Cidade inteligente: mais que tecnologia, uma perspectiva humana

Em debate no SOMA 2024, arquitetas e gestores públicos destacam a perspectiva humana de uma cidade inteligente.

Por Nathalia Ribeiro em 20 de agosto de 2024 8 minutos de leitura

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Da esq. para a direita: Roberta Simeoni, Elisabete França, Valeria Bechara e Stephanie Ribeiro (Foto: Gerson Jr.)

Quando falamos em cidades inteligentes, é comum que a primeira imagem que venha à mente seja a de ruas repletas de sensores, carros autônomos e iluminação pública controlada por Inteligência Artificial (AI). No entanto, reduzir o conceito de cidade inteligente a uma mera aplicação tecnológica é ignorar o verdadeiro propósito por trás dessas inovações: o bem-estar dos cidadãos.

Durante o painel sobre Cidades Inteligentes no evento SOMA 2024, organizado pelo Instituto Mulheres do Imobiliário, as arquitetas Valeria Bechara, Stephanie Ribeiro e Roberta Simeoni, juntamente com Elisabete França, Secretária Municipal de Urbanismo e Licenciamento de São Paulo, enfatizaram que uma cidade inteligente é, acima de tudo, uma cidade que entende e responde às necessidades de seus moradores. Deve ser projetada para ser inclusiva, sustentável e resiliente, garantindo que todos, independentemente de sua condição socioeconômica, tenham acesso a serviços essenciais, espaços públicos de qualidade e um ambiente saudável.

“Embora a tecnologia seja uma ferramenta muito bem-vinda e tenha sido utilizada de maneira eficaz em ambientes urbanos, o verdadeiro significado de uma cidade inteligente vai além. Uma cidade inteligente é aquela que melhora a qualidade de vida de seus moradores. Isso envolve reduzir o tempo gasto no trânsito, possibilitar que as pessoas trabalhem mais perto de casa e garantir que uma criança possa atravessar a rua com segurança. Essas características definem uma cidade não apenas como mais eficiente, mas também como mais justa e equitativa”, ressalta Valéria Bechara. 

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Essa visão humanizada da cidade inteligente é o conceito que sustenta, por exemplo, o projeto Cidade Sete Sóis, lançado pela MRV. Integrando desenvolvimento imobiliário, planejamento urbano e sustentabilidade, no sentido macro da palavra, incluindo os aspectos de ESG – da sigla em inglês para meio ambiente, social e governança, o projeto é centrado nas pessoas, considerando a interação das pessoas com o ambiente urbano.

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Cidade inteligente e a perspectiva feminina

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Tecnologia é uma ferramenta poderosa, mas não um fim em si mesma. O que torna uma cidade inteligente é sua capacidade de usar essas ferramentas para melhorar a vida das pessoas, com um foco especial na proteção e no suporte aos grupos mais vulneráveis, como mulheres, crianças e idosos. Nesse contexto, torna-se fundamental ampliar a participação feminina no planejamento urbano. “As mulheres têm um papel importante na implantação de modelos de cidades voltadas para o bem-estar, como as chamadas “cidades caminháveis”, porque somos mais suscetíveis às questões urbanas, que muitas vezes passam despercebidas por outros”, pontua Elisabete França. 

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Um estudo realizado pelo Instituto Patrícia Galvão revelou que a segurança é a principal preocupação de 90% das mulheres ao se deslocarem pela cidade, superando outras questões como custo, tempo, conforto e praticidade. Além disso, 80% das entrevistadas consideram os espaços públicos significativamente mais perigosos para as mulheres do que para os homens.

Segundo a pesquisa, 55% das mulheres saem de casa pelo menos cinco vezes por semana e 60% costumam sair à noite. Embora as ruas próximas às residências sejam percebidas como relativamente mais seguras em comparação com outras áreas da cidade, apenas 27% das mulheres relatam se sentir muito seguras em seus próprios bairros. A percepção de insegurança é ainda mais acentuada entre as mulheres negras, das quais 41% consideram as ruas da cidade em geral como nada seguras, em contraste com 35% das mulheres não-negras que compartilham dessa percepção.

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Durante o debate, a arquiteta Stephanie Ribeiro relembrou um episódio de seus tempos de faculdade que ilustra o sentimento de insegurança mencionado no estudo. Ela contou que, em um exercício onde um professor pediu o projeto de uma praça, um de seus colegas apresentou um desenho que negligenciava a iluminação, enquanto ela, por outro lado, desenvolveu um projeto onde a iluminação era uma das protagonistas. “Desde os meus primeiros passos como estudante de arquitetura e urbanismo, mesmo sem estar plenamente consciente disso, já percebia que o espaço público não era seguro para mim. Uma praça à noite sempre me parecia um lugar hostil, onde eu me sentia vulnerável e com medo. Foi então que comecei a entender como a percepção de gênero influenciava minha visão sobre o espaço urbano e, consequentemente, meu trabalho como arquiteta e urbanista”, disse ela. 

Stephanie ressalta que quando se diz que as mulheres têm uma percepção diferente no planejamento urbano, não se trata apenas de destacar um ponto de vista distinto, mas de reconhecer que essa percepção é moldada por experiências de vulnerabilidade frequentemente ignoradas. Compreender essa realidade é essencial para a criação de cidades que realmente atendam às necessidades de todos, especialmente das mulheres. É com essa perspectiva que se reflete sobre o significado de viver em uma cidade que verdadeiramente acolhe e protege seus cidadãos.

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Tecnologia como aliada e não solução

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“O olhar cuidadoso e empático, que é uma característica marcante das mulheres, é extremamente valioso na construção de cidades mais humanas e acolhedoras. No entanto, ao integrar essa sensibilidade com soluções tecnológicas, devemos garantir que a tecnologia não obscureça a necessidade de manter a humanidade no centro do planejamento urbano. A combinação de um olhar humano com a inovação tecnológica pode criar cidades que não só funcionam bem, mas que também promovem o bem-estar e a felicidade de todos os seus habitantes”, observa Roberta Simeoni. 

Para ela, o uso adequado dessas tecnologias permite que dados importantes sejam gerados e utilizados em discussões sobre legislação urbanística, possibilitando respostas mais precisas em áreas como segurança e mobilidade. “Para que possamos desenvolver propostas assertivas para uma cidade melhor, é essencial entender que a tecnologia, por si só, não é a solução. A tecnologia deve ser utilizada com um propósito claro e direcionado para o bem-estar das pessoas”, constata Roberta. 

Considerando o contexto do Brasil, um País vasto e diversificado, as cidades possuem diferentes abordagens, dados e métodos para lidar com seus problemas urbanos, por isso, as soluções precisam ser adaptadas às particularidades de cada região. “Diante dessa complexidade, precisamos discutir as dificuldades que enfrentamos ao tentar construir uma cidade ideal para todos. Quais são, então, as dificuldades específicas que encontramos ao tentar aplicar essa visão em um território tão diverso? Essa é uma questão que precisa ser explorada para que possamos desenvolver soluções que realmente atendam às diferentes realidades brasileiras e sejam eficazes em promover a qualidade de vida”, reflete ela. 

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Adaptabilidade como chave para a cidade inteligente

Sob esta ótica, as arquitetas concordam que a cidade inteligente não pode ser vista como um conceito uniforme, pois cada cidade tem suas próprias características, desafios e oportunidades que precisam ser consideradas e respeitadas. A ideia de uma cidade inteligente deve ser adaptável e flexível, moldando-se às particularidades de cada região e às necessidades específicas de seus habitantes.

Uma abordagem uniforme para a construção de cidades inteligentes corre o risco de ignorar a diversidade que existe entre diferentes comunidades, culturas e ambientes naturais. O que funciona em uma metrópole densa e urbanizada pode não ser adequado para uma cidade menor ou uma comunidade rural. Além disso, as condições climáticas e geográficas variam amplamente de uma região para outra, exigindo soluções adaptadas. 

Para Elisabete França, essa diversidade impõe a necessidade de políticas nacionais que sejam flexíveis e adaptáveis às realidades regionais. Não se trata apenas de ajustar o design das casas para enfrentar diferentes condições climáticas, mas também de reconhecer e incorporar o patrimônio material e cultural de cada região.

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“Temos um programa nacional de habitação, o Minha Casa Minha Vida, que segue uma cartilha padronizada para ser aplicada em todo o Brasil. No entanto, essa abordagem uniforme não leva em consideração as particularidades regionais do nosso País. No Rio Grande do Sul, por exemplo, as temperaturas podem chegar a -5 graus, enquanto no Piauí podem alcançar 40 graus. Essas diferenças climáticas significam que uma mesma casa não pode atender adequadamente às necessidades de ambas as regiões. O layout das salas, os banheiros, a ventilação e o isolamento térmico precisam ser diferentes, mas a cartilha exige uma padronização que ignora essas realidades”, disse Elisabete.

A Secretária Municipal de Urbanismo e Licenciamento fez um apelo ao público do evento, composto majoritariamente por mulheres do setor imobiliário. “É essencial que façamos exigências claras junto aos órgãos gestores. Precisamos assegurar que os parâmetros regionais sejam, no mínimo, respeitados”, afirma.

Parcerias que transformam

Embora o setor público seja de extrema importância para o desenvolvimento urbano e a implementação de soluções inteligentes nas cidades, a união entre os setores público e privado pode potencializar esses esforços, gerando resultados ainda mais eficazes e abrangentes.

“Como gestora pública, sempre busco trabalhar com os produtores da cidade, que não são apenas a chamada sociedade civil. É importante ouvir quem produz, pois essas pessoas conhecem os problemas reais, além de considerar as demandas da sociedade civil. Nos debates sobre o plano diretor, vejo que, ao contrário do que alguns possam pensar, estamos sempre ouvindo e ajustando as ideias. Não acredito que o caminho seja impor regras. O poder público, representado pela sociedade civil em toda a sua diversidade, deve estar constantemente aberto ao diálogo”, disse Elisabete França. 

A parceria entre governos e empresas, tradicionalmente voltada para grandes projetos de infraestrutura como rodovias e aeroportos, está ganhando força rapidamente nas cidades. Hoje, setores que impactam diretamente o cotidiano das pessoas, como mobilidade urbana, iluminação pública, terminais, mercados municipais e parques, estão cada vez mais sendo incluídos nessas iniciativas. Para se ter uma ideia, 68% dos projetos de concessão de serviços públicos à iniciativa privada já envolvem municípios, com a maioria desses projetos municipais avançando desde 2021, conforme dados da consultoria Radar PPP, divulgados pela Exame. 

A Secretária sustenta essa informação e diz que, cada vez mais, há uma participação ativa do setor privado na construção das cidades. “Hoje temos concessões e parcerias público-privadas que desempenham um papel fundamental. Esses instrumentos são desenvolvidos para integrar melhor as iniciativas públicas e privadas, sem que uma parte imponha suas vontades sobre a outra. O mercado pode, sim, ser um aliado na criação de cidades mais eficientes. No entanto, é importante manter um equilíbrio, garantindo que as necessidades reais da população sejam ouvidas e atendidas”, complementa ela. 

“Vejo essa parceria como uma equação de corresponsabilidade, o que é muito mais interessante do que simplesmente parecer um negócio comum. Por exemplo, na gestão municipal, cabe à prefeitura o planejamento, a definição das tarifas e o desenho urbano, enquanto à iniciativa privada compete a aquisição e operação dos ônibus. Isso ilustra perfeitamente como essa parceria pode ser estruturada como uma equação em que cada parte assume suas responsabilidades de maneira integrada”, observa Valéria Bechara. 

O objetivo não é simplesmente delegar, entregar, mandar ou obedecer, mas sim trabalhar em conjunto para atingir um propósito comum. A colaboração entre o setor privado e as necessidades públicas, como a habitação, é fundamental. Para as arquitetas, quando o setor público não consegue atuar com a rapidez e eficiência necessárias na construção de moradias, ele se une ao setor privado, que pode executar essas tarefas de forma mais eficaz. “No entanto, tudo isso deve ser feito em consonância com o planejamento e a escuta ativa do setor público. O objetivo é que essa colaboração resulte em uma entrega conjunta, onde todos participam e se beneficiam. Ignorar a possibilidade de combinar as capacidades de ambos os setores seria um erro. A verdadeira inteligência está em aproveitar ao máximo essa soma de competências”, ressalta Valéria. 

A construção de cidades inteligentes exige, portanto, mais do que apenas a implementação de tecnologia avançada. É necessário um entendimento profundo das necessidades locais, uma abordagem inclusiva que envolva todos os cidadãos e uma colaboração eficaz entre os setores público e privado. As cidades não podem ser vistas como meras aplicações de modelos padronizados; elas precisam ser moldadas de acordo com as realidades e particularidades de aqueles que vivem nelas.

As arquitetas e a secretária municipal concordam que essa é uma tarefa complexa, mas não impossível. Com uma abordagem colaborativa e adaptável, é possível construir cidades que acolham e protejam seus cidadãos, utilizando a tecnologia como uma ferramenta poderosa, mas mantendo sempre o foco no ser humano.

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