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Arquitetura hostil, a antítese da arquitetura
A arquitetura hostil perpetua a exclusão e cria obstáculos nas cidades, dificultando o convívio e a inclusão de diferentes grupos sociais.
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Redação em 19 de julho de 2023 7minutos de leitura
O espaço público é um local de destaque para aprimorar a arte do convívio. Sua configuração espacial e seus elementos físicos desempenham um papel importante nesse cenário, pois estão intimamente ligados à capacidade de uma cidade em demonstrar sua habilidade em acolher e receber de forma positiva. No entanto, em certas áreas, a presença de uma arquitetura hostil é evidente, criando barreiras entre diferentes classes sociais e, especialmente, afastando populações vulneráveis.
A arquitetura hostil é justificada por seus defensores como uma medida para evitar comportamentos indesejados, como o que é rotulado como “vadiagem”. Esse tipo de ambiente é cuidadosamente projetado para desencorajar o público a utilizar os espaços para atividades específicas. Em essência, busca-se controlar o comportamento humano por meio dessa abordagem arquitetônica.
O que é arquitetura hostil?
A arquitetura hostil é uma prática arquitetônica que envolve a implementação de elementos ou projetos para excluir, desencorajar ou criar desconforto para certos grupos de pessoas em espaços urbanos. Geralmente, seu objetivo é afastar indivíduos considerados indesejáveis ou indesejados, como pessoas em situação de rua, restringindo seu acesso a determinados espaços públicos.
“Eu definiria arquitetura hostil como a que se impõe acima do desejo da população, dos usuários daquele lugar. É uma arquitetura que afasta, que não serve como espaço de encontro”, disse a arquiteta Luiza Coelho, cofundadora da coletiva Arquitetas (in)Visíveis, em entrevista ao ECOA, do Uol.
A prática da arquitetura hostil afeta também skatistas e jovens que utilizam o espaço público para praticar esportes e ter seus momentos de lazer. Essa visão foi popularizada por Ben Quinn, jornalista do The Guardian, em 2014, ao descrever a existência de espaços públicos desconfortáveis em Londres, projetados de forma deliberada para afastar tanto os moradores de rua quanto os skatistas que tradicionalmente ocupavam praças e calçadas.
Quinn destacou que, além das estruturas antiskate, como protuberâncias e bordas arredondadas, certos elementos arquitetônicos foram “adornados” com pontas ou espetos para impedir que as pessoas se sentem nos parapeitos das janelas ao nível do chão. Adicionalmente, foram instalados assentos inclinados nos pontos de ônibus, desencorajando a permanência, e bancos foram divididos com apoio para os braços, a fim de evitar que as pessoas se deitem neles.
(De)limitação dos espaços públicos
Embora possa haver pessoas que são favoráveis à arquitetura hostil, apresentando alegações de que ela promove a segurança ou o uso apropriado dos espaços públicos, críticos apontam que essa prática viola os direitos humanos e contribui para a exclusão social. Além disso, argumenta-se que é uma abordagem paliativa que não soluciona as causas subjacentes dos problemas urbanos e não oferece soluções sustentáveis para a convivência e inclusão urbana.
Em entrevista para o Projeto Colabora, o arquiteto e presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-RJ) Pedro da Luz Moreira disse que a arquitetura hostil se apresenta como uma solução agressiva frente a uma situação de precariedade e pode desencadear reações opostas. “Uma arquitetura que isola também é hostil e potencializa a violência. Em tese, uma cidade deve acolher pessoas diferentes. Devemos nos acostumar com a presença do outro, com generosidade. Essa é a função de uma cidade, bem diferente de um clã fechado. Mas quando ela passa a não ser amistosa, perde o sentido. Grupos passam a não ser bem-vindos. E, em vez de políticas públicas para resolver problemas, surgem esses métodos pouco amistosos de convivência”.
Impactos nos direitos humanos e na vida urbana
As construções hostis têm impacto significativo em crianças e idosos devido às suas necessidades específicas. A falta de acessibilidade adequada, como degraus altos e falta de rampas, dificulta a locomoção desses grupos. Além disso, a falta de segurança, com ambientes mal iluminados e elementos perigosos, como pontas de metal ou estruturas pontiagudas e pedras, representam uma preocupação para ambos. A falta de consideração das necessidades dessas pessoas cria obstáculos para o deslocamento seguro e limita o acesso ao lazer e recreação, afetando o bem-estar desses indivíduos.
A arquitetura hostil influencia até mesmo a circulação na cidade e a sensação de (in)segurança. A doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo, Valéria de Souza Ferraz, aponta que a presença frequente de muros altos, opacos e cercas elétricas em condomínios residenciais transforma o ato de caminhar nas calçadas em um momento tenso e angustiante. Enquanto os proprietários dos condomínios se sentem seguros e protegidos, os pedestres se deparam com calçadas isoladas pelos paredões e experimentam uma sensação de desconforto, sendo tratados como indesejados.
Uma das autoras que bem descreveu as relações entre o espaço urbano e seus habitantes foi Jane Jacobs. Segundo a escritora norte-americana, a cidade deve ter “olhos para a rua”, ou seja, as edificações devem ter algum tipo de interação, inclusive física, com a rua e a calçada. A falta de diversidade ou o uso monofuncional de certas áreas urbanas apenas agravam a situação de violência. Afinal, é o movimento das pessoas nas ruas e calçadas que traz a sensação de segurança, e não a presença de ruas desertas e espaços ermos.
Moradores de rua, o desafio de encontrar refúgio no espaço urbano
Sem dúvidas, a população em situação de rua é a mais afetada, sendo impedida de buscar abrigo no espaço público. Vale destacar que, de acordo com dados divulgados pelo Ipea em 2022, o Brasil possui mais de 280 mil pessoas vivendo em situação de rua. Intervenções hostis, inclusive chamadas de “dispositivos antimendigos”, têm um efeito particularmente prejudicial a esse grupo.
Além disso, o Brasil enfrenta um déficit habitacional significativo, com milhões de famílias vivendo em condições precárias ou sem moradia adequada, que é um direito básico. De acordo com dados da Fundação João Pinheiro, em 2019, o déficit habitacional do País era de 5,8 milhões de moradias. Essa realidade é reflexo do processo de urbanização em curso sem planejamento, que também tem sido marcado pela privatização e fortificação dos espaços públicos.
“Quando qualquer quina vira uma ferramenta contra desabrigados, as cidades ficam com um aspecto de zona de guerra. Esse mecanismo tenta inibir indivíduos em situação de rua, mas ele inibe todas as pessoas”, comenta o arquiteto e urbanista Tarcísio Gontijo Cunha, para o Estadão. “Quando você isola o morador de rua de uma região, ele vai para outro lugar. Simples. Isso não ataca a causa daquilo, que é a desigualdade.”
A arquitetura hostil não apenas falha em resolver a complexa questão das pessoas em situação de rua, mas também impacta negativamente a relação do indivíduo com o espaço público. Ela impede a plena utilização dos equipamentos urbanos, como bancos e áreas de descanso, que deveriam ser acessíveis e convidativos.
Lei Padre Júlio Lancelotti
No início de 2021, o padre Júlio Lancellotti trouxe à tona o debate sobre arquitetura hostil ao quebrar, com golpes de marreta, as pedras instaladas debaixo do viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida, na Zona Leste de São Paulo. Essas pedras foram posicionadas com o objetivo de evitar a presença de pessoas em situação de rua que utilizavam o local para dormir. Essa obra custou mais de R$ 48 mil aos cofres públicos.
Após a manifestação, a Lei Padre Júlio Lancellotti foi promulgada e proíbe em área pública a arquitetura hostil, isto é, construções e elementos que possuem a intenção de excluir pessoas do espaço público e dificultar o acesso de grupos como crianças, idosos ou pessoas em situação de rua.
A arquitetura hostil remete à aporofobia, um termo elaborado pela escritora e filósofa espanhola Adela Cortina para descrever a aversão aos pobres. Essa tendência de criar barreiras urbanas, arquitetônicas e instalações de exclusão nas cidades tem se tornado cada vez mais comum, apagando a expressão e marginalizando corpos diferentes.
Por isso, o padre Lancelloti, que, desde 1986, promove trabalhos sociais voltados à população em situação de rua na cidade de São Paulo, ajudou a criar o Observatório de Aporofobia Dom Pedro Casaldáliga, que tem como objetivo denunciar a utilização de arquitetura hostil em todo o País.
Mobiliário urbano e exemplos de arquitetura hostil
O mobiliário urbano, como bancos, mesas, abrigos de ônibus, entre outros, desempenha um papel importante na promoção do uso e da apropriação dos espaços públicos. No entanto, quando projetado de forma hostil, com características desconfortáveis, com o intuito de afastar certos grupos sociais, acaba por restringir o acesso e a utilização desses espaços por parte de alguns segmentos da população.
Ao adotar elementos agressivos, reforça-se estigmas e estereótipos sociais, contribuindo para a marginalização e a invisibilidade das pessoas em situação de vulnerabilidade. Sob diferentes formas, a arquitetura hostil encontra expressão no mobiliário urbano, nas fachadas de estabelecimentos, em prédios e até mesmo embaixo de viadutos:
Braços e divisórias em bancos públicos;
Pontas de metal em parapeitos de edifícios;
Instalação de pedras ou inclinações;
Cerca elétrica;
Pedras em áreas livres;
Uso excessivo de grades e cercas;
Instalação de espinhos em áreas cobertas;
Chafarizes inclinados;
Design de calçadas com superfícies ásperas;
Traves metálicas em portas de comércios;
Lanças em muretas;
Bancos com formas geométricas irregulares.
Histórico hostil no Brasil
Em 2005, foram iniciadas as instalações de rampas de concreto na passagem subterrânea que conecta a avenida Paulista à avenida Doutor Arnaldo. Essa medida tinha como objetivo inviabilizar a permanência de transeuntes, o que levou à informal denominação de “rampa antimendigo”.
Em 2007, a prefeitura reinaugurou a praça da República, localizada no centro da cidade, porém incluiu nos bancos da praça divisórias de ferro, que passaram a ser conhecidos como “bancos antimendigo“. Em Porto Alegre, neste mesmo ano, foram instaladas barreiras de concreto em uma passarela que atravessa a avenida Ipiranga, local onde ‘pedintes’ se concentravam.
Já no ano de 2014, a prefeitura de São Paulo criou canteiros de paralelepípedos ao redor das pilastras da linha 1-azul do metrô, na avenida Cruzeiro do Sul, na zona norte da cidade sob a justificativa de evitar que as pilastras fossem danificadas por fogueiras acesas por pessoas que costumavam dormir na região.
A cidade é um espaço dinâmico, onde uma série de conflitos e diferenças se manifestam, refletindo a sociedade que a constrói ao longo do tempo. Se a cidade é caracterizada por violência e segregação, é um indicativo de que existem problemas profundos em sua estrutura social.
Para a presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU-BR), Nadia Somekh, o desenvolvimento urbano mais inclusivo e acolhedor exige políticas integradas de inclusão. “A gente tem que trabalhar pelas reduções das desigualdades, pelo desenvolvimento econômico inclusivo, pela formulação de novas atividades de trabalho e de acolhimento habitacional”, afirma.
Uma cidade mais igualitária e harmoniosa é um desafio complexo, que exige mudanças em diferentes níveis e áreas de atuação. É um processo contínuo e progressivo, que demanda a participação ativa de governantes, planejadores urbanos, arquitetos, ativistas sociais e cidadãos em geral. Somente por meio do diálogo, da colaboração e do compromisso coletivo será possível transformar as cidades em espaços verdadeiramente inclusivos, de uma arquitetura hostil para uma gentil.
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