Em meio ao ritmo acelerado e muitas vezes impessoal das grandes cidades, há quem olhe para o cotidiano urbano com um olhar atento, capaz de perceber não apenas os fluxos de veículos e ruas congestionadas, mas as histórias, os encontros e os obstáculos que moldam a vida de quem caminha. É nesse espaço de percepção que atua Leticia Sabino, mestra em Planejamento de Cidades e Design Urbano pela UCL e fundadora do Instituto Caminhabilidade.
Sua trajetória, que passou por experiências transformadoras na Cidade do México até o engajamento profundo com a realidade de São Paulo, revela uma convicção: a cidade é feita para ser vivida a pé, sentida, compreendida em cada detalhe do espaço público. Ao longo de quase 13 anos, ela transformou experiências pessoais em projetos, como a articulação da Paulista Aberta, consultorias, pesquisas e o Prêmio Cidade Caminhável, buscando traduzir dados e métricas em políticas que devolvam às pessoas o direito de ocupar, com segurança e prazer, cada rua da cidade.
Nesta entrevista ao Habitability, ela compartilha reflexões sobre mobilidade urbana, justiça social, gênero e a importância de enxergar a cidade como um organismo vivo, onde cada passo dado revela oportunidades de transformação, afeto e pertencimento. Um convite para repensar o caminhar, e, sobretudo, o jeito como queremos viver nossas cidades.
Você compartilhou em algumas entrevistas que sua visão sobre mobilidade urbana mudou durante um intercâmbio na Cidade do México. Como?
Leticia Sabino: A primeira coisa importante dessa experiência foi que lá eu mudei a forma de me deslocar. Antes de ir para a Cidade do México, eu morava em Santo André/SP e me deslocava principalmente de carro.
Quando fui morar lá, eu passei a me deslocar a pé, de ônibus, metrô e bicicleta. Meu deslocamento ficou muito mais complexo e interessante. Isso me fez perceber que, quando me deslocava de carro, eu não tinha um contato real com a cidade. Já lá, passei a ter esse contato com o espaço público. Era muita informação de repente, tanto para o bem, quanto para o mal.
Caminhar e usar meios mais sustentáveis têm essa ambiguidade: de um lado, você cria afeto pelo lugar, uma relação mais próxima, conhece pessoas, olha nos olhos, ouve os sons da cidade. Por outro, você sente muito mais as falhas: uma calçada ruim impacta diretamente, um ônibus que não conecta com o metrô muda sua experiência. Isso me levou a um nível de reflexão sobre a vida na cidade que eu nunca tinha tido.
O que havia de particular na Cidade do México que provocou em você essa mudança de perspectiva?

Leticia Sabino: Era uma cidade que já tinha várias políticas de mobilidade que ainda não existiam no Brasil em 2010. Já havia bicicletas compartilhadas, o que era muito inovador e genial. Passei a pedalar também pela cidade.
Morei próximo, por um tempo, da Avenida Reforma, uma das principais da cidade. Todos os domingos, ela era aberta para as pessoas. Essa experiência foi muito marcante e acabou me inspirando depois na criação da Paulista Aberta em São Paulo, porque moldava completamente a vivência das pessoas naqueles domingos. A avenida ficava cheia, as pessoas tinham uma vida super ativa, o domingo era o dia de ir para a rua, ocupar o espaço público, quase um resgate da brincadeira de rua. Então, foi uma experiência pessoal que me fez olhar as coisas de outra forma e, ao mesmo tempo, elementos que a própria cidade já proporcionava.
Você transformou essa experiência pessoal em projetos como a própria Paulista Aberta, SampaPé e o prêmio Cidade Caminhável. Quais foram os maiores desafios para traduzir insights subjetivos sobre caminhar e viver a cidade em projetos estruturados?
Leticia Sabino: Demorei um tempo para elaborar essa reflexão, mas hoje consigo falar com clareza: eu amava a Cidade do México e não gostava de São Paulo. A diferença estava muito ligada à forma como eu vivia e me deslocava em cada lugar. Em São Paulo, não havia ruas abertas para as pessoas, nem bicicletas compartilhadas e a lógica da cidade era totalmente voltada para os carros. Isso me incomodava e me fez questionar se outras pessoas também sentiam o mesmo.
Foi a partir disso que também veio o insight para a criação do Instituto Caminhabilidade?
Leticia Sabino: Um dado da pesquisa da Rede Nossa São Paulo me marcou: cerca de 70% dos moradores afirmavam que, se pudessem, não viveriam na cidade. Esse número sempre me pareceu alarmante, porque mostrava que grande parte das pessoas estava em São Paulo não por escolha, mas por obrigação, seja de trabalho ou por questões financeiras. Isso significa viver em um lugar que não oferece bem-estar, descanso nem qualidade de vida. Percebi então que meu incômodo era parte de um mal-estar coletivo.
Quando se investigava as razões dessa rejeição, apareciam dois pontos principais: segurança e deslocamento. E é justamente aí que o caminhar pode ser transformador. Essa percepção deu origem ao Instituto Caminhabilidade, que começou como SampaPÉ, promovendo passeios a pé pela cidade. A ideia era desmistificar o ato de caminhar, mostrar que ele pode ser prazeroso e, ao mesmo tempo, despertar nas pessoas uma nova consciência sobre os problemas que enfrentam diariamente. As caminhadas eram uma forma de romper com a naturalização dessa precariedade e ativar um olhar crítico e afetivo sobre a cidade.
Considerando essa veia de pesquisa, qual dos levantamentos ou análises se destacou mais para você?

Leticia Sabino: O Instituto nasce desse incômodo inicial que citei, mas com o tempo fomos sim aprofundando a reflexão a partir de dados da própria cidade. Descobrimos, por exemplo, que a maior parte das pessoas em São Paulo se desloca a pé. Um dado que contrariava a percepção comum de que todos estão de carro, já que o que se vê é trânsito e congestionamento. Essa constatação revela uma contradição: produzimos uma cidade injusta, que privilegia poucos e um modal que, em vez de integrar, fragmenta o espaço urbano.
Foi a partir daí que nos apropriamos do termo caminhabilidade. Passamos a estudá-lo de forma mais técnica e começamos a desenvolver consultorias, pesquisas e a levantar informações inexistentes no contexto das cidades brasileiras. Nesse processo, uma questão sempre nos inquietava: por que, mesmo com a maioria das pessoas caminhando, com políticas nacionais que colocam o caminhar como prioridade e diante de uma crise climática que escancara os impactos do transporte individual, ainda não conseguimos construir cidades mais ativas e caminháveis?
E por que isso acontece?
Leticia Sabino: São vários fatores, mas entendemos que é fundamental valorizar os bons projetos de caminhabilidade que já estão acontecendo no Brasil. Percebemos que esses projetos não são reconhecidos. Prefeitos e prefeitas que implementam iniciativas positivas nessa área não recebem crédito político e a sociedade também não vota ou apoia gestores por conta dessas realizações.
Por isso, vimos a necessidade de dar visibilidade e reconhecer quem está promovendo mudanças. Assim nasceu o Prêmio Cidade Caminhável. A ideia é que essas experiências inspirem mais pessoas a fazer escolhas políticas e cidadãs a partir de quem promove a caminhabilidade e não de quem asfalta ruas sem melhorar a qualidade de vida urbana.
Além do Prêmio, o Instituto já atua em 40 cidades brasileiras. Quais são os principais critérios que orientam a seleção desses territórios?
Leticia Sabino: Não selecionamos as cidades, são elas que nos procuram. Como organização sem fins lucrativos, nosso modelo de atuação depende de projetos. Precisamos de uma instituição interessada em financiar uma ação ou de um município que busque nossa assessoria. Às vezes, atuamos em cidades que já estão desenvolvendo alguma iniciativa de caminhabilidade e desejam nosso apoio nesse processo.
Por exemplo, em Curitiba/PR, Salvador/BA e João Pessoa/PB, nosso trabalho foi mais profundo porque essas cidades estavam envolvidas em projetos financiados pelo BID. O banco exigia que, além das ações previstas, as cidades também passassem por uma formação e por uma avaliação de caminhabilidade com perspectiva de gênero, um tema que trabalhamos bastante.
Falando em perspectiva de gênero, você já afirmou que “sem considerar a perspectiva das mulheres, não conseguiremos fazer uma cidade verdadeiramente caminhavel”. Por que uma organização de mobilidade urbana deve ter uma perspectiva de gênero?

Leticia Sabino: No caso do caminhar, há uma razão muito clara: as mulheres caminham mais do que os homens. Esse padrão se repete em todas as cidades brasileiras e latino-americanas, e não é por acaso. Estudos indicam duas razões principais, sendo a primeira a divisão social de papéis, que ainda coloca as mulheres como principais cuidadoras da sociedade, responsáveis por crianças, pessoas idosas e pelo cuidado da casa.
E quais as especificidades desses deslocamentos?
Leticia Sabino: Normalmente, mulheres acompanham crianças até a escola, levam familiares a consultas médicas e fazem compras frequentes em mercados e feiras, tornando sua mobilidade diária muito mais complexa e dependente do caminhar. Além disso, muitos desses deslocamentos ocorrem dentro do bairro ou em trajetos que o transporte público não atende adequadamente.
Dentro desse grupo de mulheres também existem diferentes realidades?
Leticia Sabino: Sim, criamos um modelo de cidade muito injusto e essa injustiça atravessa várias dimensões. Pesa mais para mulheres periféricas, pessoas pobres, com deficiência, crianças ou idosos, enquanto favorece principalmente homens jovens, atléticos e em geral brancos. E mesmo esses homens, em algum grau, também têm questões, mas o modelo urbano foi pensado basicamente para eles.
Se não compreendermos as necessidades desses diferentes grupos, nunca teremos cidades justas. A desigualdade se reproduz e se amplia, porque paridade salarial ou vagas universitárias iguais não resolvem problemas quando mulheres não conseguem chegar aonde precisam ou precisam interromper estudos por questões de deslocamento e segurança.
Quais elementos você considera fundamentais para que todos os cidadãos tenham acesso a oportunidades e a uma qualidade de vida equivalente?
Leticia Sabino: O ponto central, especialmente quando falamos de sensação de segurança, é garantir bairros realmente mistos, lugares onde moradia, comércio, serviços e trabalho coexistam. Isso mantém o movimento em diferentes horários e, sobretudo, garante a circulação de pessoas diversas.
Outro aspecto fundamental é a qualidade das calçadas, dos deslocamentos a pé e dos espaços públicos, que precisam convidar à permanência. Muitas vezes, o medo nas cidades está mais relacionado a ruas vazias do que à falta de iluminação. Mas não basta ter movimento, é preciso diversidade de usos e de público.
Como se chega a esse modelo?

Leticia Sabino: Oferecer praças com bancos confortáveis, por exemplo, garante que pessoas idosas tenham onde permanecer, socializar e ocupar o espaço público. O mesmo vale para ambientes pensados para a infância. A presença desses grupos é positiva para o tecido social, pois demonstra que o bairro é habitável e acolhedor. Para que isso aconteça de fato, é essencial reduzir as velocidades máximas nas vias.
Na prática, quais você identifica como os maiores obstáculos para tornar as cidades mais caminháveis e acolhedoras?
Leticia Sabino: Tem principalmente duas barreiras. A primeira é a indústria do carro, no Brasil e no mundo, que moldou fortemente a percepção de que o automóvel representa sucesso, status e progresso. Essa cultura foi extremamente eficaz, pois quando o automóvel chegou, parecia o futuro materializado. Por isso, quando voltamos a falar em caminhar, a ideia parece atrasada, como se o corpo humano não fosse “tecnológico” o suficiente para ocupar a rua. A transformação exige projetos culturais que desconstruam esse imaginário, passando por filmes, músicas e narrativas midiáticas que ainda celebram o carro como símbolo de progresso.
E a segunda barreira?
Leticia Sabino: É institucional e talvez ainda mais decisiva, porque molda a própria cultura. Enquanto nossas políticas públicas e ruas continuarem transmitindo privilégio ao carro, será quase impossível convencer a população de que pedestres e ciclistas têm prioridade. A cidade, por si só, não diz isso. Por isso, é fundamental que os tomadores de decisão tenham clareza da importância de reverter modelos ultrapassados e coragem para sustentar mudanças significativas.
Um exemplo inspirador é Paris, que vive esse processo de mudança, com liderança política disposta a enfrentar o debate, restringir carros em certas áreas e comunicar à população os benefícios para qualidade de vida, saúde e clima.
Como você avalia o projeto Sentindo nos Pés, que leva autoridades a caminhar pela cidade?
Leticia Sabino: Aprendemos que apenas explicar verbalmente os problemas não funciona. É preciso que secretários, prefeitos, vereadores e vereadoras, experimentem a dificuldade de caminhar, para que se comprometam de fato com a mudança. Um exemplo prático aconteceu com o antigo secretário de transportes de São Paulo. Durante a caminhada, ele percebeu os gradilhos de esquina, obstáculos que desviam os pedestres de sua linha de desejo, obrigando-os a caminhar até a faixa de pedestres, tudo para acomodar os carros. Surpreso, ele falou: “Que absurdo!” e pulou a grade. Na hora, explicamos que aquilo era responsabilidade da área dele e que ele tinha o poder de mudar a situação. Ele nem imaginava que esses gradilhos existiam, nem que poderia intervir sobre eles.
Você percebe alguma evolução nos modelos atuais de urbanismo que esteja provocando uma transformação significativa, como a redefinição do papel do carro nas cidades?
Leticia Sabino: Cada caso é diferente e as gestões também vão mudando. Ainda não se pode dizer que todos estejam conscientes e seguindo esse caminho, mas o discurso mudou bastante. Hoje, é incomum um prefeito ou prefeita não afirmar que prioriza os pedestres ou valoriza as crianças na cidade. No entanto, a coragem de transformar essas ideias em prática ainda é limitada.
Você poderia citar projetos em cidades brasileiras que considere bem-sucedidos em termos de urbanismo, mobilidade e qualidade de vida?
Leticia Sabino: Pelo prêmio de Cidades Caminháveis, vemos muitas iniciativas positivas e ousadas. Um exemplo é Caruaru, em Pernambuco, uma cidade de porte médio, que o projeto premiado foi um parque linear que transformou uma grande avenida, priorizando pedestres e ciclistas, conectando bairros e criando um espaço público de lazer. Outro exemplo é Natal/RN, que também desenvolveu vários projetos, mas o premiado foi em uma avenida que retirou uma faixa de carros para criar calçadas e ciclovias, ao lado de um rio com um pôr do sol impressionante. Esses casos mostram como é possível redistribuir o espaço urbano de forma criativa, unindo mobilidade, lazer e contato com a natureza.
Porém, embora a política nacional de mobilidade urbana estabeleça que os municípios devem priorizar modos ativos, o financiamento nem sempre acompanha essa diretriz. Nos próprios fundos municipais, muitas vezes não há verbas carimbadas para projetos específicos, permitindo que o dinheiro seja usado para qualquer finalidade, o que deixa ações voltadas para pedestres e ciclistas sem apoio financeiro consistente.
Se você tivesse a oportunidade de intervir agora em São Paulo ou em qualquer outra grande cidade brasileira, quais seriam as primeiras medidas?
Leticia Sabino: Eu faria uma cidade em que nenhuma via urbana ultrapassasse 30 km/h, porque a velocidade média das grandes cidades já gira em torno disso. Embora as pessoas tenham a ilusão de estarem correndo, na prática a média é de 30 km/h. Com ruas nesse ritmo, a cidade se torna muito mais convidativa para caminhar.
A base, portanto, é garantir ruas minimamente seguras do ponto de vista viário e, a partir daí, repensar os espaços públicos, vê-los mais como praças e parques do que como simples corredores de passagem. Para isso, é fundamental investir em vegetação, áreas de permanência, bancos e espaços de convivência. As ruas devem ser pensadas como locais para estar, socializar e descansar, e não apenas atravessar.
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