‘Retratos Fantasmas’: os cinemas e as transformações sociais

Documentário de Kleber Mendonça Filho revela mudanças de comportamento da sociedade por meio do fechamento de cinemas na cidade de Recife/PE.

Por Redação em 3 de novembro de 2023 4 minutos de leitura

os cinemas e as transformações sociais

“O centro é um lugar que parte da cidade parece ter esquecido que existe. Tem o clima decadente de quem foi abandonado sem grandes explicações”, crava o cineasta Kleber Mendonça Filho em seu recém-lançado longa-metragem “Retratos Fantasmas”. “Uma coisa não dá para negar: o dinheiro foi para outro lugar”, continua ele, que por meio de sua obra demonstra a relação entre os cinemas e as transformações sociais.

A reflexão permeia o documentário lançado no 76º Festival de Cannes, em maio deste ano, na França, e disponível atualmente para locação em plataformas de streaming. Nele, Mendonça Filho, que é conhecido por seus longas internacionalmente aclamados, “O Som ao Redor” (2012), “Aquarius” (2016) e “Bacurau” (2019), realiza um resgate histórico do centro de Recife, sua cidade natal, revisitada por meio de seus cinemas, espaço de convívio ao longo do século 20. 

No entanto, aquilo que, a princípio, parece ser um longa de memórias afetivas do diretor, em uma análise mais profunda, revela como o poder econômico aos poucos tem se sobreposto aos espaços com valores históricos e culturais, presentes na memória coletiva. 

Por meio do fechamento de cinemas nas décadas de 1980 e 1990 – informação corroborada pelo livro digital “Uma nova política para o audiovisual”, publicado pela Ancine, em 2017 – o longa mostra como espaços vibrantes e cheios de gente, aos poucos foram se deteriorando e tornando-se aquilo que costumamos rotular como ultrapassado.

Reverter a situação é o grande desafio. Escassez de recursos e a ausência de investimentos nos serviços de manutenção são alguns dos obstáculos para a preservação do patrimônio de edifícios histórico-culturais.

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Ao menos para sanar o problema da fuga do dinheiro das áreas centrais para outras regiões da cidade, o chamado BID (Business Improvement Districts) tem sido a aposta de alguns grandes centros urbanos, em países como Estados Unidos, Austrália, México, África do Sul, Alemanha e Irlanda. Atualmente, são mais de 1.200 BIDs, ou seja, distritos geridos por meio de parcerias público-privadas, com foco na revitalização e manutenção das áreas da cidade. No Brasil, o Rio de Janeiro/RJ, por exemplo, possui um projeto de destaque no setor: “Aliança Centro-Rio”, que guarda um plano de recuperação urbanística, cultural, social e econômica da região central do Rio, e visa promover empregos e monitorar os problemas de conservação e zeladoria do centro.  

Sob a ótica do cineasta

Como uma colcha de retalhos, “Retratos Fantasmas” traz imagens de arquivos pessoais gravados na época em que o cineasta era estudante, raras gravações encontradas em prateleiras e trechos de seus próprios filmes sob sua narração. 

Foto: Reprodução Agência Brasil

Mendonça Filho defende em seu filme que mudanças na arquitetura da cidade e no comportamento de seus moradores são naturais. O problema surge quando a ideia de progresso começa a destruir o lado histórico dos municípios. E, para mostrar a relação entre os cinemas e as transformações sociais, o longa é dividido em três partes: a casa e o bairro do cineasta, as salas de cinema e as igrejas. 

Na primeira, vemos a casa onde Mendonça Filho morou com sua família, as mudanças ocorridas em sua arquitetura e como ela moldou sua veia cinematográfica. Nos bairros arredores, por meio de imagens antigas e atuais, observamos casas e edifícios coloniais se deteriorando sob a ação do tempo, sendo substituídos por modernos arranha-céus. Muros altos, câmeras, grades, cercas elétricas e cachorros revelam o medo do cidadão frente ao aumento da violência. 

Na segunda parte, o longa apresenta o Recife como um polo de distribuição cinematográfica. Vemos fotos de cinemas em funcionamento, projetores e pôsteres de filmes. Segundo o documentário, com o passar dos anos, a retirada das distribuidoras locais para sua concentração em São Paulo pode ter sido responsável por desencadear a decadência da indústria cinematográfica nordestina.  

As milhares de pessoas que frequentaram os cinemas centrais em torno do rio Capibaribe para assistir a blockbusters, foram abandonando-os, até as salas caírem no ostracismo. Seus edifícios, então, foram ocupados por templos religiosos, terceira parte do documentário. “O cinema é um lugar para se ajoelhar e adorar Glauber Rocha e Hitchcock. Sétima arte e religião são dignos de devoção”, brinca o cineasta relacionando cinema e igreja, ambos, “templos”. 

Cinema de rua: ato de resistência

Segundo dados da Ancine, o Brasil já teve um parque exibidor vigoroso e bastante descentralizado na década de 1970. Na ocasião, 80% das salas estavam localizadas em cidades do interior. 

O número de salas pelo país permaneceu em pleno declive até a década de 1990 até que a popularização de novas modalidades para o consumo de conteúdos audiovisuais determinou a queda do número de salas. Segundo o Observatório do Cinema e do Audiovisual (OCA), o desempenho da economia nos anos seguintes – 1980, considerada a “década perdida” – também foi crucial para entender tal declínio. 

Por outro lado, nas décadas seguintes, houve uma recuperação do mercado exibidor, em sua maioria, com salas localizadas em shoppings, locais de maior renda, geridos por grandes corporações. Assim, o cinema de rua que resistiu às mudanças comportamentais ao longo dos anos, ainda cuidado por pequenos empresários na luta pela sobrevivência, guardando um pedaço da história da cidade. 

Do particular para o universal, os cinemas e as transformações sociais 

“Retratos Fantasmas” será o representante do Brasil no Oscar 2024. O longa foi selecionado pela Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais entre 28 longas brasileiros, para disputar a vaga de Melhor Filme Internacional. 

É a prova de que, embora particular, – o centro de Recife – o longa tem a capacidade de atingir e causar identificação com muitas pessoas, uma vez que a relação entre os cinemas e as transformações sociais é uma história comum a cidades do mundo inteiro. 

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