Uma fusão de municípios brasileiros em larga escala poderia mudar profundamente o mapa administrativo do País e trazer mais eficiência à gestão pública. É o que defende o estudo “Arranjos federativos e federalismo fiscal: uma proposta de fusão municipal no Brasil”, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), que propõe unir municípios vizinhos para formar novas unidades administrativas, chamadas de amálgamas municipais. A estimativa é ousada: reduzir em até 70% o número de municípios. Com isso, elevar em 36% a capacidade de autossuficiência fiscal da esfera municipal e diminuir em 25,7% os desequilíbrios fiscais regionais.
A pesquisa, publicada nos “Cadernos Gestão Pública e Cidadania”, da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e divulgada pela agência Bori, analisa como a fusão de municípios poderia corrigir distorções do modelo federativo brasileiro, marcado pela proliferação de pequenas cidades altamente dependentes de repasses da União.

Os pesquisadores analisaram dados populacionais e contábeis de 5.567 municípios brasileiros entre 2013 e 2021, excluindo Brasília/DF, por sua condição administrativa específica, e as ilhas de Fernando de Noronha/PE e Ilhabela/SP, por não fazerem divisa com outros municípios. O recorte considerou apenas municípios com até 119.213 habitantes, limítrofes entre si e pertencentes ao mesmo estado. A proposta parte da lógica de que municípios pequenos costumam ter baixo Esforço Fiscal de Arrecadação — indicador que mede a proporção da receita proveniente de tributos próprios — e, portanto, a fusão de cidades vizinhas com capacidades fiscais complementares poderia gerar entes mais equilibrados e sustentáveis.
Com base nesse critério, foi criado um modelo matemático que combinou diferentes possibilidades de fusão, simulando o impacto sobre o Esforço Fiscal de Arrecadação e comparando os cenários antes e depois da criação dos amálgamas. Os resultados mostram que a reorganização traria ganhos expressivos de eficiência e reduziria as disparidades entre as regiões.
A proposta reacende um debate delicado — e inadiável — sobre a sustentabilidade financeira das prefeituras e o futuro da descentralização no País. Ao todo, seriam afetados 95,4% dos municípios. “Seria uma saída que, no fim de tudo, geraria muito desenvolvimento, em especial para as áreas mais interioranas, onde encontram-se municípios com 5 mil habitantes ou menos”, diz Amarando Francisco Dantas Junior, um dos autores do estudo.
Em entrevista ao Habitability, o pesquisador fala sobre os desafios, as barreiras constitucionais e o que o Brasil poderia ganhar ao repensar seus limites municipais. Confira.
O estudo propõe algo bastante ousado: fundir cerca de 70% dos municípios brasileiros. O que motivou vocês a investigarem essa hipótese e o que ela busca resolver?
Amarando Francisco Dantas Junior: Essa questão surgiu a partir de uma inquietude recorrente: a percepção, presente em diferentes setores da sociedade, de que o Brasil tem municípios demais. Então nós identificamos que, entre 1940 e, aproximadamente, 2000, o número de municípios brasileiros saltou de cerca de 1.500 para aproximadamente 5.500 — um acréscimo de cerca de 4 mil novos municípios em seis décadas.
Por que isso aconteceu?
Amarando Francisco Dantas Junior: O crescimento se explica por diversos fatores. Havia certa facilidade em criar novas prefeituras, e lideranças locais viam nisso uma oportunidade de fortalecimento político, já que prefeitos no Brasil têm grandes autonomias administrativa e política. Além disso, distritos mais afastados dos centros urbanos buscavam autonomia para gerir seus próprios recursos e atender às necessidades locais.
Outro fator relevante era financeiro: o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) possui um piso, ou seja, garante um valor mínimo baseado em uma população de cerca de 10 mil habitantes. Se você tem um município com 10 mil habitantes, ele vai receber uma quantidade X de recursos por transferência, seja da União, seja dos Estados. Ao dividir um município de 10 mil em dois de 5 mil, ambos passam a receber o mesmo valor que um município de 10 mil habitantes recebia. É como se eles duplicassem o valor recebido para aquela região, criando um incentivo econômico à proliferação de novos municípios.
Portanto, a expansão do número de municípios no Brasil resultou de fatores políticos, sociais e financeiros, tornando a criação de novos municípios uma estratégia tanto política, quanto econômica. Neste contexto, era um bom negócio.
E quando o excesso de descentralização do sistema federativo brasileiro se transformou em um problema para as pequenas cidades?
Amarando Francisco Dantas Junior: Isso se transforma em um problema à medida que as unidades federativas municipais, ou seja, a camada municipal da nação brasileira, se torna preponderantemente composta por municípios de 10 mil habitantes ou menos. Municípios muito pequenos — os chamados micromunicípios, com cerca de 5 mil habitantes — enfrentam sérias limitações para oferecer bens e serviços públicos, principalmente devido à sua capacidade operacional reduzida.
Entre os fatores estão a baixa arrecadação própria, dificuldade de formar um corpo técnico qualificado e infraestrutura limitada, que inviabiliza equipamentos públicos essenciais, como hospitais e escolas. Consequentemente, a oferta de serviços públicos é restrita, e o governo estadual frequentemente precisa socorrer esses municípios.
Além disso, a literatura aponta que, a proximidade do prefeito com a população, embora positiva em termos de alinhamento às necessidades locais, pode também gerar desinteresse nas gestões fiscal e tributária, potencializando problemas financeiros. Então se ele não tem um corpo técnico administrativo, uma secretaria de receita municipal, o gestor também não vai ter interesse político em arrecadar os seus impostos locais.
Qual a consequência disso?
Amarando Francisco Dantas Junior: Essa combinação cria um ciclo de dependência, sobrecarregando o sistema federativo. Estudos recorrentemente apontam que mais da metade da camada federativa municipal brasileira não se sustenta. Eles não conseguem ter recursos suficientes para operacionalizar as suas atividades minimamente. Não conseguem equilibrar as suas contas. Isso também impacta o setor privado, que não consegue se desenvolver bem porque o poder público não tem capacidade fiscal de contribuir de modo relevante para que essa atividade privada consiga fundamentar-se para depois se desenvolver. Por isso, nós observamos, por exemplo, em cidades do interior, um baixo desenvolvimento econômico.
Na prática, o que significa criar “amálgamas municipais”, como cita o estudo? Como isso funcionaria no cotidiano de quem vive nessas cidades?
Amarando Francisco Dantas Junior: O termo surgiu da análise da realidade dos micromunicípios. Buscamos ir além do diagnóstico de dificuldades fiscais e operacionais e propor uma solução. Nossa equipe revisou a literatura internacional e, para nossa surpresa, identificou mais de 14 países que enfrentaram desafios semelhantes.
Ainda que cada país tenha sua própria estrutura legal, constitucional, a solução mais comum para o problema foi a fusão ou incorporação de municípios vizinhos, formando uma estrutura administrativa maior — o que chamamos de amálgamas municipais. No estudo, propomos a fusão, mas a incorporação geraria resultados semelhantes.
O que se espera com essa ação?
Amarando Francisco Dantas Junior: O efeito esperado é concentrar municípios muito pequenos em regiões estratégicas, criando um novo município com território ampliado, base econômica mais robusta e maior número de habitantes. O prefeito dessa amálgama teria mais recursos e capacidade para promover desenvolvimento regional e oferecer serviços públicos de forma eficiente, gerenciando uma área equivalente a quatro, cinco ou seis municípios anteriores. Perceba que ele sai de um contexto muito limitado somente ao seu município e passa a ter muito mais recursos econômicos, naturais e populacionais para poder desenvolver aquela região de acordo com essa nova realidade.
Formar uma amálgama municipal representa a reversão do processo de proliferação de micromunicípios, criando condições mais adequadas para gestão, desenvolvimento e sustentabilidade local.
Quais seriam os principais benefícios dessa fusão em termos de finanças públicas e eficiência na oferta de serviços, como saúde e educação?
Amarando Francisco Dantas Junior: Haveria uma redução no peso das transferências intergovernamentais, já que os municípios teriam maior arrecadação própria. Esse aumento permite ao prefeito atuar com mais liberdade, sem tantas amarras das verbas transferidas pela União ou Estados, que muitas vezes trazem consigo condições de aplicação desses recursos.
Municípios maiores também são mais eficientes na prestação de serviços públicos, devido às economias de escala. Por exemplo, a fusão de dois hospitais de pequeno porte em um maior otimiza o uso de pessoal, equipamentos e infraestrutura, reduzindo o custo per capita. Essa lógica se aplica também a aquisições, aumentando o volume de compras e diminuindo o custo unitário de produtos e serviços.
A fusão amplia a capacidade de profissionalização da administração pública e consolida uma gestão mais eficiente. Além disso, aumenta a base econômica municipal — população, recursos naturais e atividades produtivas — criando um arcabouço capaz de sustentar estratégias de desenvolvimento que seriam inviáveis em municípios isolados.
Que impactos sociais e políticos uma reorganização dessa magnitude traria para as pequenas cidades, especialmente no interior do País, onde o poder público é uma das principais fontes de emprego e renda?
Amarando Francisco Dantas Junior: Não temos como prever as consequências exatas. Mas o que se espera, observando o que aconteceu em outros países, é um maior desenvolvimento econômico. Ou seja, mais emprego e renda. Claro que depende da gestão que será feita. Teoricamente, o poder público não deveria ser a principal fonte de emprego e renda — salvo raríssimas exceções. Mas no Brasil, milhares de municípios estão nessa situação, evidenciando desequilíbrios importantes.
A formação de amálgamas municipais reduziria essa dependência, criando estruturas administrativas e econômicas mais robustas. O gestor teria mais instrumentos para planejar, investir e gerar desenvolvimento equilibrado, aquecendo a economia local e ampliando oportunidades, sobretudo no setor privado.
Social e politicamente, a fusão altera o mapa administrativo, a identidade e o cotidiano das comunidades. Por isso, qualquer proposta desse tipo precisa ser amplamente debatida, com transparência e participação popular. Se o poder emana do povo, não podemos excluir a sociedade deste debate.
O senhor mencionou que há barreiras constitucionais para implementar algo assim. O que seria necessário mudar na legislação brasileira para viabilizar esse tipo de reorganização?
Amarando Francisco Dantas Junior: A Constituição, de certo modo, já prevê fusão, incorporação ou desmembramento de municípios. Porém, atualmente, o processo depende de regulamentação federal específica, que ainda não existe. É necessária uma lei federal disciplinando o assunto, com critérios, prazos e procedimentos.
O que envolve a fusão de municípios?
Amarando Francisco Dantas Junior: Ela envolve variáveis econômicas, sociais e históricas. Dois municípios poderiam se unir financeiramente, mas enfrentar barreiras culturais ou políticas devido a rivalidades locais. Nosso trabalho propõe critérios técnicos e científicos para orientar fusões, mas falta uma base legal consolidada.
Quais são os critérios que nós podemos utilizar? Quais são aqueles que são mais importantes? De que forma nós podemos fazer isso de um modo otimizado? Então é preciso ter mais trabalhos sobre esse tema para que se possa fundamentar a decisão dos gestores para que esse processo se dê de uma forma natural e bem conduzida.
Enquanto não há regulamentação, a criação de novos municípios permanece suspensa. Projetos de lei de 2015 e 2017 ainda aguardam movimentação no Congresso, e o avanço depende de ação política e técnica.
O senhor acredita que a reforma tributária em curso pode agravar ou reduzir essa dependência dos municípios menores?
Amarando Francisco Dantas Junior: A reforma tributária passou muitos anos sendo pensada e planejada e em pouco tempo ganhou força e foi aprovada. Provavelmente, assim também acontecerá com a reforma federativa em algum momento.
Quando nós elaboramos os resultados da pesquisa, a reforma tributária ainda não tinha sido aprovada. Então, ela está, de certo modo, fora do nosso escopo da pesquisa. Mas o que nós observamos de tendência é que, dada essa dificuldade da maioria dos municípios de gerenciar suas próprias contas no âmbito fiscal tributário, naturalmente há uma tendência de que essa gestão tributária se afaste dos municípios e se concentre nos governos estaduais e, principalmente, no governo federal. Existe uma tendência de que os municípios não consigam gerenciar bem a sua autonomia fiscal, sua autonomia tributária. Se os municípios vão receber mais ou menos recursos, isso depende de como a reforma for implementada ao longo dos próximos anos.
Pensando nos próximos anos, que tipo de transformação institucional o Brasil precisa para garantir municípios mais fortes, sustentáveis e menos dependentes da União?
Amarando Francisco Dantas Junior: Observo que a reforma federativa seguirá caminho semelhante à tributária: anos de maturação, produção de conhecimento e consolidação de critérios técnicos antes de implementação. Municípios pequenos precisam de apoio para superar desequilíbrios, e quanto mais se posterga, maiores os danos.
Para ser bem-sucedida, a reforma deve combinar ciência e participação social, envolvendo gestores de diferentes níveis e a população. Nós precisamos abrir para o debate, entender o que todos têm a dizer. E vamos construindo dessa forma um debate maduro baseado em critérios não só políticos, como no passado, mas também na ciência. Assim, será possível construir municípios mais fortes, reduzir desigualdades e ampliar oportunidades de desenvolvimento regional, promovendo um Brasil menos desigual e mais sustentável.