Do laboratório à obra: O potencial dos materiais vivos na construção

Área de arquitetura e construção mira no uso de materiais vivos e sustentáveis, os living building materials (LBMs)

Por Ana Cecília Panizza em 20 de junho de 2024 5 minutos de leitura

living building materials LBMs
Imagem gerada por Inteligência Artificial

A sustentabilidade ambiental tem pautado debates, estudos e reflexões em diversas áreas diante da necessidade e da urgência de preservação do meio ambiente e dos recursos naturais, que são finitos. No setor de arquitetura e construção não é diferente – e ele tem se valido da biotecnologia a fim de desenvolver materiais vivos para uso nas construções, os chamados living building materials (LBMs), em inglês. Esse tipo de material, que está em estudo e ainda não é disponibilizado no mercado, contém micro-organismos e seu uso tem como objetivos a otimização no uso de recursos e a redução das pegadas de carbono, que são os volumes de gases de efeito estufa gerados pelas atividades econômicas e pelas pessoas no cotidiano. 

Para se ter uma ideia, os edifícios são responsáveis por cerca de 40% das emissões de carbono quando se considera todo o ciclo de vida de um empreendimento, que inclui o uso de energia no funcionamento da edificação e as emissões na produção de materiais usados nos momentos de construção, manutenção e até demolição do prédio.

Segundo o arquiteto e urbanista Marlon Paiva, especialista em Construções, Comunidades e Planejamento Sustentáveis, além da redução da pegada de carbono, entre as vantagens dos LBMs estão a adaptação a diferentes contextos territoriais e climáticos, a geração de energia limpa por parte desses materiais, a autorregeneração de patologias de edificações (rachaduras, fissuras) e a viabilização de construções ancoradas em práticas sustentáveis, 

Poder de se multiplicar 

living building materials LBMs

Paiva é mestre pela Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, em Portugal e atualmente é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Campinas, aponta que um dos principais exemplos de LBMs em estudo atualmente é o concreto autorreplicante, que carrega consigo o curioso poder de se multiplicar. Ele é produzido a partir de uma mistura de areia e hidrogel para estimular o crescimento da bactéria synechococcus, que, por sua vez, permite que o material se replique, se reproduza. Isso porque, ao dividir ao meio um tijolo feito com concreto autorreplicante, as bactérias podem se transformar em duas peças completas, bastando adicionar um pouco de areia, hidrogel e nutrientes extras. 

Segundo o engenheiro Wil Srubar, professor do Departamento de Engenharia Civil, Ambiental e de Arquitetura da Universidade do Colorado, em Boulder, Estados Unidos, um único tijolo desse material pode reproduzir até oito peças. “O que realmente nos entusiasma é que isso desafia as formas convencionais pelas quais fabricamos materiais de construção estruturais. Isso realmente demonstra a capacidade de fabricação desse material exponencial”, diz ele. O concreto autorreplicante também garante uma pegada de carbono mais baixa e se adapta a diferentes contextos territoriais e climáticos.

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Método de fabricação do biocimento. (Foto: Yang Yang / Reprodução Inovação Tecnológica)

Outro tipo de LBM destacado por Marlon Paiva é o Cimento vivo: material agregado de areia produzido por meio do processo de precipitação de calcita que pode permitir uma autorregeneração de trincas e rachaduras. Ao ser adicionado na fabricação de tijolos, por exemplo, o biocimento viabiliza a construção de casas sustentáveis, capazes de usar luz solar, água ou ar para produzir calor e eletricidade. 

LBMs em experimentação 

Torre construída com blocos de fungos na exposição do MOMA em NY. (Foto: Reprodução/ CTE)

“O uso de materiais vivos em construções não é uma novidade em si: é uma prática que acompanha a própria evolução humana no que diz respeito a arquitetura e engenharia. A madeira, a pedra e a terra (aplicada em taipas, adobes, tijolos de solo-cimento etc) são exemplos clássicos deste tipo de solução – e são sustentáveis”, comenta Paiva. Ele esclarece que madeira e pedra – muito usadas em construções na Europa – são, de certa forma, materiais vivos por serem naturais. Também porque têm flexibilidade, adequando-se às oscilações térmicas do ambiente. Já a terra é material vivo porque contém micro-organismos. “Atualmente discute-se o uso da biotecnologia para o desenvolvimento de novos materiais que permitam ampliar as relações entre o ambiente construído e o mundo natural em direção a um novo tipo de arquitetura”, pontua Paiva. 

Ele conta que o uso de LBMs está em estudo e não existem ainda normas técnicas que orientem a indústria da construção civil quanto ao emprego de living building materials.É difícil estimar com precisão quando esses materiais estarão disponíveis para uso pela área de arquitetura e construção. Em Dubai, por exemplo, já há projetos que recorrem a esse tipo de material, mas ainda no campo da experimentação. Talvez em 20 ou 30 anos a gente comece a ver aplicação em larga escala no cotidiano, pela indústria da construção civil”, avalia Paiva. Por outro lado, o arquiteto ressalta que grandes centros de pesquisa, principalmente nos Estados Unidos, têm estudado essas soluções buscando sua viabilidade em âmbito comercial. 

laboratorio de materiais vivos
Imagem gerada por Inteligência Artificial

Na Universidade do Colorado, o Laboratório de Materiais Vivos investiga um novo material de construção vivo, sem cimento e, diferentemente do concreto, totalmente reciclável. Para criar esse LBM, a equipe usou uma cianobactéria, micro-organismos verdes similares a algas (que usam gás carbônico) e a luz do sol.  

Também nos Estados Unidos, o Laboratório Integrado de Pesquisa em Design da Universidade da Carolina do Norte, em Charlotte, desenvolveu um sistema de fachada adaptável de microalgas que é capaz de melhorar a qualidade do ar em espaços internos de um empreendimento e produzir energia renovável a partir de uma tecnologia integrada que utiliza luz solar para cultivar micro-organismos. O ar é introduzido no sistema de fachadas. E o oxigênio produzido pelas algas entra no sistema de climatização do edifício. As microalgas carregadas de carbono são substituídas regularmente e transformadas em biocombustível.

Já na Inglaterra foi implantado o Hub para Biotecnologia no Ambiente Construído, formado por cientistas da área de biologia da Universidade de Northumbria e por arquitetos, designers e engenheiros da Universidade de Newcastle. O grupo trabalha para desenvolver biotecnologias que ajudem a criar construções responsivas a ambientes. A pesquisa foca na produção de materiais vivos de engenharia que podem metabolizar seus descartes, ajudando a reduzir a poluição, e tornar os processos de construção mais eficientes e até mesmo geradores de energia.

Até a NASA 

Tijolos produzidos com micélio, através de resíduos de jardim e raspas de madeira (Foto: Reprodução/NASA)

Os LBMs têm chamado atenção até da Nasa, a agência espacial dos Estados Unidos, que tem investigado especificamente como materiais baseados no micélio (conjunto de filamentos celulares emaranhados de um fungo) podem ser opções viáveis para a arquitetura espacial em função do potencial de cultivo in loco – no caso, dentro de naves espaciais, onde o volume de materiais transportados precisa ser reduzido a um mínimo. 

Dessa forma, essas inovações recentes e ousadas a partir da biotecnologia podem representar uma mudança gradativa, mas profunda, na forma como os materiais de construção são confeccionados e aplicados. É um campo de pesquisa que está em expansão e contribui para que a área de arquitetura e construção dê uma contribuição significativa para tornar as cidades mais sustentáveis. Para que a relação entre os ambientes construídos e o mundo natural seja mais harmônica.