O futuro que vem do passado

A arquitetura, novos olhares sobre metodologias, tecnologias e materiais antigos (até milenares) tornam as cidades mais sustentáveis.

Por Redação em 20 de dezembro de 2023 6 minutos de leitura

materiais antigos na arquitetura

“Ele (o passado) é o produto de nossa memória coletiva, é o seu tecido fundamental. Ele nos ajuda a compreender melhor a sociedade na qual vivemos hoje, a saber o que defender e preservar, saber também o que mudar e destruir”. A reflexão é do historiador francês Jean Chesneaux e está em seu livro “Devemos Fazer Tábula Rasa do Passado?”, publicado em 1976, em Paris.

A essa reflexão podemos somar a importância de resgatar algo que caiu em desuso, mas que pode ser revisitado na busca por soluções para o bem comum. Um exemplo é a retomada de metodologias, tecnologias e materiais centenários – ou até mesmo milenares – na arquitetura das cidades, a fim de torná-las mais sustentáveis e capazes de oferecer maior qualidade de vida para seus habitantes.  

Chaminé que refresca

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Ondas de calor extremo têm atingido populações dos hemisférios Norte e Sul, o que resulta das mudanças climáticas no planeta e requer uso cada vez maior de um inimigo do meio ambiente: o ar-condicionado, que consome grande quantidade de energia. Relatório do IEA (International Energy Agency) aponta que atualmente o uso de ventiladores elétricos e ar-condicionado é responsável por quase 20% do total de eletricidade usado em edifícios em todo o mundo. A IEA projeta que, em 2050, o número de unidades de ar-condicionado será maior do que o triplo de hoje, o que pode demandar o equivalente à eletricidade que é consumida na China e na Índia hoje.

Técnicas do passado podem ajudar a resolver esse imbróglio do presente e do futuro, como a dos pátios internos de residências na China, comuns em edificações construídas nas dinastias Ming (1368-1644) e Qing (1644-1911) para abrigar diversas gerações de parentes. Os pátios internos são geralmente retangulares, ficam no centro da casa e foram idealizados para resfriar as construções. Quando o vento sopra sobre o pátio da casa, ele entra no espaço interno por meio da abertura no teto. Como o ar externo muitas vezes é mais fresco do que o interno, a brisa desce pelas paredes até os andares mais baixos, criando fluxos de ar pela substituição do ar interno, mais quente, que se eleva e sai pela abertura. É como se fosse uma chaminé.

A volta do interesse pela arquitetura tradicional chinesa faz com que edifícios históricos do país com pátios internos sejam restaurados e adaptados para a atualidade, vistos como solução de baixo carbono na construção civil. 

Também para resfriamento de edificações, arquitetos do mundo todo recuperam antigas técnicas adotadas no curso da história, principalmente em locais que sempre precisaram enfrentar clima quente e seco – situação agravada hoje pelo aquecimento global. É o caso das torres de vento, ou badgirs, para resfriamento de edifícios. Segundo pesquisadores, a solução arquitetônica foi inventada pelos persas, mas há vestígios de uso de técnica parecida no Egito, em 1.300 a.C. Essas estruturas consistem em uma torre com aberturas no topo, que capturam os ventos locais prevalecentes, direcionando-os para o interior do edifício por meio de vários dutos e aberturas. 

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Na Índia, a tradicional técnica jaali, termo que designa “bloco perfurado”, usa luz e sombra e ao mesmo tempo ventila os espaços internos das casas. Vista em peças de cimento, terra e madeira, é também símbolo cultural da arquitetura indiana e está em edifícios históricos, como o Taj Mahal. Um escritório de arquitetura indiano reinterpreta hoje essa técnica tradicional de resfriamento para construir um protótipo de cones de argila cilíndrica, com design e tamanho personalizados.  

Já o mashrabiya é um elemento arquitetônico antigo usado no Oriente Médio e no Norte da África, um tipo de treliça ou tela de madeira colocada em janelas, varandas e outras aberturas em edifícios, que permitem que o ar flua para o interior da edificação, fornecendo resfriamento. Para refrescar ainda mais, podem ser colocados vasos de argila com água, areia ou palha úmida. Quando o ar quente passa pelas perfurações, ele também abrange a superfície porosa dos vasos de argila e a umidade no vaso evapora, o que esfria o ar. Este ar resfriado flui para o edifício, ajudando a reduzir a temperatura do espaço interior, através do resfriamento evaporativo. O elemento também é decorativo – com padrões geométricos complexos – e tem função de fornecer privacidade, sombra e entrada de luz, dispensando uso de energia elétrica. Exemplo atual de uso está nas Torres Al Bahar, um par de arranha-céus em Abu Dhabi, cuja fachada é um sistema único de painéis de sombreamento dinâmico inspirados no mashrabiya. É uma fachada com mais de 2.000 elementos hexagonais que se movem em resposta ao movimento do sol, fornecendo sombra aos espaços internos do edifício, controlados por um programa de computador que ajusta a posição de cada elemento com base no ângulo do sol. 

Prédio de cannabis 

Para erguer edificações, um material milenar ganha destaque: o cânhamo, subespécie da planta Cannabis sativa, a maconha. A diferença entre o cânhamo e maconha está no teor da substância psicoativa THC (tetrahidrocanabinol). No primeiro, ele é muito baixo (menor que 0,33%) ou inexistente. Na segunda é mais alto, embora possa variar dependendo da finalidade do cultivo (medicação ou outros usos).

O cânhamo tem sido usado em vários produtos ao longo do tempo como produtos têxteis, alimentos e medicamentos. Seu cultivo é milenar: vestígios de tecidos de cânhamo datados de 8.000 a.C. foram descobertos na antiga Mesopotâmia. Já no século VI, na França, foi usada argamassa de cânhamo na construção de pontes. E os romanos reforçavam seus edifícios com argamassa infundida com fibras de cânhamo.  

Carbono positivo 

Hoje os caules fibrosos do cânhamo são vistos como elementos que viabilizam materiais de construção sustentáveis, naturais e reutilizáveis. Cientistas de todo o mundo têm desenvolvido diversos materiais a partir dessa planta: tijolos e madeira feitos de cânhamo e especialmente o concreto de cânhamo, também chamado hempcrete. Este material resistente produzido pela mistura do núcleo lenhoso da planta com um aglutinante feito de água e cal é isolante térmico e melhora a eficiência energética dos edifícios. Tem crescimento rápido, baixo consumo de água e consegue capturar carbono.

Por conta dessas propriedades, a empresa sueca Ekolution está fabricando painéis de isolamento usando fibra de cânhamo. A companhia recebeu a certificação EPD (do inglês, Environmental Product Declarations), que confirma que seu produto não só é neutro em carbono, como também positivo, porque a quantidade de gás retida é maior do que a emitida. A Ekolution vai fornecer esse tipo de painel para um centro logístico de alta tecnologia que está sendo construído em Estocolmo, Suécia. 

Material simples e bem menos polêmico do que um derivado da Cannabis sativa, o barro chama a atenção de urbanistas e arquitetos por características como baixo impacto ambiental, alta durabilidade e capacidade de refrescar o ambiente. Construções feitas de barro ficaram de pé ao longo de séculos mesmo depois de eventos climáticos extremos, como terremotos e furacões. Elas estão no mundo todo – Ásia, África, América do Sul – e foram feitas a partir de técnicas ancestrais. O barro tem mais inércia térmica do que o concreto, ou seja, atenua o calor e o frio com mais eficiência e reduz a necessidade de ar-condicionado. Além do isolamento térmico, as construções são sustentáveis, pois são feitas apenas de terra e água (matéria-prima 100% reciclável) e sem desperdícios e resíduos. 

Leia mais: A volta da construção de barro – e por que isso é uma boa notícia 

Ponte portátil 

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Foto: Reprodução/ Cody Dock

Também vem de séculos atrás uma técnica revisitada pelo arquiteto britânico Thomas Randall-Page para implantação, em Londres, da ponte portátil, que funciona como passarela de pedestres e muda de lugar quando barcos passam. Randall-Page se inspirou nas pontes levadiças do início do século 19, quando estava em andamento a Primeira Revolução Industrial. Essas pontes funcionavam sem eletricidade, era tudo manual, com um sistema simples, mas inteligente e eficaz, além de sustentável, pois não se usa energia elétrica para operar a ponte portátil, mas sim a mecânica dos guinchos manuais.

Leia mais: Ponte portátil: ela existe. E falamos com o idealizador do projeto!

Ao redor do mundo, pesquisadores, arquitetos, urbanistas e outros profissionais lançam novos olhares sobre materiais e práticas antigos, e até mesmo simples, para tornar casas e prédios de hoje mais confortáveis e sustentáveis, ressignificando tradições. Isso muitas vezes pode vir acompanhado por novas tecnologias e criações, mas nos ensina que olhar para trás pode ajudar – e muito – na hora de irmos adiante. O futuro vem do passado. 

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