Desertos alimentares: onde a comida saudável é uma miragem

Multifatorial e com consequências socioeconômicas e à saúde, falta de acesso à "comida de verdade" é um problema global, inclusive, em grandes potencias.

Por Redação em 2 de fevereiro de 2024 4 minutos de leitura

desertos alimentares

A fome persiste como uma sombra sobre muitos países ao redor do mundo, especialmente nas nações emergentes, onde a escassez de recursos e desigualdades socioeconômicas agravam a situação. Contudo, enquanto os esforços são direcionados à luta contra a fome, um fenômeno paradoxal também exige atenção: os desertos alimentares. Eles afligem não apenas os países em desenvolvimento. Este dualismo alimentar, envolvendo falta de acesso a alimentos e má nutrição em meio à abundância aparente, destaca a complexidade do problema alimentar global.

Estudos conduzidos pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos definem um “deserto alimentar” como uma região na qual, no mínimo, 500 pessoas ou 33% de um setor censitário específico residem a mais de 1,6 km de um supermercado. Para quem mora nesses locais, ter acesso à comida de qualidade não é apenas uma questão de satisfazer o paladar, nem mesmo se limita a uma mudança comportamental para hábitos mais saudáveis.

A restrição de acesso a alimentos frescos, naturais e nutritivos evidencia a desigualdade social como uma barreira que impede as classes economicamente menos privilegiadas de atingirem a meta de uma alimentação de qualidade. Consumir calorias vazias e nutrientes insuficientes pode levar a uma série de problemas de saúde, como obesidade, diabetes e deficiências nutricionais. Assim, a ênfase não deve ser apenas na quantidade de alimentos disponíveis, mas na qualidade nutricional e na promoção de escolhas alimentares saudáveis.

Segundo Marina Ferreira, líder de projetos na Pé de Feijão, e Wagner Ramalho, fundador da Prato Verde Sustentável, para além da mera distância geográfica, o ponto central do problema reside na ausência de políticas que assegurem a todos um acesso fácil a alimentos naturais, a começar pelo acesso à informação de qualidade, como abordaram no episódio 49 do podcast Habitability sobre insegurança alimentar.

Das periferias brasileiras a maior potencia econômica mundial

Bairros periféricos ou com baixos indicadores sociais enfrentam, em sua maioria, desafios no acesso a alimentos adequados. De acordo com o Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC), para adquirir alimentos essenciais para a saúde nutricional, os indivíduos que habitam essas regiões enfrentam a necessidade de se deslocar para áreas distantes, até o centro da cidade ou outras localidades com maior poder aquisitivo, onde estão concentrados hortifrútis, feiras, peixarias, açougues, mercearias, supermercados, hipermercados e outros estabelecimentos que oferecem alimentos in natura ou minimamente processados.

desertos alimentares periferia

Como mostrou o mapeamento da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN), em 12 das 21 capitais brasileiras analisadas, os subdistritos com menor oferta de estabelecimentos que fornecem alimentos saudáveis coincidem com os de menor renda. Por outro lado, são essas áreas periféricas que concentram uma grande quantidade de estabelecimentos que vendem produtos ultraprocessados.

Mas o problema não é exclusivo de países em desenvolvimento. Nos Estados Unidos, 47,4% da população são afetados pelos desertos alimentares. Overtown é um exemplo entre milhares dessas áreas distribuídas pelo país, evidenciando uma disparidade entre a abundância econômica geral e a falta de disponibilidade de opções nutricionais adequadas para uma parcela significativa da população. 

Deserto alimentar: entre infraestrutura, saúde e desigualdade social

A carência de infraestrutura em comunidades de baixa renda está entre uma das principais causas dos desertos alimentares. De acordo com o levantamento da CAISAN, nestas áreas, a ausência de supermercados nas proximidades cria uma barreira para o acesso a alimentos frescos e saudáveis.

A deficiência de um transporte público eficaz nessas regiões acentua ainda mais a dificuldade. Sem um meio de transporte conveniente, os habitantes dos desertos alimentares enfrentam mais obstáculos para chegar aos supermercados e transportarem suas compras.

desertos alimentares supermercado

Em busca de melhores condições de vida, há quem saia das áreas rurais rumo aos grandes centros urbanos, onde a possibilidade de cultivar seu próprio alimento torna-se praticamente inviável. Além disso, há uma questão social e cultural que glamouriza o consumo de industrializados: oferecer às crianças os alimentos que aparecem na televisão, muitas vezes inacessíveis aos pais na infância por questões financeiras, é como um símbolo de crescimento socioeconômico e uma forma de compensação pela escassez e limitações já vividas.

As consequências estão nos índices de mortalidade, saúde e bem-estar da população. Segundo dados do IDEC, no período de 2007 a 2017, os casos de hipertensão registraram um aumento de 14,2%, enquanto os de diabetes cresceram significativamente, atingindo 61,8% da população no Brasil. Entre a população jovem, observou-se um aumento alarmante de 110% nos casos de obesidade. Como indicado pelo relatório do Painel Global sobre Agricultura e Sistemas Alimentares para a Nutrição são necessárias ações efetivas para controle de sobrepeso e combate às doenças associadas à dieta.

O impacto se estende ao desenvolvimento cognitivo e ao desempenho acadêmico, especialmente em crianças e adolescentes. Como mostra reportagem do Uol, a falta de nutrientes essenciais nessas dietas pode comprometer a função cerebral e a capacidade de aprendizado, resultando em desafios educacionais e oportunidades limitadas no futuro. Por fim, o impacto econômico também se manifesta nos custos associados à saúde e tratamentos médicos. Ou seja, trata-se de um desafio complexo que integra questões de saúde e socioeconômicas.

Prevenindo desertos alimentares

agricultura urbana

A agricultura urbana é uma das respostas para semear no deserto, desde que pautada pela inclusão, de fato, e em conjunto a um trabalho de promoção de uma educação que sensibilize, engaje e capacite as pessoas para serem protagonistas desse processo de mudança. Conforme apontado pelo IDEC, a alocação de espaços públicos, como praças, para a instalação de hortas comunitárias não apenas fortalece o acesso a alimentos frescos, mas também fomenta a integração social e promove a sustentabilidade.

A implementação de produtos in natura na alimentação escolar também constitui uma estratégia para fomentar hábitos alimentares saudáveis. Além do acesso a opções mais nutritivas em si, a medida contribui para o desenvolvimento físico e cognitivo dos estudantes.

A extensão dessa prática para restaurantes populares é outra forma de ampliar a disseminação das opções saudáveis para a população em geral, assim como a criação de mecanismos facilitadores para a chegada de feiras livres em desertos alimentares. Ou seja, por um lado, é preciso o despertar para a importância e o desejo pela chamada ‘comida de verdade’, quebrar paradigmas sobre a ideia de complexidade no preparo, resgatar a história e a identidade cultural que envolvem as refeições, mas tudo isso respaldado pelo acesso real aos alimentos.

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