O Brasil vive um momento-chave na busca por tornar suas atividades econômicas mais sustentáveis sob o ponto de vista ambiental: a criação de um mercado regulado de carbono. O sistema, que consiste em leis e regulamentos que viabilizam compra e venda de créditos de gás carbônico (CO2) para incentivar que os setores público e privado reduzam suas emissões, é adotado por países como China, Canadá, Japão, nações da União Europeia, Nova Zelândia, México e Coreia do Sul, além dos vizinhos Chile, Colômbia e Argentina. Sob o nome de Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE), a lei que cria o mercado de carbono no Brasil (Lei nº 15.042/2024) foi sancionada no fim de 2024, mas quando o instrumento vai operar, na prática?
São muitas as etapas para que essa ferramenta imprescindível para frear as mudanças climáticas saia do papel. A implantação deve demorar de três a cinco anos, durante cinco fases; o País está na primeira delas, de até dois anos, com regulamentação e criação de instrumentos básicos, como plano de alocação de emissões, regras de monitoramento e mecanismos de registro.
Nível sem precedentes

As emissões de CO2 pelas atividades humanas atingiram os maiores níveis da história. O alerta é da plataforma Climate Watch, do World Resources Institute (WRI): foram 37,5 bilhões de toneladas do gás em 2022, último ano com dados disponíveis. Isso representa 182 vezes mais em relação a 1850, auge da Segunda Revolução Industrial. A China é o maior emissor, seguida de Estados Unidos, Índia, Rússia e Japão. O Brasil ficou em décimo lugar. Por outro lado, os Estados Unidos têm a maior taxa de emissões de CO2 per capita – o dobro da China e oito vezes mais do que a Índia.
O crescimento econômico e populacional acelerado é um dos principais motores do aumento do lançamento de carbono pelos países listados. Esse nível sem precedentes de emissões do principal gás entre os gases de efeito estufa (GEEs) requer novos instrumentos para reduzi-las. E o mercado de carbono no Brasil, e no mundo, é o caminho.
No Brasil, o texto que cria o instrumento prevê que empresas que excedam suas metas de emissões de CO2 podem comprar créditos de carbono de outras companhias que estejam abaixo do limite, o que cria um mecanismo de mercado para a redução de poluentes.
Mercado de carbono no Brasil: atraso?
A Lei nº 15.042/2024 organiza o mercado de carbono no Brasil em dois tipos: regulado e voluntário. No primeiro, empresas que lançam mais de 25 mil toneladas de CO2 terão que reduzir emissões via mercado de crédito. As que geram entre 10 e 25 mil toneladas terão de reportar sua pegada de carbono, mas sem meta específica de redução. Já no mercado voluntário, a diminuição de emissões é opcional, sem imposição de metas legais.

Para Camila Chabar, head de sustentabilidade do Bureau Veritas (empresa multinacional francesa que presta serviços de inspeção, testes e certificação para empresas), o Brasil deu um grande passo rumo ao mercado de carbono regulado. “Ainda assim, levamos muitos anos debatendo o Projeto de Lei, o que nos deixou para trás no cenário mundial. Países como China, México, Canadá, Japão e, aqui na América do Sul, Chile, Colômbia e Argentina, já avançaram na estruturação de seus mercados obrigatórios”, ressalta ela, que é formada em relações internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), além de ter extensão em sustentabilidade corporativa pela Fundação Getúlio Vargas – São Paulo (FGV-SP), MBA em economia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e mestrado em desenvolvimento sustentável pela Universidade de Sussex (Reino Unido).

John James Loomis, professor do MBA em ESG da FGV-SP e pesquisador visitante no Global Development Institute da University of Manchester (Reino Unido), também chama atenção para a lentidão na criação do mercado de carbono no Brasil: “O País está, de certa forma, atrasado na implementação de seu mercado regulado de carbono, especialmente quando comparamos com países que já operam sistemas desse tipo há mais de uma década”. Ele credita a demora à necessidade de articulação entre diferentes setores econômicos, principalmente a indústria e a agropecuária, que têm perfis de emissões muito distintos e resistências políticas diversas. “Ainda assim, esse processo gradual é necessário para garantir um mercado robusto, transparente e confiável”.
Loomis esclarece que o atraso “vem do fato de que o Brasil é signatário do Acordo de Paris desde 2015 e já deveria ter avançado mais no desenvolvimento de instrumentos robustos para reduzir suas emissões”. O especialista pondera que, enquanto o mercado regulado ainda se estrutura no Brasil, o País se tornou ator relevante no mercado voluntário de carbono, especialmente com projetos florestais. “Mas o mercado voluntário, por si só, não dá conta da escala e da ambição necessárias para cumprir nossas metas climáticas. É essencial que o SBCE avance rapidamente e se articule de forma inteligente com o mercado voluntário, com segurança jurídica e integridade socioambiental, sobretudo considerando que mais de 70% das nossas emissões estão ligadas ao uso da terra”.
Mercado de carbono no Brasil e complexidade para sair do papel
A partir da sanção da Lei nº 15.042/2024 começaram a correr os prazos previstos para regulamentação e implementação do mercado de carbono no Brasil, que vai impor os limites de emissões de GEE para os setores da economia que mais poluem e instituir um mercado de compensações.
O Ministério da Fazenda, com assistência técnica do programa Partnership for Market Implementation, do Banco Mundial, desenvolveu um roteiro de implementação, que deve levar de três a cinco anos, com cinco fases. “Segundo esse roteiro, a implementação de um mercado de carbono eficaz no Brasil requer esforços distribuídos em quatro principais áreas temáticas: design, escopo e ambição do sistema; conformidade e fiscalização; alocação, comércio e rastreamento de ativos; governança e engajamento das partes interessadas”, ressalta Camila.

O primeiro período, de até dois anos, é destinado à regulamentação e à criação dos instrumentos básicos (como plano de alocação de emissões, regras de monitoramento e mecanismos de registro). Na sequência o sistema entra em funcionamento, com mais três anos previstos para fases de monitoramento, alocação de permissões e, por fim, o início efetivo da comercialização de créditos e permissões.
Segundo Loomis, o cronograma é comparável ao de outros países que implantaram sistemas semelhantes, como os da União Europeia, além de China e Coreia do Sul. O mercado de carbono no Brasil está na primeira fase, “portanto, tecnicamente, o país está dentro do cronograma legal estabelecido”.
Sobre o período longo, de cinco anos, previsto para conclusão, o especialista afirma que “o sistema está sendo estruturado do zero e envolve uma complexa arquitetura institucional, técnica e jurídica”. Já Camila frisa que “em um mercado de carbono regulado, não estamos apenas lidando com questões de carbono per se, mas com economia, inclusão e direcionamento que estamos dando ao desenvolvimento do País. Por isso, é complexo e com muitos atores a serem consultados e a terem participação. Se levarmos cinco anos para a implementação do SBCE, já estaremos em 2030, ou seja, ano de primeiro grande marco internacional da mudança climática”.
Oportunidade perdida
Indústrias como as de siderurgia, cimento, cerâmica e alimentos serão reguladas pelo mercado de carbono brasileiro, que deixou de fora o agronegócio, levando a críticas de grupos da sociedade civil, pois o setor responde por 73% das emissões de GEE, segundo pesquisa do Sistema de Estimativa de Emissão de Gases Estufa (SEEG) divulgada pelo Observatório do Clima. O percentual inclui gases gerados pelos animais, pelo desmatamento e pelas mudanças no uso da terra.

“Diferentemente do resto do mundo, em que o setor de energia é o mais carbônico, no Brasil o setor é o agro. Por isso, o agro ter ficado de fora de um dos principais mecanismos de mitigação de emissoes de GEE do Brasil, de fato, é curioso. Também é no agro que temos grandes oportunidades de projetos de créditos de carbono, finanças verdes e biomassa, o que poderia ser uma oportunidade interessante para o setor ser parte do SBCE”, avalia Camila.
“A exclusão da produção primária agropecuária do SBCE é, na minha visão, uma oportunidade perdida”, declara Loomis, já que o setor é o maior responsável pelas emissões de GEE no Brasil, “sobretudo por meio da mudança no uso da terra, em especial o desmatamento para expansão de pastagens”, diz. Esse processo responde historicamente por quase metade das emissões nacionais e segue como principal vetor de perda de vegetação nativa, principalmente na Amazônia e no Cerrado, afirma ele. “Deixar esse setor de fora de um sistema que pretende precificar carbono e induzir a descarbonização da economia enfraquece a credibilidade e o alcance do SBCE”.
O professor acrescenta que há preocupações legítimas com a inclusão de pequenos produtores e com os custos de monitoramento, mas que o Brasil poderia ter adotado uma abordagem mais equilibrada, como a Nova Zelândia, que está incorporando a agropecuária ao seu sistema com metas setoriais, apoio técnico e instrumentos graduais. “Temos um agronegócio moderno, competitivo e com acesso a mercados internacionais exigentes, que já demanda práticas sustentáveis e rastreabilidade. Integrar a agropecuária ao SBCE seria uma forma de reconhecer e estimular essas iniciativas, além de criar um sinal de preço que favoreça a produção de baixo carbono”, sugere o especialista.
“Fora a agropecuária, não vejo outro setor relevante que tenha sido deixado de fora. O SBCE está estruturado com base em limiares de emissões por atividade, o que significa que setores como transporte, indústria e energia já podem ser incluídos se ultrapassarem os volumes definidos. Portanto, a lacuna crítica, tanto do ponto de vista climático, quanto estratégico, é realmente a não inclusão da produção agropecuária primária”, avalia Loomis.
Países na vanguarda

A União Europeia é o melhor – e mais antigo – exemplo global de mercado de carbono, com quase 20 anos. O Sistema de Comércio de Emissões da União Europeia (EU ETS) cobre cerca de 45% das emissões de GEE do território da região, segundo a plataforma Climate Policy Info Hub, e abrange cerca de 11 mil instalações industriais e de geração de energia, conforme aponta a ONG Carbon Market Watch. “Com o tempo, o mercado de carbono da UE desdobrou-se no Green Deal, grande guarda-chuva de normas e regulamentações que influencia interna e externamente a economia, inclusive o Brasil”, revela Camila.
Sobre o EU ETS, Loomis salienta a capacidade do sistema de gerar um sinal de preço robusto para o carbono e se adaptar com o tempo. “As reformas recentes, integradas ao Pacto Verde Europeu e ao mecanismo de ajuste de carbono nas fronteiras, mostram como políticas climáticas bem desenhadas podem influenciar até o comércio internacional, inclusive com países como o Brasil”.
Outro case é a China. Com regulamentação mais recente, em 2021, o país é o maior emissor de CO2 do mundo, mas também tem o maior sistema de carbono regulado em termos de volume de emissões, abrangendo um número expressivo da economia. O mercado chinês também conseguiu com sucesso incorporar créditos de carbono voluntário às metas reguladas. “O país tem um mercado que coloca metas de redução de emissões em funcionamento, e certamente manda uma forte mensagem aos outros países”, comenta a head de sustentabilidade da Bureau Verita.
Loomis destaca que o mercado de carbono da China, “embora ainda cubra principalmente o setor energético, é o maior do mundo em volume de emissões reguladas. Para mim, o modelo chinês é importante porque mostra que, mesmo em contextos altamente desiguais e descentralizados, é possível construir um mercado funcional e com ambição crescente”.
O professor destaca o case da Nova Zelândia, por ser um dos poucos países que têm buscado integrar formalmente o setor agropecuário ao seu mercado de carbono. “Como o país tem uma economia fortemente baseada na pecuária e agricultura, a abordagem adotada ali envolve metas específicas para o setor, mecanismos de incentivo e também pressões para internalizar os custos climáticos da produção. Isso é particularmente relevante para o Brasil, já que somos uma potência agropecuária e ainda tratamos o setor com muitas exceções dentro da regulação climática. A experiência neozelandesa mostra que é possível incluir o agro com responsabilidade e visão de longo prazo”.
Assim, mesmo com a necessidade de pontos de melhoria e dos anos pela frente para sua plena implementação, o mercado de carbono no Brasil é imprescindível. Por outro lado, a “velocidade é lenta e o clima não espera”, conforme pontua Camila.