Início » Impacto Positivo » Cegueira abre novas perspectivas para a cidade, diz Chris Downey
Cegueira abre novas perspectivas para a cidade, diz Chris Downey
Criador da Arch4Blind, arquiteto americano Chris Downey traz sua perspectiva sobre inclusão na arquitetura.
Por
Camila de Lira em 14 de agosto de 2023 6minutos de leitura
Chris Downey. (Foto: Fogg Studio)
Pioneiro no design acessível para pessoas cegas, o arquiteto norte-americano Chris Downey é a prova de que para enxergar o futuro das cidades, é preciso ir muito além do que se pode ver. Cego desde 2008, Downey não deixou de planejar construções e cidades e, de quebra, ainda traz uma provocação para planejadores urbanos: “quando você coloca o deficiente visual no centro do seu planejamento, a cidade fica melhor para todos”
Antes de falar das suas ideias é preciso entender um pouco da vida de Downey. Em 2008, quando completava 20 anos como arquiteto, o californiano descobriu um tumor no nervo ótico. A cirurgia que retirou o câncer – e salvou a sua vida – teve a perda completa da visão como efeito colateral.
Acostumado com a sua cidade, o seu bairro e, principalmente, a sua profissão, Downey arranjou uma maneira de unir o design, o planejamento urbano e a sua nova condição física. O resultado foi a Architecture for Blinds (Arch4Blind), escritório de arquitetura que presta consultoria com foco em criar espaços amigáveis para deficientes visuais.
Por meio do Arch4Blind, Downey divide o que ele chama de “out-sights”, uma brincadeira em inglês com a palavra “visões”. Ele divide conhecimentos que ganhou em design universal e arquitetura em geral depois que ele ficou cego. “Perder a visão fez de mim um arquiteto melhor”, afirma o designer que se tornou presidente da comissão da Califórnia para melhorar a acessibilidade das cidades do estado norte-americano. Foi depois da cegueira completa que Downey passou a sentir os espaços que ajudou a construir.
Cidade para todos, na perspectiva de Chris Downey
Navegar pela cidade exige muitos sentidos. Uma rua lotada ou engarrafada tem um barulho que atinge até quem não está transitando por ela. Se o local tem muitas crianças, o som chegará antes de qualquer imagem se formar em seus olhos. Se choveu, os seus pés – ou roupa, dependendo da região – ficarão molhados e te fará entender qual foi o grau da tempestade. Se você passar por uma padaria no momento em que o forno está em funcionamento, muito provavelmente, você ficará tentado a entrar. Uma rua com o bueiro estourado te causará o efeito contrário. Chris Downey argumenta que a visão é o “sentido menos interessante” quando se trata do planejamento arquitetônico.
“A cidade é feita para as pessoas se movimentarem, ocuparem. Por isso que uma boa cidade é sempre melhor aproveitada a pé, e não quando você está dentro do carro. Quando você coloca uma pessoa cega no centro do planejamento, você está beneficiando os pedestres”, fala Downey. Ele ainda brinca: “por alguma razão, a sociedade acha ruim que pessoas cegas dirijam carros”.
Uma rua amigável para uma pessoa com deficiência visual também é um espaço amplo, sinalizado e seguro. “Se você é cego, precisará de um sistema de transporte público mais robusto também. Uma exigência que beneficia a todos”, aponta o arquiteto.
Ao explicar, Chris Downey lembra que a realidade para quem tem deficiência – não apenas visual – e tem que encarar a cidade é outra. “Historicamente, há o pensamento de que uma pessoa com deficiência não pode sair de casa, precisa ficar numa instituição feita para abrigar os seus hábitos – que não são aqueles que a sociedade está acostumada”, acrescenta.
A exclusão social chega nas cidades em forma de infraestrutura: degraus muito altos, ruas desniveladas, prédios com rampas de acesso que são excessivamente íngremes, chãos feitos com materiais que derrapam e calçadas com pouco ou nenhum espaço entre a fachada e árvores. “É um erro quase por omissão, porque as pessoas com deficiência visual simplesmente não fazem parte do dia a dia de um estudante de design ou arquiteto. É mais fácil de se esquecer daquelas pessoas que você não convive”, comenta.
Veja também o episódio 26 do podcast Habitability:
Architect4Blind: hora de aparecer!
“Uma pessoa com deficiência só é deficiente porque uma barreira é colocada em seu caminho. São barreiras conscientes e físicas e, às vezes, não-intencionais. Mas quando mais aprendemos sobre, mais entendemos que o design pode antecipar as necessidades das pessoas e tornar essas barreiras menores”, comenta. Downey parte do pressuposto de que o design pode ajudar mais do que a acessibilidade, mas a igualdade.
E para pensar assim, os arquitetos e designers precisam desconstruir uma das principais certezas que têm sobre a própria profissão: de que estão ali para criar ambientes visualmente agradáveis. “A arquitetura não é destinada apenas para os olhos. Não são apenas globos oculares que desfrutam e circulam pelos prédios. São o corpo todo, os olhos só acompanham o resto. A gente não é uma GoPro caminhando por um espaço”, fala o criador da Arch4Blind.
Assim como as cidades, um prédio é mais do que a iluminação, as cores ou os materiais. Ele é um lugar de abrigar o corpo inteiro. “Se você está planejando apenas para os olhos, está perdendo a maioria dos componentes que enriquece a experiência humana. Era mais fácil viver em uma revista ou em uma tela”, provoca.
Uma pessoa cega percebe o ambiente por meio dos sons e do tato. A ecolocalização, a capacidade de “escutar” o lugar não é um super-poder, embora pareça. Na prática, significa que a pessoa ouve uma porta fechando e consegue entender a qual distância está da abertura desta porta. Ou escuta o barulho do motor de um carro que se aproxima e não se aproxima da beira da calçada.
Já o tato vem pelo uso da bengala, que apoia a orientação e a mobilidade pelo ambiente. Voltada para o chão, a tecnologia é como se fosse uma extensão do corpo de uma pessoa com deficiência visual. O dispositivo permite que a pessoa cega sinta se há buracos ou barreiras com antecedência e evite acidentes.
Lembrar desses dois pontos muda a maneira com que espaços internos são feitos. O planejamento precisa levar em conta a acústica. “Um lugar com muito eco, que o som reverbera demais, dá sinais errados para quem precisa entender aquele lugar a partir dos sons”, explica. O que é possível fazer é modular a acústica do espaço, usando materiais e formato do lugar, para fazer com que o som chegue em pontos específicos. Como nas igrejas góticas, que privilegiam a reverberação do som do púlpito e não da audiência.
Aumentar as informações táteis no chão por meio de materiais diferentes, como concretos texturizados ou piso em relevo, aumenta a área perceptiva da bengala. “O chão é muito importante para os deficientes visuais. A gente sente muita coisa pelos pés. Colocar padrões diferentes próximos a lugares que devem chamar atenção, como início de fila ou abertura de porta, já garante mobilidade”, avisa.
Outro fator de atenção é a quantidade de luz e cores. “Muitas pessoas têm baixa visão e podem ser cegadas temporariamente em um local com excesso de informação, como sombras e espelhos”, fala. O fluxo de escadas e entradas de andares também precisa se manter dentro de padronizações. Segundo o arquiteto, mudar as escadas de lugar conforme o andar, por exemplo, corta o fluxo de movimentação do público e traz “dificuldade para quem usa a bengala para interrogar e entender o ambiente”.
Chris Downey contra… um ônibus?
Entender como um deficiente visual percebe os ambientes e se movimenta por eles traz questões nada triviais sobre tecnologia. Um exemplo é o uso dos veículos elétricos.
A vibração e o barulho dos motores de carros e ônibus ajudam os cegos a transitarem na rua. Isso porque eles conseguem escutar e sentir quando um veículo grande está se aproximando. Do outro lado, tem os veículos elétricos, que prometem silêncio e fluidez.
Downey, que mora em uma cidade próxima a São Francisco, está se acostumando só agora com tais veículos. Ele conta que, uma vez, quase foi atropelado por um ônibus elétrico, exatamente pela falta da vibração e o soar do motor. “Por sorte, consegui sentir o que era o espelho lateral do ônibus”, lembra.
Isso não quer dizer, no entanto, que esses carros devem ser banidos das ruas e que a tecnologia deva ser abandonada, mas que é possível achar um meio-termo. Nesse sentido, já há regulamentações pedindo para que as montadoras e criadoras de veículos elétricos adicionem som aos dispositivos. “Não precisa ser o som do motor também, dá para ser mais criativo”, brinca.
Falando em meio-termo, Chris Downey lembra do uso de smartphones e fones de ouvido disseminado nas ruas. O hábito ainda não encontrou um equilíbrio entre meio urbano e cidadãos. “Muitas pessoas estão ficando voluntária e temporariamente cegas e surdas enquanto andam na rua ligadas no celular. E elas não estão acostumadas com essa realidade”, comenta. O fenômeno já ganhou até nome – smombies, uma junção das palavras smartphones e zumbis, em inglês.
No final, se conectar com tudo aquilo que a gente não vê é se ligar com as outras pessoas no seu nível mais essencial. As cidades – e a tecnologia – vão precisar deste tipo de perspectiva.
O Habitability coleta dados pessoais fornecidos por você e, também, automaticamente, a partir das suas atividades de navegação.
Por padrão, as informações que você nos fornece, incluindo, eventualmente, dados que permitem a sua identificação, como acontece se você optar por receber nossa newsletter, não são conectadas às informações de navegação. Sendo assim, garantimos a você que não fazemos rastreamento individual de atividades.
Cookies estritamente necessários
Estes cookies são essenciais para que as nossas páginas funcionem adequadamente. Eles não podem ser desabilitados, pois, se forem, a disponibilização das nossas páginas ficará comprometida.
Os cookies estritamente necessários normalmente são ativados a partir de uma ação tomada pelo usuário, que equivalem a uma solicitação de serviços, como entrar em um de nossos domínios. Esses cookies não armazenam nenhuma informação pessoal identificável.
Se você desativar este cookie, não poderemos salvar suas preferências. Isso significa que toda vez que você visitar este site, precisará ativar ou desativar os cookies novamente.
Cookies de terceiros
Este site usa o Google Analytics e tags de parceiros para coletar informações anônimas, como o número de visitantes do site e as páginas mais populares.
Manter esse cookie ativado nos ajuda a melhorar nosso site.
Ative primeiro os Cookies estritamente necessários para que possamos salvar suas preferências!