A relação entre o campo e a cidade permeia os séculos. Já foi tema de análise por diversas áreas do conhecimento, como a literatura. No livro clássico “A Cidade e as Serras”, publicado em 1901, o autor português Eça de Queirós questiona os efeitos dos males do avanço da civilização e levanta dilemas entre se viver na área urbana ou na rural. Mas a tendência de afastar esses dois cenários, como se fossem polos opostos, pode ser desconstruída: campo e cidade podem guardar muitas semelhanças. É o caso das hortas urbanas, espaços onde são cultivados verduras, legumes, frutas, plantas medicinais e temperos, em locais como lajes, áreas abandonadas e jardins. Também ajudam a promover educação ambiental, segurança alimentar e geração de renda. Há cases em cidades pelo Brasil e pelo mundo – são hortas urbanas para se inspirar.
Como é abordado no episódio 89 do podcast Habitability, não se trata de uma relação de afastamento, mas de interdependência entre cidade e campo. Mônica de Carvalho, socióloga do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP e pesquisadora do Núcleo São Paulo-Observatório das Metrópoles, e de Samuel de Mello Pinto, pesquisador do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getúlio Vargas, mostram como espaços urbanos e rurais estão conectados quanto a recursos e serviços, e economicamente, caso das hortas urbanas, bem como os desafios presentes nessa conexão e os caminhos que podem ser tomados.
Institucionalizar, incluir, multiplicar
“Hoje a gente tem, nos municípios brasileiros, agricultura sendo feita de várias maneiras – agricultura periurbana, em escolas, e hortas comunitárias, mas são ações dispersas. Como a gente dá escala para isso? Há dois caminhos: o primeiro é a institucionalização. Hoje, muitos municípios precisam de marcos legais regulatórios para que a agricultura aconteça. Por mais que tenha um agricultor fazendo sua horta, no seu bairro, ele não tem legislação que o ampare”, avalia Mello Pinto. Segundo ele, a institucionalização deve começar por legislação e ir até inclusão no orçamento público. O segundo caminho apontado pelo pesquisador é multiplicar iniciativas de hortas urbanas. “Produzir na cidade é diferente de produzir no campo. Na cidade há riscos de contaminação, o acesso à terra é difícil, são passos que o município precisa colocar para que essa agricultura (nas cidades e no entorno dela) seja multiplicada”.
Hortas urbanas para se inspirar Brasil afora

Além de diminuir a distância entre campo e cidade, hortas urbanas são espaços de aprendizagem e experimentação. Entre os benefícios desses locais estão redução da insegurança alimentar e nutricional, inclusão social, regeneração ambiental, redução dos gastos com energia e alimentos, fortalecimento comunitário e valorização cultural.
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Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), em 2022, mais de 800 milhões de pessoas cultivavam alimentos em cidades do mundo, o que representa entre 15% e 20% da produção global. Cidades brasileiras acompanham a tendência e têm hortas urbanas para se inspirar.
A Sampa+Rural, plataforma que reúne iniciativas de agricultura, turismo e alimentação saudável, contabiliza mais de 1,5 mil hortas urbanas na capital paulista. No topo do edifício do Centro Cultural São Paulo, em meio à Avenida 23 de Maio (uma das mais movimentadas da cidade), foi criada a horta do CCSP. Mantida por voluntários desde 2013, ela é palco de atividades de educação ambiental.
Já a Horta das Corujas, no Sumarezinho, zona oeste da capital, foi criada em 2012 por um grupo de moradores que revitalizou a área, antes abandonada. O nome foi inspirado na Praça das Corujas, que fica no local. O espaço é aberto ao público e oferece ações educativas. Por sua vez, a Horta das Flores, na Mooca, é uma iniciativa sustentável viabilizada por moradores também em 2012 – eles cultivam ervas, alimentos orgânicos e frutas, e tem até orquidário. A Horta da Tia Bela foi criada em um terreno entre as torres das linhas de transmissão de energia da Enel, no Jardim Imperador, zona leste. O projeto é desenvolvido pela ONG Cidade Sem Fome e beneficia famílias vulneráveis por meio de doação de legumes e hortaliças. Já Mulheres do Gau é uma horta ligada ao Grupo de Agricultura Urbana, em São Miguel, zona leste. No local já funcionou um lixão. Em parceria com a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) do estado, a horta implantada em 2002 conta com mais de 300 tipos de plantas comestíveis e medicinais.
Há também diversas hortas urbanas para se inspirar fora de São Paulo. Em Fortaleza/CE, o projeto municipal Horta Social, que começou em 2016, tem como objetivo combater a insegurança alimentar da população mais vulnerável, promover a agricultura urbana e fortalecer os vínculos comunitários. Os alimentos são distribuídos para as pessoas de baixa renda cadastradas no projeto. A colheita é distribuída por ordem de chegada. O público atendido também pode participar do plantio e manejo da horta, e de campanhas de incentivo à alimentação saudável e de prevenção de doenças. A capital cearense tem seis hortas sociais e uma produção de seis toneladas por mês de alimentos orgânicos, como alface, couve, tomate cereja e coentro. Até outubro de 2024, a Horta Social realizou 27 colheitas, com mais de 24 toneladas de alimentos distribuídos.
Em Teresina/PI, o projeto Hortas Comunitárias Sustentáveis geram emprego e renda para mais de 10 mil famílias do município. O intuito da iniciativa é melhorar o padrão alimentar de comunidades vulneráveis, aumentar a oferta local de hortaliças, diminuir a dependência de alimentos de outros estados e seguir preceitos do desenvolvimento sustentável, combinando a melhoria socioeconômica dos horticultores com a conservação ambiental. As hortas começaram a ser implantadas na década de 1980, primeiramente no bairro Dirceu Arcoverde, área escolhida por abrigar o maior conjunto habitacional da cidade. No projeto, a Prefeitura de Teresina é responsável pela revitalização, recuperação e construção de cercas, pintura de muros, recuperação de portões e calçadas, serviços de limpezas, podas e construção de banheiros. O projeto é voltado para toda a população da cidade, especialmente em situação de insegurança alimentar. São mais de 40 hortas comunitárias, com destaque para um cinturão verde de mais de cinco quilômetros, no já citado bairro Dirceu Arcoverde, onde mais de 2 mil horticultores urbanos trabalham para beneficiar milhares de famílias.
Aprender com as plantas

A Horta da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) nasceu em 2013 e fica no terraço da faculdade, na capital paulista. Com 500 metros quadrados, o espaço tem cultivo de plantas medicinais, frutas, verduras e até flores comestíveis. Mais de 5 toneladas ao longo de 11 anos e 9 meses já foram cultivadas, entre hortaliças convencionais, Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs) e ervas medicinais. A horta é reconhecida pela sua abundante diversidade de plantas brasileiras e de outros lugares do mundo. Os produtos são doados para os diversos institutos do complexo HCFMUSP e para a ONG Sefras, além de outras entidades que buscam sazonalmente plantas específicas.
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Para quem tem interesse em viabilizar uma horta urbana, Paulo Sérgio Zembruski, servidor USP e voluntário da horta comunitária da FMUSP, recomenda: “comecem, vão aprendendo com os erros e aperfeiçoando os acertos. Aprendam com as plantas, absorvam as respostas que as mesmas dizem. Sejam resilientes, perseverantes, disciplinados e, mais do que tudo, altruístas”.
Zembruski ressalta que cada local tem uma característica que favorece uma gama de plantas no verão, que podem não ser as mesmas no inverno, e assim sucessivamente. “Aprender com a natureza, fazer dela o sua aliada e não a inimiga. Envolvam a vizinhança, todas as pessoas, de todas as idades. É uma proposta disruptiva, por isso mesmo não pode ser algo convencional e já trilhado. É necessário estar aberto ao novo, experimentar situações e testar outras. Não existe uma receita pronta e infalível. Não desperdicem, doem, compostem os restos das culturas. Reaproveitem materiais, solo, folhas, troncos e galhos. Sejam inovadores”.