De aterro sanitário à atração

Com requalificação de espaço, aterros sanitários viram parque, aeroporto e até atração turística.

Por Redação em 11 de janeiro de 2024 6 minutos de leitura

aterro sanitario
Foto: Divulgação/ Ministry of Sustainability and the Environment Singapore

A cidade-estado de Singapura é um dos 10 melhores destinos turísticos do mundo de acordo com o ranking The World’s Best Cities da Resonance Consultancy – consultoria internacional focada em turismo e desenvolvimento econômico. A região recebe investimentos em pesquisa, inovação e infraestrutura – e chama atenção do mundo por ser uma cidade verde, cujo planejamento urbano incorpora elementos da natureza em edifícios, residências, empreendimentos e áreas públicas por meio de telhados verdes e jardins verticais, por exemplo. Entre os atrativos turísticos, um chama especial atenção por fugir do convencional: passear em um aterro sanitário – ou “lixão”, como esse tipo de local também é conhecido no Brasil.

Mas Pulau Semakau não é um aterro qualquer. Implantado em 1999 com técnicas inovadoras para descartar lixo e projetado para funcionar em harmonia com a biodiversidade da região, ele foi uma forma encontrada pelo governo local para resolver o problema da escassez de terra em Singapura, que tem uma área pequena para uma densa população. 

Assim, mesmo com os milhões de toneladas de lixo incinerados que ficam abaixo da superfície do Semakau, ele mais se parece com uma reserva natural, que, em 2005, virou atração turística oficial, localizada em duas pequenas ilhas artificiais de Singapura.

Sobre o lixo, espécies ameaçadas vivem

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Golfinho-corcunda-indopacífico (Foto: Reprodução/ Plataforma Media)

No aterro de Semakau, o lixo incinerado do continente chega em barcaças e a cinza molhada é esvaziada em fossos que são cobertos de terra, onde palmeiras e outras plantas crescem. O ecossistema que se formou no local abriga mais de 700 tipos de plantas e animais e até espécies ameaçadas e protegidas, como a garça-de-bico-grande e o golfinho-corcunda-indopacífico. Com isso, atrai pessoas do mundo todo e grupos locais de alunos para conhecerem as espécies. O ponto também é frequentado por praticantes de pesca esportiva, durante o dia, e por astrônomos, à noite, para observarem o céu longe das luzes da cidade. 

Por outro lado, o sistema de gerenciamento de lixo usado em Semakau, baseado inteiramente na incineração, é criticado por grupos de ambientalistas do Greenpeace. Para eles, os incineradores de larga escala, como os usados em Semakau, duram pouco (cerca de dez anos) e precisam ser trocados. Os ativistas também afirmam que a incineração transforma um problema do lixo em um problema de poluição e prejuízo à saúde: alegam que a incineração é fonte de substâncias cancerígenas, como dioxina, e outros poluentes nocivos como o mercúrio. Outro argumento contra o sistema de incineração é o risco, embora pequeno, de que o lixo vaze e contamine o oceano.

Aterro sanitário vira parque e até aeroporto

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Falta de espaço também é um problema para outra nação asiática, o Japão, que reutilizou um local antes ocupado por um aterro para construir o Aeroporto Internacional Kansai, no sudoeste de Osaka (uma das maiores cidades do país). Essa foi a solução diante da dificuldade de encontrar um lugar adequado para um aeroporto, longe dos domicílios. Outro empecilho: o terreno montanhoso. O aeroporto está localizado a quase 5 km da costa; é o primeiro do mundo construído no mar e uma referência na arquitetura mundial por sua ousadia e complexidade. 

A obra começou em 1987 e demorou sete anos para terminar em função do enorme desafio enfrentado pelos engenheiros e arquitetos. Por exemplo, para estabilizar o terreno coberto por 100 metros de argila aluvial foram utilizadas colunas de areia para absorver a umidade. Foram colocadas 69 câmaras de aço de 200 toneladas cada uma para fazer uma base sólida. Entre as câmaras de aço, foram colocados 48 mil blocos de concreto, pedras e cascalho grosso nas cavidades. Mergulhadores e uma frota de 80 navios foram mobilizados para transportar o material necessário para a construção. O aeroporto foi fundamental para atrair turistas internacionais para a cidade de Osaka, contribuir para a economia da região e viabilizar o transporte de produtos. 

O exemplo do aterro sanitário norte-americano

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Fresh Kills (Foto: Mike Segar/Reuters)

Vem de Nova Iorque outro exemplo de reutilização de espaço que antes servia como aterro. No bairro de Staten Island, o aterro de Fresh Kills passa por profundas transformações desde 2008 para se tornar o segundo maior parque nova-iorquino. Em outubro de 2023 foi inaugurado o primeiro trecho que permite acesso da população ao parque, que está sendo construído em etapas. Quando ficar totalmente pronto, oferecerá vistas das colinas e canais da área, trilhas para pedestres e ciclistas, deck com mirante e torre de observação de pássaros. O banheiro funcionará com compostagem, sem uso de água. 

O detalhe é que Fresh Kills já foi o maior aterro do mundo, onde eram jogadas até 29 mil toneladas de lixo por dia. A área virou descarte de lixo após a Segunda Guerra Mundial, quando o terreno era um pântano. A ideia inicial da prefeitura era construir moradias, mas a cidade crescia rapidamente e todo o lixo produzido pela população precisava de destino. 

A transformação do Freshkills Landfill em parque já custou mais de dois milhões de dólares, com financiamento do Fundo de Proteção Ambiental do Estado de Nova Iorque por meio do Programa Local de Revitalização da Orla Marítima.

Durante a inauguração da primeira parte do Freshkills Landfill, a comissária de parques de Nova Iorque, Sue Donoghue, disse que a iniciativa servirá como modelo para ideias de reuso de terras em todo o mundo e é um exemplo brilhante de restauração ecológica em área urbana. A previsão de conclusão é 2036.

Revitalização em São Paulo 

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Parque Villa Lobos (Foto: Reprodução/ Governo SP)

Em outra metrópole global, São Paulo, os parques Villa Lobos, da Juventude e Raposo Tavares foram erguidos sobre antigos depósitos de lixo. Também foi assim com a Praça Victor Civita, em Pinheiros. No local funcionou, entre 1949 e 1989, um incinerador de lixo, que contaminou o solo. No início dos anos 2000, a prefeitura fez um acordo com o grupo editorial Abril, que funcionava nas proximidades e foi responsável pelo financiamento e pela proposta de revitalização, que representou um grande desafio urbano, social e ambiental de uma área degradada, por meio de práticas sustentáveis. 

Para evitar o contato do público com o solo, um deck de madeira certificada foi fixado sobre o terreno, criando um percurso que conduz o visitante pelo espaço, incentivando passeios e atividades variadas, como shows e outros eventos. Lá também tem laboratório de plantas com espécies usadas em pesquisa para produção de biocombustíveis, hidroponia, renovação dos solos, fitoterapia e engenharia genética. A praça funciona com reúso de águas pluviais e utilização de placas solares. 

Investigação detalhada 

Destinação de lixo é um problema para as cidades porque aterros sanitários ocupam enormes áreas territoriais, que não param de crescer. Soluções de renovação urbana precisam ser pensadas e aplicadas, a exemplo da conciliação entre o funcionamento de um aterro com outras finalidades (como a turística, em Singapura, graças à restauração ecológica). Já os aterros que não podem mais receber resíduos e são fechados podem passar por transformações e ter um novo – e até surpreendente – uso, como o moderno aeroporto de Osaka, o parque nova iorquino Freshkills Landfill e os parques e praças paulistanos. 

O caminho para isso é aliar o trabalho de profissionais com a colaboração da população, associando-se a pesquisas profundas sobre o território. De acordo com pesquisa da faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), “o projeto de implantação de parques públicos em áreas que abrigavam lixões ou aterros controlados deve ser feito somente após uma investigação detalhada dos riscos de contaminação.” É preciso, segundo o documento, fazer sondagem do solo, mapear toda a extensão e definir a espessura da camada de lixo na área degradada. Apenas o processo de mapeamento pode levar meses para ser concluído. Assim, requalificar o espaço e, consequentemente, a vida de quem está no entorno de um aterro sanitário, requer um trabalho esmiuçado e desafiador, mas possível de se tornar realidade.