Solastalgia: a consequência invisível das mudanças climáticas

Criado em 2005 pelo filósofo ambientalista australiano Glenn Albrecht, conceito envolve medo, ansiedade e sentimento de fim de mundo.

Por Ana Cecília Panizza em 5 de junho de 2024 5 minutos de leitura

solastalgia
Ilustração gerada com inteligência artificial

A tragédia climática no Rio Grande do Sul em maio de 2024 levanta uma série de questões complexas. Procura-se entender os fatores que, combinados, causaram as enchentes: volume de chuvas até dez vezes maior que a média histórica; falta de políticas públicas e de planejamento urbano para evitar e controlar enchentes; e afrouxamento em licenciamentos ambientais. Busca-se, também, pensar nas estratégias de oferecer ajuda às pessoas que perderam casas e outros pertences. Atrelado a esse cenário de perdas materiais, está um elemento menos visível, mas tão nocivo quanto as consequências mais palpáveis: a solastalgia.

O conceito se refere ao desconforto psicológico provocado pela percepção de alterações adversas no ambiente de convivência do indivíduo, principalmente, pelas perdas decorrentes dessas alterações. A paisagem familiar é alterada a ponto de ficar irreconhecível, criando um vazio emocional que pode gerar um trauma crônico e/ou um sentimento de desesperança. Entre as causas dessas alterações no ambiente estão eventos climáticos extremos, mudanças climáticas e até mesmo catástrofes causadas pela ação humana como os rompimentos de barragens em Mariana (2015) e Brumadinho (2019), ambas em Minas Gerais. 

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Desastre com rompimento de barragem em Mariana (Foto: Corpo de Bombeiros-MG/ Agência Senado)

Diante da situação, o indivíduo se sente impotente, com a sensação de cisão do ambiente familiar, da casa, do espaço. Com a deterioração do ambiente também se perde o senso de pertencimento e a identidade. No emaranhado de sentimentos, tem ainda o medo causado pelo trauma, acompanhado pela dor de ter que conviver com um ambiente totalmente destruído e pelo luto pelas pessoas que morreram na tragédia.

O termo foi criado em 2005 pelo filósofo ambientalista australiano Glenn Albrecht, professor e pesquisador da Universidade de Sidney, após analisar o sentimento de moradores que viviam perto de uma área de mineração a céu aberto na Austrália, atividade que modificou a paisagem e preocupou a população. A palavra vem do latim solacium, que significa conforto, e do termo grego algia, que denota dor (como nas palavras neuralgia e nostalgia).

Solastalgia e ecoansiedade, passado e futuro  

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Ilustração gerada com inteligência artificial

Similar à solastalgia, o conceito de ansiedade climática (ou ecoansiedade) é um conjunto de sentimentos de estresse e apreensão decorrentes do medo de que perdas (de vidas e de recursos materiais) após eventos climáticos extremos possam acontecer. É uma antecipação em relação a futuras catástrofes ambientais, cada vez mais iminentes conforme a crise climática se agrava, enquanto a solastalgia se refere a um trauma realmente já vivido.

O sentimento se potencializa quando, por exemplo, são divulgados relatórios alarmantes que apontam para ponto de não-retorno (ou ponto de inflexão) no meio ambiente, definido como o momento em que é desencadeado um efeito dominó, cujas consequências podem ser impossíveis de reverter. Isso causa ansiedade acompanhada por sentimentos de pesar, raiva, culpa e vergonha, que podem afetar o humor, o comportamento e o pensamento das pessoas. É um misto de preocupação e medo do que está por vir que tem estado presente principalmente entre os jovens, agravado por notícias sobre tragédias como a do Rio Grande do Sul e da transmissão de imagens das tragédias facilitada pelas redes sociais.

Pesquisa da Universidade de Bath, na Inglaterra, publicada em 2022, entrevistou 10 mil jovens de 16 a 25 anos em 10 países, incluindo o Brasil. Os resultados revelaram que 59% dos jovens relatam estar muito ou extremamente preocupados com as mudanças climáticas (67% entre os brasileiros) e 45% sentem que essas questões afetam negativamente suas rotinas (50% no Brasil). Além disso, 40% disseram hesitar em ter filhos devido às alterações do clima e 75% têm medo do futuro. Para 65%, os governos falham em implementar medidas para impedir as tragédias ambientais.  

Fim de mundo 

Embora nunca tenha recebido pacientes que procuraram terapia diretamente para tratamento de ansiedade climática ou solastalgia, a psicóloga Ingrid Matzembacher Stocker Taffarello conta que muitos pacientes têm levado essas questões para dentro da clínica, durante os tratamentos – e com muita dificuldade de lidar com isso. “Se cai nessa condição de fim de mundo, de desmotivação, de ´não tem o que fazer, não posso me implicar em nenhum relacionamento porque, afinal de contas, tudo está acabando, então eu não crio vínculos, eu não me apaixono, eu não tenho filhos´”, comenta Ingrid, que é mestre pelo Programa em Mudança Social e Participação Política da Universidade de São Paulo (USP) e doutora em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP. 

Ingrid Matzembacher Stocker Taffarello (Foto: Arquivo pessoal)

Ela explica que esses pacientes não conseguem se imaginar em uma vida em que se responsabilizam a ponto de pensar em propostas e soluções para, de alguma forma, impedir o agravamento da crise ambiental, que “degrada e precariza as nossas condições de sobrevivência”. “Os pacientes chegam com uma certa desesperança no futuro, que eles não sabem muito bem de onde vem. Existe um sentimento de final de mundo, angústia de desaparição, de descrença em relação a uma geração futura, incluindo problematizações em se imaginar tendo filhos e apostar em gerações futuras”. 

Entre o real e imaginário, entre a ação e a paralisação

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A psicóloga frisa que a angústia ligada à ansiedade climática se ancora em uma realidade, que são os desastres ambientais. Ou seja, algo dessa angústia não é só da imaginação do paciente, ela se ancora na realidade, advinda dos desastres, das pessoas morrendo, de cidades sumindo e terem que ser reconstruídas. “É diferente da pessoa que chega sem conseguir nomear a angústia. Mas até que ponto essa realidade não vai sendo recheada com fantasias, de fim de mundo, de tudo pegando fogo ou sendo inundado?”, questiona Ingrid. 

“Temos muito a aprender sobre isso. O impacto emocional, sem dúvida, é devastador e, ao mesmo tempo, nos dá campo para pensar. Os analistas vão tendo que lidar com aquilo que eles entendem por angústia, por ansiedade, e quais são as possibilidades: como podemos abrir outras formas de responder frente a tamanho desamparo; aquilo que podemos criar, uma outra construção de vida, de relação com nossa cultura, nossa contemporaneidade”.     

Segundo ela, lidar com a angústia de não saber sobre o que acontecerá no futuro é algo que nos acompanha ao longo de nosso processo civilizatório: é um mal-estar inerente à condição humana. “Acrescenta-se a isso, atualmente, esse sofrimento, aquilo que se revela com os desastres naturais, o aumento da precariedade de nossas condições de sobrevivência.” 

Contudo, ao mesmo tempo que se sofre com a crise ambiental, não se reduz o índice de consumo das pessoas e a lucratividade das empresas. “Nesse sentido, podemos pensar sobre as ambivalências: temos um clima de fim de mundo associado a um sofrimento físico e emocional, mas também lidamos com uma negação e talvez até uma recusa em pensarmos seriamente sobre as origens e consequências da degradação do meio ambiente. Neste sentido, acredito que a análise pode contribuir, uma vez que se trata de um espaço que nos ajuda a lidar e a sustentar as ambivalências, a romper com a negação, a elaborar nossos lutos”.