No deserto de Lut, Irã, onde foi registrada a temperatura mais quente do planeta até hoje, um oásis verde permanece intacto.
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Ana Cecília Panizza em 17 de julho de 2024 6minutos de leitura
Foto: Reprodução/Keith McInnes via YouTube
No meio de um deserto emerge um surpreendente e majestoso oásis verde. Essa é a visão de turistas e de habitantes locais ao caminharem pelo deserto de Lut, no centro-sul do Irã. Trata-se do Jardim Shazdeh (ou Bagh-e-Shazdeh), que significa “jardim do príncipe” na língua persa. Ele fica a seis quilômetros da cidade de Mahan, província de Kerman, tem 5,5 hectares e formato retangular, além de ser rodeado por um muro. Foi construído no século 19 pela Dinastia Qajar para demonstrar riqueza e servir como ponto de parada para as pessoas descansarem durante caminhadas no deserto. Em 2011, entrou para a lista do Patrimônio Mundial da Unesco e até hoje impressiona pelo seu visual exuberante e colorido, formado por árvores e plantas em meio a tanta areia, e pela sua resiliência, já que resiste intacto ao clima extremamente seco e árido do local, ou melhor, ao lugar mais quente do mundo! Lá foi registrada, em 2007, a temperatura mais quente apurada até hoje pela Nasa, agência espacial dos Estados Unidos: 70,7 graus.
Frente aos desafios do aquecimento global, desvendar o segredo da resiliência do Jardim Shazdeh para sobreviver a esse ambiente tão inóspito pode ser uma inspiração para as cidades se tornarem mais resilientes.
Jardim Shazdeh, beleza e funcionalidade
Uma das características do Jardim Shazdeh que contribui para refrescar o ambiente é o sistema de terraços escalonados, cercados por vegetação. Também conhecida como construção em degraus, essa técnica garante que a água percorra toda a área central do monumento. É um sistema construtivo antigo, em que a água flui – como uma cachoeira – do ponto mais alto para o mais baixo, ajudando na irrigação das plantas nos arredores. Do pavilhão no ponto mais alto do Jardim Shazdeh tem-se uma vista panorâmica de todo esse paraíso verde cravado no deserto.
Assim, a estrutura em terraços não foi escolhida apenas pela beleza, mas pela funcionalidade, uma vez que facilita a irrigação das plantas com a água que flui naturalmente do alto para o baixo. “Os jardins de origem islâmica apresentam um eixo central com água que conduz para um ponto de fuga a ser observado. A água refresca o ambiente, que é composto por plantas odoríferas e, muitas vezes, floríferas, em vasos”, comenta Pérola Brocaneli, professora de arquitetura e paisagismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
O Jardim Shazdeh, a exemplo de outros monumentos persas (que eram conhecidos como “paraíso na terra”), foi projetado para refletir a beleza por meio da divisão em quatro setores: céu, terra, plantas e água, esta como elemento central tanto para a sobrevivência do local quanto para a beleza.
Além de água abundante, Pérola explica que um jardim como esse, para ser mantido, tem outras necessidades. “O plantio da vegetação e sua manutenção deve seguir um cronograma de manutenção constante, que incluem poda, adubação e replantio. Além do projeto paisagístico, que deve escolher espécies que formem um pequeno ecossistema”.
Ajuda da gravidade é uma das estratégias do Jardim Shazdeh
A água que abastece o Jardim Shazdeh vem de uma nascente localizada em montanhas próximas – é transportada por meio de um intricado sistema de canais e aquedutos. “O transporte de água por aquedutos é uma técnica simples e histórica, desde que haja abundância de água”, explica Pérola, que lidera o grupo de pesquisa “A Paisagem da Cidade Sustentável: arquitetura, ambiente e tecnologia”, da Universidade Mackenzie.
Os aquedutos funcionam por meio da gravidade e permitem que a água percorra longas distâncias e abasteça populações. Foram criados na Índia, no Egito e na Pérsia (hoje Irã) e aperfeiçoados pelos romanos, que desenvolveram redes complexas de canais que carregavam água por longas distâncias e em diferentes tipos de terrenos. Foram construídos de forma tão eficiente que até hoje alguns deles permanecem visíveis na Europa, no norte da África e no Oriente Médio – caso do Jardim Shazdeh.
Há outros monumentos resilientes tal como o Jardim Shazdeh no próprio Irã, cuja geografia é marcada pelo clima semiárido e pelo relevo montanhoso. É o caso do Jardim Fin, em uma pequena aldeia a nove quilômetros da cidade de Kashan. Esse monumento persa histórico foi concluído em 1590 e é o jardim mais antigo do país. Como o Jardim Shazdeh, tem um pátio principal e é cercado por muralhas, além de estar dividido em quatro partes permeadas por cursos de água. Nesse caso, não se trata de aquedutos: o fornecimento de água é garantido por uma nascente em uma encosta ao lado do jardim. A pressão da água é suficiente para fazer fontes, piscinas e canais do jardim funcionarem sem bombas mecânicas.
Água para o topo
Na contramão do Jardim Shazdeh, que se beneficia da gravidade para transportar água de montanhas para seu interior, via aquedutos, está o sistema adotado na construção, no século 13, do complexo de palácios Alhambra, na cidade de Granada, região da Andaluzia, no sul da Espanha. O sistema impressiona ao desafiar a gravidade, levando água do rio, quase um quilômetro abaixo, até o topo de uma colina. Construída pelos árabes, essa é uma edificação emblemática da arquitetura moura no mundo. Nela, a água está por toda parte: flui em canais que resfriam os prédios e jorra de fontes em grandes salões e pátios. O mesmo sistema é usado no palácio do Generalife, ao lado de Alhambra.
Engenheiros de Muhammad 1º, o primeiro rei da dinastia nasrida ou nacérida (que governou a região de 1230 até a conquista católica espanhola, em 1492), conseguiram superar o desafio da localização elevada dos palácios de Alhambra (a 840m de altura), no monte Sabika, e a transformaram em um local habitável, com acesso à água corrente.
A grande inovação dos nasrida foi criar uma técnica para transportar água por 6 km — do rio mais próximo até o alto do complexo de palácios, que tem pátios, jardins e casas de banho. A principal tecnologia implantada foi a Acequia Real, canal que saía do rio Darro. Um açude, ou barragem, foi construído para desviar o fluxo rio acima, e a força do rio o transportava ao longo da encosta antes de distribuir a água em canais menores. Rodas de água foram adicionadas para elevar a água a diferentes níveis. Em seguida, a água passava por uma complexa estrutura hidráulica (composta por grandes piscinas, cisternas e tubos em uma rede interligada) antes de ser transportada para os jardins dos palácios de Alhambra e Generalife por meio de um aqueduto. Atualmente os turistas podem ver parte da Acequia Real no Pátio da Acequia do Generalife, onde corre pelo meio do pátio emoldurada por jatos de água em arco.
Herança cultural
O Paquistão tem jardins persas similares aos do vizinho Irã, como o complexo de jardins Shalimar, na cidade de Lahore, província de Punjabe. Um dos principais destinos turísticos do país, a construção é Patrimônio Mundial da Unesco. Assim como o iraniano Jardim Shazdeh, é murado, tem formato retangular e foi viabilizado pela construção de um aqueduto que transporta água proveniente do rio Ravi, perto da fronteira com a Índia. O Jardim Shalimar contém centenas de fontes, que descarregam água em grandes piscinas de mármore. O local é mais fresco do que as áreas ao redor devido à densa folhagem do jardim e às fontes de água, um alívio durante os verões escaldantes da região, com temperaturas que podem chegar a 49 graus celsius.
“Os jardins da cultura persa e islâmica são o registro da habilidade humana em criar beleza em meio à aridez, que trabalham a escala humana e o conforto térmico, sendo exemplo da rica herança cultural islâmica”, pontua a professora Pérola.
Assim, o ocidente pode aprender com esses povos técnicas simples e centenárias – até milenares –, porém eficientes, que podem ajudar a enfrentar o calor cada vez mais intenso diante do aquecimento global e das mudanças climáticas.
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