Há momentos em que a força da natureza não deixa espaço para escolhas. Apenas destrói. Foi isso que sentiram os Sama Bajau, comunidade indígena que habita as águas rasas do sudeste das Filipinas, quando o supertufão Rai atravessou as ilhas em 2021. Casas sobre palafitas, construídas com madeira leve e bambu, foram arrancadas em minutos. Com elas, histórias de gerações, memórias de família e a segurança de um lar também se foram.
Mais que a reconstrução de paredes mais firmes ou a substituição de telhados destruídos, o desafio era devolver o intangível: a dignidade, a segurança e o direito de viver de acordo com sua própria cultura. Foi a partir desse entendimento que nasceu o projeto “Huy-anan nan Bajau sa Surigao” (Casas para os Bajaus em Surigao), que recebeu apoio da Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (AECID) e foi executado pela ONU-Habitat em conjunto com o governo local e outras organizações parceiras. O foco não foi “apenas” reconstruir casas. A iniciativa buscou restaurar a resiliência e o sentimento de pertencimento cultural para a comunidade.
Habitação resiliente à beira do mar
O que poderia ter sido apenas um reassentamento se transformou em um exemplo de habitação resiliente e culturalmente sensível. O projeto proporcionou moradia segura para 20 famílias, um total de 108 pessoas, em um local escolhido pela própria comunidade Sama Bajau. Mantendo sua relação histórica com o mar, eles decidiram permanecer à beira da costa, preservando tradições que atravessam gerações. Desde o início, estiveram envolvidos em todas as etapas, desde a escolha do terreno ao desenho das casas, passando pelo auxílio direto na construção.
A experiência indígena da comunidade se mostrou essencial para adaptar técnicas tradicionais à engenharia moderna. Acostumados a lidar com as marés e os desafios do oceano, os Sama Bajau ensinaram como transportar e instalar postes pesados de concreto, aproveitando a maré alta para movimentá-los e a maré baixa para fixá-los no fundo do mar. Essa colaboração estreita entre moradores e construtores transformou o assentamento em um espaço que une conhecimento local e soluções técnicas seguras.
Cada conjunto de casas quádruplas abriga quatro famílias e integra infraestruturas compartilhadas, como o Centro de Aprendizagem Comunitária e Transformação Juvenil, a Loja Ecocultural do Bairro Sama Bajau e áreas de recuperação de materiais. Além disso, a comunidade implementou meios de subsistência sustentáveis, como currais de aquicultura de bangus (peixe-leite) e viveiros de manguezais, reforçando a conexão com o mar e garantindo uma base econômica estável.
Moradia que garante direitos e preserva cultura
O impacto do projeto transcendeu a reconstrução física. Em 2024, a Comissão Nacional dos Povos Indígenas reconheceu oficialmente os Sama Bajau de Surigao como um povo indígena migrante, um marco que abre caminhos para acesso a serviços mais inclusivos e garante proteção à sua cultura. Esse reconhecimento reforça que moradia e cidadania caminham juntas. Dar um lar seguro é também dar voz, direitos e visibilidade.
“Não é apenas uma casa, é um futuro, é uma vida melhor”, refletiu Violeta Dominguez-Acosta, chefe da AECID nas Filipinas, em entrevista ao portal da ONU-Habitat. Para os Sama Bajau, essa renovação vai além das paredes, é a sensação de segurança, a confiança de que, quando o próximo tufão chegar, terão onde se abrigar sem perder o que os torna únicos.
Em entrevista ao ONU-Habitat, Bay Jhonny Sapayani, um dos moradores do novo assentamento, resumiu a sensação da comunidade. “Não teremos mais medo quando o desastre acontecer. Estas casas robustas manterão nossas famílias seguras”. Entre o mar e a terra firme, o assentamento agora é mais do que um espaço físico, é a promessa de continuidade, resistência e esperança, um exemplo de como a habitação pode transformar vidas quando respeita cultura, história e comunidade.
Casa Yawanawá: moradia é identidade e resistência cultural
No Acre, o povo Yawanawá protagonizou um projeto de habitação que, assim como o projeto dos Sama Bajau nas Filipinas, coloca a comunidade no centro de todas as decisões. Ainda que não enfrente tufões ou desastres naturais frequentes, o território Yawanawá enfrenta pressões externas, como o avanço do agronegócio e a perda de territórios tradicionais, representando desafios significativos.
Por isso, o projeto Casa Yawanawá, idealizado pelo designer Marcelo Rosenbaum em colaboração com o cacique Biraci Brasil Nixiwaka, é outro exemplo de arquitetura que respeita e integra as tradições culturais de uma comunidade indígena. Localizada na Aldeia Sagrada Yawanawá, no Acre, a iniciativa surgiu da necessidade de oferecer moradias que não apenas atendessem às condições climáticas da região, mas que também refletissem a identidade e os valores do povo Yawanawá. A proposta arquitetônica resultante é uma fusão entre funcionalidade, estética e ancestralidade, utilizando materiais locais e técnicas construtivas adaptadas aos contextos ambiental e cultural da comunidade.
Os moradores definiram o desenho das casas, escolheram materiais locais e orientaram sobre técnicas construtivas que respeitam sua relação com a natureza e com a espiritualidade da comunidade. Cada habitação reflete práticas tradicionais, preserva a memória cultural e promove autonomia, reforçando que habitação não é apenas abrigo, mas também identidade.
Embora o projeto não tenha sido motivado por desastres naturais, ele compartilha com a iniciativa das Filipinas a necessidade de preservar e fortalecer a identidade cultural por meio da habitação. Ambos os projetos reconhecem a importância da arquitetura como ferramenta de resistência e afirmação cultural, proporcionando aos seus habitantes não apenas um espaço físico, mas também um símbolo de pertencimento e continuidade de suas tradições.