Já imaginou se rejeitos de mineração pudessem ser usados para despoluir rios da Amazônia? Essa possibilidade agora é realidade. Pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA) demonstram que resíduos industriais, como vermiculita e manganês — normalmente descartados em barragens ou pilhas de rejeitos — podem ser transformados em materiais capazes de remover poluentes da água, incluindo metais pesados e corantes industriais.
No Pará, esses resíduos representam uma ameaça significativa à fauna, à flora e às comunidades ribeirinhas, que dependem dos rios para alimentação e sustento. Também prejudicam o ecossistema aquático e ameaçam atividades econômicas essenciais, como o turismo ecológico, cada vez mais relevante na região. Muitas vezes, esses resíduos permanecem sem uso por décadas, especialmente em áreas como a província mineral de Carajás/PA, representando um risco ambiental persistente.
A tecnologia desenvolvida pelos pesquisadores da UFPA aproveita esses materiais descartados, criando uma solução local, de baixo custo e adaptada aos desafios ambientais da Amazônia, transformando um problema histórico em uma oportunidade para proteger rios e comunidades.
Seguindo princípios da chamada “ciência verde”, a equipe desenvolveu materiais capazes de capturar poluentes da água. Dois deles se destacam: a vermiculita ativada com sódio, produzida a partir de resíduos descartados, e a fase tipo Shigaite LDH, criada a partir dos rejeitos de manganês. Testes simulando condições reais de contaminação mostraram resultados impressionantes: a vermiculita ativada removeu até 99% dos corantes industriais, enquanto a fase tipo Shigaite LDH eliminou 100% de metais pesados, como cromo e o próprio manganês, substâncias que representam sérios riscos à saúde humana e à biodiversidade. É a primeira vez que a fase tipo Shigaite é aplicada para essa finalidade.
A escolha desses poluentes não foi aleatória: corantes alteram a cor dos rios, reduzem a entrada de luz e o oxigênio disponível para peixes e plantas, enquanto metais pesados persistem no ambiente, entram na cadeia alimentar e oferecem riscos às comunidades que consomem água e peixes contaminados.
“A ideia é evitar o acúmulo desses resíduos e transformar passivos ambientais em algo que sirva para o meio ambiente, transformando esse que é um problema ambiental significativo no Norte do Brasil em parte da solução”, afirma Dorsan dos Santos Moraes, do Instituto de Geociências da UFPA e um dos responsáveis pelo estudo.
A tecnologia atua diretamente na origem da poluição, tratando e diminuindo a carga de contaminantes antes que cheguem aos rios, permitindo que a natureza conclua o processo de regeneração.
O estudo foi divulgado pela agência Bori e está publicado na revista “REM – International Engineering Journal”. Mas, apesar dos avanços, o pesquisador ressalta que ainda existem desafios para a valorização dessas descobertas, principalmente a escassez de recursos destinados a soluções para os impactos ambientais da Amazônia.
Em entrevista ao portal “Habitability”, Dorsan Moraes detalha essa inovação, mostrando como resíduos de mineração podem se transformar em aliados da natureza, contribuindo para a proteção dos rios e das comunidades ribeirinhas e ajudando a construir um futuro mais sustentável para a região.
O estudo mostra que rejeitos de mineração — antes vistos como lixo industrial — podem ser transformados em materiais que limpam a água. O que essa inversão de lógica representa para a ciência e para a própria mineração na Amazônia?

Dorsan Moraes: O rejeito da mineração não é um problema exclusivo da Amazônia. Ele afeta toda área onde há atividade mineradora. Os resíduos gerados acabam, inevitavelmente, depositados em bacias de rejeitos, onde ficam estocados até que se defina uma utilidade para eles — ou são simplesmente armazenados como lixo, em aterros controlados. Essa prática pode gerar sérios problemas ambientais. O caso de Brumadinho, em Minas Gerais, é um exemplo claro: segundo os dados divulgados sobre o rompimento de uma dessas barragens, cerca de 272 pessoas morreram e 11 continuam desaparecidas. A descoberta da possibilidade de reutilizar esses rejeitos — algo que também não é exclusivo do nosso trabalho — revela uma nova perspectiva. Ela aponta para a criação de novos materiais a partir desses insumos. Essa alternativa é importante não apenas para reduzir a quantidade de rejeitos estocados, mas também para contribuir para a solução de problemas ambientais, como a dispersão de poluentes no ambiente.
Como surgiu a ideia de transformar resíduos de vermiculita e manganês em materiais capazes de remover poluentes da água?
Dorsan Moraes: Esses dois insumos não são exclusivos do nosso trabalho, mas, nas pesquisas que desenvolvemos até o momento, foram os que apresentaram os melhores resultados. Esses estudos começaram em 2011, com a publicação do trabalho intitulado “Bentonite functionalized with propyl sulfonic acid groups used as catalyst in esterification reactions”, que nos abriu as portas para o entendimento da possibilidade de transformar materiais de origem natural — muito mais baratos que os produzidos industrialmente — em algo útil e benéfico para a sociedade. A partir daí, as pesquisas não pararam, e os resultados alcançados foram significativos, culminando nos avanços que estamos divulgando agora.
Quais foram os resultados mais surpreendentes nos testes — e o que mais te chamou atenção no comportamento desses novos materiais?
Dorsan Moraes: Os principais resultados estão publicados no periódico “Environmental pollutant removal tests by new materials synthesized from mineral tailings disposed in the region”, que representa uma extensão de duas outras publicações anteriores nessa linha de pesquisa (uma sobre “novo processo de vermiculita ativada por sódio” e o outro sobre “Os óxidos de Mn provenientes da Amazônia“. Nesse artigo, apresentamos os maiores índices alcançados para a remoção de determinados poluentes, simulando condições reais em águas residuais industriais.
No entanto, o aspecto mais relevante a ser destacado não é apenas o desempenho obtido, mas o processo de transformação desenvolvido, que pode ser aplicado a diferentes insumos, abrindo novas possibilidades para outros grupos de pesquisa. É importante lembrar que a ciência é um bem coletivo, voltado à busca de soluções para os desafios enfrentados pela humanidade.

A Amazônia é hoje uma das regiões mais impactadas pela mineração e também a que mais precisa de soluções ambientais urgentes. De que forma essa tecnologia pode ser aplicada na prática para despoluir rios e reduzir passivos ambientais?
Dorsan Moraes: A despoluição dos rios por meio dessa tecnologia não significa pegar a água já poluída e tratá-la até que se torne potável — isso seria algo muito difícil de alcançar. O objetivo é atuar na origem do problema, ou seja, na saída ou no tratamento das águas provenientes de mineradoras e indústrias. Dessa forma, o despejo que chega aos rios conterá uma quantidade mínima de poluentes, permitindo que a própria natureza consiga eliminar o restante. Poucos se atentam à capacidade natural de regeneração do meio ambiente, que depende diretamente da carga de resíduos à qual é exposto. Nós apenas damos um pequeno empurrãozinho nesse processo.
Que tipo de impacto social essa inovação pode ter para comunidades ribeirinhas e populações que vivem próximas às áreas de mineração?

Dorsan Moraes: Com a redução da poluição nos rios, haverá uma maior conservação da biota e, consequentemente, um aumento da população aquática. Isso é de vital importância para as comunidades ribeirinhas, que dependem principalmente da pesca como forma de complementação alimentar. Além disso, o turismo ecológico, cada vez mais presente nessas regiões, também se beneficia desse equilíbrio ambiental, gerando renda e fortalecendo a economia local.
Quando olhamos para o futuro da Amazônia, o senhor acredita que a solução para os impactos da mineração pode vir justamente da própria mineração?
Dorsan Moraes: Sim, é um setor rico, e a própria Amazônia é rica. Então, por que não direcionar uma parte desses recursos para pesquisas voltadas à preservação do meio ambiente? Basta observar os valores gastos em shows e eventos patrocinados pelas grandes empresas do setor. Acredito que investir em pesquisa ainda seria mais barato e traria benefícios duradouros, que podem repercutir por anos. Nossos filhos e netos certamente agradeceriam.
Essa pesquisa é um exemplo do que você chama de “ciência verde”. O que significa fazer ciência verde em um território como a Amazônia?
Dorsan Moraes: O conceito de “Ciência Verde” não é nosso, mas uma tendência mundial. Vejamos a definição apresentada por uma empresa multinacional: “Ciência verde se refere a um campo científico e um conjunto de disciplinas focadas em sustentabilidade, que buscam desenvolver produtos e processos que sejam seguros, eficazes e ambientalmente corretos, minimizando o uso de recursos não renováveis e a geração de resíduos perigosos…”. Assim, essa tendência deve ser seguida por todos que trabalham, em qualquer parte do planeta, com a extração, o desenvolvimento e a produção de novos materiais destinados a atender a sociedade. É essa postura que tende a garantir um futuro menos poluído para as próximas gerações — e, quem sabe, também para a nossa.
O senhor mencionou que falta investimento e atenção das empresas para pesquisas como essa. Por que ainda é tão difícil aproximar universidades e o setor produtivo no Brasil?
Dorsan Moraes: As leis ambientais no Brasil ainda são brandas, e isso, somado à necessidade de maior atenção ao desenvolvimento de tecnologia nacional, faz com que poucos se interessem em criar processos capazes de solucionar problemas locais. Hoje, vivemos um momento inicial de discussão mais ampla sobre o meio ambiente na Amazônia, impulsionado por grandes nações em eventos como a COP 30, em Belém. Essa mobilização pode despertar o interesse em investigar não apenas o que ocorre na Amazônia, mas também em outros continentes que influenciam o clima global.
As universidades precisam de mais editais voltados a esse tipo de pesquisa e de maior integração com as empresas — algo que tende a se fortalecer à medida que as leis ambientais se aperfeiçoarem e, se necessário, se tornarem mais rígidas. Além disso, os grupos de pesquisa devem ter seus trabalhos mais divulgados, para que a sociedade conheça o que de fato a universidade realiza em termos de desenvolvimento tecnológico.