Trocar paredes de alvenaria por casco e convés. Ruas asfaltadas por rotas fluviais ou marítimas. Essa é a realidade de um número crescente de pessoas, que transformaram o sonho de aventura em um estilo de vida: morar em barcos! Na Europa, cidades como Paris e Amsterdã já abrigam comunidades inteiras que adotaram esse conceito de moradia, muitas vezes impulsionadas pela alta dos preços imobiliários. Agora, a tendência começa a ganhar espaço no Brasil.
Na Marina Itajaí, em Santa Catarina, o maior polo náutico do País, seis famílias já transformaram embarcações em lares permanentes. Diferentemente dos barcos usados apenas para lazer, essas residências flutuantes são adaptadas para o dia a dia, com tudo o que é necessário para viver com conforto e autonomia. O que antes era visto como algo exótico ou temporário, se firma como alternativa para quem busca uma vida mais livre e conectada com a natureza.
Embora ainda pouco comum, essa modalidade de moradia tende a ganhar espaço com o crescimento do número de embarcações registradas e a popularização do turismo náutico. O avanço das marinas e a busca por alternativas habitacionais inovadoras indicam que viver sobre as águas pode deixar de ser uma exceção para se tornar uma opção viável, não apenas para quem deseja escapar do modelo tradicional de moradia, mas também como uma alternativa de hospedagem. É o caso de Belém, que diante do desafio de acomodar um grande número de pessoas em função da realização da COP 30, integrou o modelo à sua infraestrutura turística.
Hospedagem sobre as águas: a solução de Belém para a COP 30

Com a expectativa de receber cerca de 40 mil visitantes durante a COP 30, Belém enfrenta um desafio logístico: a oferta de hospedagem. Especialistas estimam um déficit de pelo menos 26 mil leitos na cidade. A tradição fluvial da capital paraense mostrou-se uma alternativa viável, com embarcações sendo adaptadas para funcionar como hotéis temporários durante o evento.
Navios de grande porte ficarão ancorados no porto da cidade e disponibilizarão aproximadamente 4,5 mil quartos para acomodar parte dos participantes da conferência. Além de aliviar a pressão sobre a rede hoteleira tradicional, essa estratégia aproveita a infraestrutura náutica de Belém, proporcionando uma experiência única aos visitantes, que terão a oportunidade de vivenciar a cultura ribeirinha da região. “A hospedagem em navios é uma das soluções que estamos implementando para garantir que a COP 30 ocorra com o máximo de organização e conforto para os participantes. Essa medida faz parte de um conjunto de ações temporárias e estruturantes que reforçarão a capacidade de recepção da cidade e deixarão um legado para o turismo local”, afirma Valter Correia, secretário extraordinário para o evento, em entrevista à Agência Gov.
Além da hospedagem flutuante, o terminal hidroviário regional, atualmente instalado no armazém 9, passará por uma ampliação, incorporando também o armazém 10 e dobrando sua área para aproximadamente 4 mil metros quadrados. A modernização do espaço garantirá mais conforto e eficiência no embarque e desembarque dos hóspedes dos navios, fortalecendo a infraestrutura turística de Belém. Além disso, foram buscados outros meios para expandir a oferta de leitos, como a reforma de prédios antigos, construção de novos hotéis, adaptação de escolas e apoio das forças armadas.
Morar em barcos conquista adeptos

O que para alguns pode ser uma experiência temporária, para outros se torna uma opção de moradia permanente. Com a disparada dos preços dos imóveis, especialmente em regiões como o litoral norte de Santa Catarina, morar em um barco tem se mostrado uma alternativa atraente para quem busca reduzir custos.
De acordo com levantamento da Exame, em cidades como Balneário Camboriú, Itapema e Itajaí, onde o metro quadrado ultrapassa os R$ 11 mil, o aluguel ou a compra de um imóvel representa um peso significativo no orçamento. Enquanto um apartamento de um quarto na região nobre de Itajaí pode custar cerca de R$ 5 mil mensais, sem incluir o condomínio, uma vaga na marina fica em torno de R$ 2,3 mil, com o custo de manutenção de um veleiro girando em torno de R$ 1 mil mensal. Diante desse cenário, algumas pessoas têm optado por morar sobre as águas. Atualmente, seis famílias vivem a bordo de embarcações na Marina de Itajaí, por exemplo.

Mas a escolha não se resume à economia. Viver a bordo é um estilo de vida que exige adaptações, como o espaço reduzido que impõe um modo de vida minimalista. A rotina também inclui cuidados frequentes com a manutenção da embarcação, desde a limpeza do casco até a revisão do motor e dos sistemas elétricos e hidráulicos. Além disso, a umidade constante pode ser um desafio, exigindo ventilação adequada e medidas para evitar mofo e corrosão.
Por outro lado, a vista para o mar proporciona um cenário dinâmico e sempre renovado. A mobilidade é outra grande vantagem, permitindo ao morador não só explorar diferentes destinos, mas também se mudar de cidade – ou até de país – sem a necessidade de vender ou alugar sua casa. A liberdade de escolher o próprio endereço, com a flexibilidade de ancorar em locais diversos, faz do barco um lar em constante transformação.
Marinas se fortalecem como suporte para quem escolhe morar em barcos

Com o crescimento da tendência de morar em barcos, as marinas têm se tornado cada vez mais essenciais para garantir que essa escolha de moradia seja não apenas viável, mas também confortável. Durante a pandemia, por exemplo, a Marina da Glória, no Rio de Janeiro, registrou um aumento de 10% no número de embarcações abrigadas, alcançando a marca de 300 barcos.
Essas estruturas não apenas oferecem um local seguro para ancoragem, mas também têm investido em serviços e infraestrutura especializados, atendendo às necessidades dos moradores a bordo e oferecendo uma alternativa completa ao modelo tradicional de moradia.
No Brasil, as marinas estão presentes principalmente no litoral, mas também podem ser encontradas em regiões com grandes rios navegáveis, como o Amazonas. Cidades como Angra dos Reis/RJ, Balneário Camboriú/SC, Salvador/BA e Itajaí/SC concentram as marinas mais estruturadas, oferecendo espaços de ancoragem e serviços como abastecimento de combustível, eletricidade, internet, água potável e coleta de resíduos, essenciais para quem vive a bordo. Essas comodidades são importantes, pois permitem que os moradores de barcos possam desfrutar de um estilo de vida nômade, mas com a infraestrutura necessária para garantir conforto e praticidade no dia a dia.

Além da infraestrutura básica, diversas marinas estão ampliando suas ofertas com serviços especializados, como lavanderias, estacionamento, segurança 24 horas, restaurantes e até áreas de lazer e convivência. Muitas delas estão estrategicamente localizadas próximas a centros urbanos, permitindo que os residentes aproveitem o melhor dos dois mundos: a tranquilidade da vida à beira-mar e a conveniência de um ambiente urbano. Isso significa poder trabalhar fora, frequentar academias, fazer compras em shoppings e realizar outras atividades cotidianas, mantendo a conectividade com a vida na cidade.
Barcos viram moradia nas grandes cidades europeias

Em algumas das cidades mais densamente povoadas da Europa, morar em barcos se transformou em uma solução criativa para o crescente déficit de imóveis. Em Paris, por exemplo, cerca de 1,2 mil pessoas residem em péniches, casas-barco ancoradas ao longo do rio Sena. A principal atração desse estilo de vida é a localização privilegiada, permitindo que os moradores desfrutem da proximidade do centro da cidade em barcos que, muitas vezes, são mais espaçosos do que os apartamentos tradicionais da região.
Esses barcos ficam conectados aos sistemas urbanos de água, esgoto e energia, e os moradores pagam uma taxa de habitação à prefeitura, tornando a experiência uma alternativa viável para quem não consegue arcar com os altos preços dos imóveis parisienses.
Na Holanda, o fenômeno é ainda mais expressivo, com Amsterdã sendo um dos maiores exemplos. Nos canais da cidade, mais de 2,5 mil casas-barco são registradas, muitas das quais não são navegáveis, mas residências fixas construídas sobre plataformas flutuantes. O déficit de imóveis na cidade é tão grande que essas casas surgiram como uma resposta para suprir a necessidade de mais moradia. A prefeitura exige uma permissão especial para morar nos canais, tornando o processo competitivo. Esse modelo também pode ser visto em outras cidades holandesas, como Haarlem e Utrecht, onde o número de barcos adaptados para moradia continua a crescer, refletindo a pressão sobre o mercado imobiliário.

O fenômeno da moradia flutuante nas cidades europeias começou a ganhar força nas décadas de 1960 e 1970, quando os altos preços dos imóveis e a falta de espaço nas áreas urbanas mais procuradas impulsionaram a busca por alternativas. Com rios e canais relativamente limpos, como o Sena em Paris e os canais de Amsterdã, muitas pessoas passaram a ver a possibilidade de morar em barcos uma oportunidade de viver de forma diferente, sem abrir mão da proximidade com os centros urbanos.