) – o combustível sustentável da aviação -, apontado como alternativa promissora para descarbonizar a aviação civil; e o Programa Nacional de Diesel Verde (PNDV), voltado à substituição progressiva do diesel fóssil por variantes produzidas a partir de óleos vegetais e resíduos orgânicos.
A legislação também avança na consolidação do mercado de biometano com a criação de um certificado de garantia de origem, e redefine as misturas obrigatórias de biocombustíveis na gasolina e no diesel. No caso da gasolina, o percentual mínimo de 27% de etanol foi mantido, mas com permissão de variações entre 22% e 35%, a serem definidas pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE). Para o biodiesel, haverá um aumento gradual de 1 ponto percentual ao ano a partir de 2025, até atingir 20% em 2030.
E, pela primeira vez, o País estabelece também um marco regulatório para a captura e o armazenamento geológico de carbono (CCS), além de regulamentar o uso de combustíveis sintéticos produzidos a partir de hidrogênio verde e CO₂ capturado — uma aposta de longo prazo para setores de difícil descarbonização, como cimento, siderurgia e refino.
Combustível do futuro e os desafios da descarbonização

Embora haja avanços normativos, a transição para o combustível do futuro no Brasil encontra barreiras relevantes do ponto de vista técnico, econômico e institucional.
Um dos principais gargalos é a infraestrutura atual, que ainda não oferece condições para suportar tecnologias como o hidrogênio verde e os veículos elétricos. No caso da eletromobilidade, por exemplo, o Brasil carece de uma rede robusta de recarga, como aponta um levantamento do Estadão, o que freia a adesão do consumidor e das empresas ao transporte limpo.
O custo da transição é elevado e coloca desafios tanto para a iniciativa privada, quanto para o setor público, especialmente nas grandes cidades. São Paulo, por exemplo, que havia projetado eletrificar 50% da frota de ônibus até 2028, recuou do compromisso diante dos investimentos bilionários necessários para aquisição de veículos, adaptação de garagens e reestruturação da rede de abastecimento, mas mantem a meta de 100% até 2038. O descompasso entre ambição e capacidade de execução revela a urgência de modelos de financiamento mais robustos, como parcerias público-privadas e mecanismos de incentivo fiscal.
Do ponto de vista industrial, o desafio é escalar a produção de combustíveis sustentáveis em ritmo compatível com as metas definidas na lei. Estimativas do Ministério de Minas e Energia apontam a necessidade de mais de R$ 1 trilhão em investimentos ao longo da próxima década apenas para consolidar o setor de biocombustíveis.
Pequenas e médias empresas enfrentam restrições adicionais, como acesso limitado a crédito e carência de capacitação técnica, o que compromete a descentralização das soluções. Iniciativas federais, como o programa Brasil Mais Produtivo, buscam mitigar esse desequilíbrio, mas ainda operam em escala inferior à demanda real.
O papel das cidades

Outro fator estruturante da transição é o papel das cidades. Os centros urbanos concentram emissões, consumo energético e vulnerabilidades socioambientais, mas também possuem enorme potencial de inovação e mobilização. Em 2025, o governo federal destinou R$ 8,4 bilhões para a mobilidade urbana, dos quais R$ 4,4 bilhões foram alocados especificamente para a renovação da frota de ônibus, com a aquisição de 2.296 ônibus elétricos. Atualmente, segundo a Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE), 21 municípios brasileiros operam com 642 ônibus elétricos em circulação. Essa movimentação resulta em impactos mensuráveis: estudos do WRI Brasil estimam que a poluição do ar, altamente associada à frota urbana movida a diesel, é responsável por cerca de 51 mil mortes anuais no País. A substituição dos modais poluentes por veículos movidos a eletricidade ou biocombustíveis pode operar como estratégia integrada de saúde pública, justiça ambiental e mitigação climática.
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A COP30, portanto, não será apenas um palco para apresentar metas. O evento carrega expectativas globais quanto ao reposicionamento do Brasil como protagonista climático. Com uma matriz energética composta por mais de 88% de fontes renováveis e um novo marco legal focado na descarbonização, o País apresenta ao mundo um projeto concreto para liderar a transição energética do Sul Global.
Oportunidades

Todo esse movimento está impulsionando a economia verde nacional e gerando oportunidades. O País já responde por 10% dos empregos verdes no mundo, ocupando a segunda colocação global na geração de postos de trabalho em setores como biocombustíveis, energia solar, hidrelétrica e eólica, de acordo com levantamento do Sebrae. Além disso, há cerca de 500 mil empregos na área de reciclagem e mais 500 mil em biocombustíveis no País.
No centro das negociações da COP30 estará a questão do financiamento climático. A diretora executiva da conferência, Ana Toni, antecipou à CNN que o Brasil levará uma proposta concreta para destravar recursos na ordem de US$ 1,3 trilhão para países em desenvolvimento. Essa agenda converge com as recomendações do BRICS, que defende a reforma dos bancos multilaterais e a criação de mecanismos para atrair capital privado.
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A movimentação já começa a atrair investimentos estruturantes. Projetos no Piauí, por exemplo, estão focados na exportação de hidrogênio verde para atender à crescente demanda da Europa e Ásia.
A chinesa Envision anunciou aporte de US$ 1 bilhão para a construção do primeiro Parque Industrial Net-Zero da América Latina, com foco em SAF, hidrogênio e amônia verdes a partir de biomassa nacional. Paralelamente, uma empresa norte-americana confirmou a instalação de uma planta de SAF em Maringá/PR, com investimento de R$ 2,3 bilhões, voltada majoritariamente à exportação.
A transição energética brasileira, ancorada no combustível do futuro, se desenha como um processo em curso — complexo, desigual e ainda em construção. As cidades despontam como espaços-chave dessa transformação. São nelas que os impactos são sentidos de forma mais imediata e onde as soluções ganham escala. O protagonismo brasileiro na COP30, portanto, dependerá não apenas da ambição climática, mas da capacidade de articulação entre diferentes níveis de governo, setor produtivo, sociedade civil e atores internacionais. Mais do que uma meta, o combustível do futuro é um vetor estratégico para redesenhar o futuro das cidades… e do País.