Construir cidades inteligentes vai além da adoção de novas tecnologias. É preciso entender as necessidades específicas de cada comunidade, considerando sua diversidade cultural, desigualdades sociais e desafios locais. É justamente nesta intersecção que atua Flavia Bernardini, professora e pesquisadora de Ciência da Computação na Universidade Federal Fluminense. Com 20 anos de experiência, Flavia tem dedicado sua carreira a explorar como a educação e as tecnologias, como Análise de Dados e Inteligência Artificial, podem melhorar as cidades e empoderar os cidadãos.
Em entrevista ao Habitability, Flavia destacou a importância de integrar educação e participação social para criar cidades inteligentes. Para ela, a chave não está apenas na tecnologia, mas em capacitar os cidadãos para interagir de forma crítica e eficaz com as inovações. A tecnologia é apenas o meio, as pessoas são os pilares.
No Brasil há uma pluralidade cultural nas cidades. Como a diversidade cultural e as características únicas de cada município influenciam os projetos de cidades inteligentes e a forma como eles devem ser adaptados?

Flavia Bernardini: É importante sempre lembrarmos que cidades inteligentes precisam ter o cidadão no centro. Quando falamos sobre modelos de inovação em cidades inteligentes, já não estamos mais pensando apenas na hélice tripla clássica, que envolve o Instituto de Ciências e Tecnologia, o governo e a indústria, ou seja, as empresas. Devemos também incluir um quarto ator nesse processo: o cidadão. Se observarmos as definições de cidades inteligentes, que são diversas, até na literatura, todas convergem para a ideia de colocar o cidadão no centro. Por isso, o termo Smart Cities evoluiu para Smart Sustainable Cities, ou seja, Cidades Inteligentes e Sustentáveis, ou ainda, Human-Centric Smart Cities, que significa cidades centradas no ser humano.
O que vai variar de uma cidade para outra, como os arquitetos costumam dizer, é que cada cidade é única, com suas próprias forças, fraquezas e culturas. Portanto, os projetos de cidades inteligentes devem levar em consideração a participação pública. O que ainda vemos, de certa forma, engatinhando no Brasil, é a tendência de começar com um planejamento estratégico de cidade inteligente que leve em conta as forças e fraquezas locais. Isso é fundamental para identificar os problemas que precisam ser resolvidos e determinar quais projetos devem ser feitos.
De que forma os processos de escuta popular e participação cidadã podem ser integrados no planejamento estratégico das cidades?
Flavia Bernardini: Em Niterói/RJ, houve um processo de escuta popular para construir o planejamento estratégico da cidade, chamado Niterói Que Queremos. Apesar de críticas mais recentes alegarem que o plano está desatualizado, é importante lembrar que o planejamento urbano é um processo contínuo, que exige revisões e ajustes conforme a cidade evolui. Diferentemente de uma indústria, uma prefeitura é extremamente complexa, com diversas secretarias e áreas que precisam ser articuladas. O alinhamento dos projetos com o planejamento estratégico da cidade e a participação da população nesse processo são fundamentais. No entanto, ainda vejo uma adesão muito baixa da sociedade. Isso pode estar relacionado tanto à forma como as prefeituras promovem a participação quanto à desconfiança generalizada nas instituições públicas, algo que não é exclusivo do Brasil, mas uma tendência global.
Fortalecer essa confiança é um processo em construção?
Flavia Bernardini: Pesquiso governo digital e participo de conferências internacionais sobre o tema. Neste ano, o Brasil sediará pela primeira vez a conferência da Digital Government Society (DGO), o que representa um avanço importante. Muitos artigos discutem como fortalecer a confiança nas instituições públicas por meio do governo digital, mas ainda estamos longe de ver isso em larga escala. O próprio caso de Niterói ilustra esse desafio: em uma cidade de 600 mil habitantes, apenas cerca de mil ou dois mil participaram da construção do plano estratégico.
Como despertar nas pessoas o interesse em participar das decisões sobre a cidade onde vivem? O que pode tornar esse processo mais atrativo e próximo da realidade delas?
Flavia Bernardini: Essa, pra mim, é a pergunta de ouro. Como fazer com que mais pessoas participem? Um exemplo interessante é o Colab, um aplicativo que Niterói usa bastante e que permite à população registrar problemas urbanos, como esgoto a céu aberto, com fotos e descrições. Já recebi até retorno do app informando que a solicitação foi resolvida. Mas, embora útil, muita gente ainda não conhece a ferramenta, mesmo morando na cidade. Ela ganhou força durante a pandemia, com o agendamento da vacinação, mas perdeu visibilidade depois.
Isso me faz pensar se o problema não está na falta de divulgação. Será que as prefeituras deveriam promover mais esses canais? Ou será que nem deveriam ser elas as responsáveis por isso? Tem gente que, ao saber que é algo ligado ao governo, já perde o interesse. Talvez organizações da sociedade civil ou ONGs pudessem assumir esse papel de divulgação e engajamento. Até a própria população, com pessoas mais engajadas, poderia ajudar.
Na sua visão, qual é o principal obstáculo? O que a sustenta esse distanciamento?
Flavia Bernardini: Sinceramente, tenho a impressão de que há interesses contrários à participação popular. Agora estou falando como cidadã, não com base em dados ou pesquisas. Mas acredito que existem pessoas que preferem manter o controle das decisões públicas concentrado em poucos, em vez de ampliar a participação da sociedade. É um conceito que ainda precisa ser muito trabalhado. Agora falando não só da minha opinião, mas também com base no que eu estudei: quando pensamos em cidades inteligentes, é essencial quebrar a barreira da participação cidadã. Existem dois grandes conceitos nesse campo, cidades inteligentes e governo aberto.
Do que se trata o conceito de governo aberto?
Flavia Bernardini: O governo aberto é aquele que cria mecanismos de comunicação entre a administração pública e a população. Segundo a literatura de governo digital, esses mecanismos podem ser muito variados: desde o atendimento presencial no balcão até e-mail, telefone, websites, aplicativos, WhatsApp e outros. Cada um tem suas vantagens e desvantagens. O balcão, por exemplo, oferece atendimento mais humanizado, mas tem alcance limitado. Já os meios digitais aumentam o acesso da população aos serviços e à informação.
Falando de Niterói novamente, existe o Centro Integrado de Segurança Pública (CISPE) que se encaixa no modelo dos chamados Centros de Comando e Controle (CCCs), como o COR no Rio. Em Niterói, o CISPE oferece atendimento via WhatsApp e também por telefone, por meio do número 156. Eu conheço bem esses serviços porque moro lá e uso no meu dia a dia. Outras cidades, como o Rio e São Paulo, têm estruturas semelhantes. E oferecer esse tipo de canal de participação, além de divulgá-los bem, é fundamental.
O que falta para tornar essas informações e canais públicos mais acessíveis e compreensíveis para a população em geral?
Flavia Bernardini: Dentro da universidade, costumo lembrar aos colegas que qualquer cidadão pode solicitar informações ao governo por meio da Lei de Acesso à Informação e da Lei de Transparência. Mesmo que nem sempre haja resposta, é obrigação dos órgãos públicos disponibilizar dados como contas e investimentos em seus portais. Cidades com mais de 50 mil habitantes, por exemplo, são obrigadas por lei a manter um portal de dados abertos. O problema é que poucas pessoas conhecem esses mecanismos – algo entre 5% e 10% da população. E, entre os que conhecem, muitos vêm das áreas de ciências sociais, jornalismo ou pesquisa. Mas será mesmo necessário ser especialista para acessar e entender esses dados? Acredito que não. Por isso, uma das linhas das pesquisas que colaboro tem sido pensar justamente em como tornar esse acesso mais simples e efetivo para todos.
Quais caminhos você tem estudado, nesse sentido?
Flavia Bernardini: Uma ex-aluna minha, que hoje é professora na UERJ, e eu temos trabalhado com o conceito de interpretabilidade dos dados, que está diretamente ligado à literacia de dados. Isso tem ganhado destaque hoje, junto com a discussão sobre literacia em inteligência artificial. Ou seja, precisamos criar ferramentas e desenvolver competências que permitam à população entender e usar os dados públicos com autonomia.
Como garantir que as ferramentas de acesso a dados públicos não fiquem restritas a quem já tem capital educacional e digital? Quais alternativas podem tornar esse acesso mais equitativo e inclusivo?
Flavia Bernardini: Eu e um aluno do doutorado estamos desenvolvendo ferramentas voltadas ao treinamento de professores da educação básica para o uso de dados abertos em sala de aula. A ideia é que isso contribua para a cidadania digital, especialmente no aspecto da participação cívica. Ainda não sabemos se esse tipo de iniciativa realmente aumenta o engajamento das pessoas, é uma hipótese em construção. No Brasil, há muitos pesquisadores investigando temas semelhantes. O Colab, por exemplo, é uma aplicação que se enquadra como crowd sensing e crowdsourcing, em que a inteligência coletiva alimenta o governo com informações. Outros estudam ferramentas voltadas à “reparticipação”, uma nova camada de envolvimento cidadão com o poder público.
No meu caso, por vir da computação, meu foco está no desenvolvimento de artefatos computacionais que ajudem a promover a participação popular. Mas há colegas de outras áreas, como a administração, que estudam governo digital sob uma ótica diferente, pensando, por exemplo, em como aproximar a população das decisões públicas dentro do contexto das cidades inteligentes, mesmo sem o uso direto de tecnologia.
Você mencionou um treinamento de professores da educação básica. Esse seria um caminho mais efetivo para a formação de cidadãos digitais mais engajados nos problemas urbanos?
Flavia Bernardini: Eu acredito totalmente nisso. No doutorado de interpretabilidade de dados abertos que mencionei anteriormente, tentamos fazer oficinas com estudantes, especialmente do ensino superior, que são mais acessíveis para quem está na universidade. Mas percebemos uma dificuldade de engajamento. Muita gente questionava: “Por que eu deveria participar disso? Qual é a utilidade?”. Chegamos a fazer umas duas oficinas, mas mesmo entre alunos de graduação, a adesão foi baixa.
O que observamos é que o engajamento costuma surgir de uma formação prévia, de quem cresceu em ambientes que valorizam a participação cívica, ou acaba se desenvolvendo já na universidade. Mas, de qualquer forma, sempre existe uma barreira. E quando essas ações são obrigatórias, a motivação muda completamente. A pessoa participa porque é forçada e não por vontade própria.
Foi a partir dessas reflexões que mudamos o foco e passamos a trabalhar com professores. A ideia é capacitá-los para que eles levem esses conteúdos aos alunos de forma mais natural e integrada. A premissa continua sendo a mesma: queremos alcançar os jovens. Porque uma das grandes qualidades da juventude é essa disposição para experimentar, para olhar o mundo de forma diferente. Se conseguirmos plantar essas sementes desde cedo, já estaremos promovendo mudanças significativas.
O conceito de cidades inteligentes costuma ser imediatamente associado à tecnologia e à ideia de futurismo. Mas como você enxerga a integração da tecnologia com outras dimensões, como a sustentabilidade ambiental e a inovação social, na construção de cidades mais humanas e resilientes?

Flavia Bernardini: O conceito de cidades inteligentes abrange múltiplas dimensões, como saúde, educação, governança, meio ambiente e qualidade de vida, que envolvem diretamente a relação entre governo e cidadão. Cada uma dessas frentes pode ser trabalhada com mecanismos de inovação, que não necessariamente precisam ser digitais. No entanto, quando se fala em governo digital, a tecnologia costuma atravessar todas essas áreas. Ela funciona como meio de viabilizar políticas públicas mais eficazes, como no caso da saúde, onde sistemas digitais são essenciais para organizar dados, monitorar demandas e orientar decisões, embora nem toda inovação precise parecer futurista. Soluções simples, como telhados verdes para reduzir o calor ou aplicativos que otimizam serviços cotidianos, também são formas eficazes de inovação. Muitas vezes, o impacto dessas tecnologias está justamente em sua capacidade de resolver problemas reais e específicos, como os apps de entrega de comida fez ao facilitar o acesso a cardápios e pedidos em um único ambiente digital.
Muito se fala em tecnologia como motor da transformação urbana. Mas, na prática, que soluções tecnológicas você acredita que realmente funcionam e têm potencial de impactar positivamente as cidades brasileiras?
Flavia Bernardini: Antes de aplicar tecnologia é necessário olhar para a questão cultural. Não importa o quão bem desenvolvida seja a tecnologia ou o software se a população não está alinhada para utilizá-lo. Isso é especialmente verdade em projetos governamentais, onde a falta de compreensão do contexto cultural local pode levar a falhas no engajamento. Quando as soluções tecnológicas não atendem às necessidades reais de quem vai usá-las ou são impostas sem o devido suporte, há resistência. O produto final pode até ser eficiente, mas se não for adotado pela população, a implantação fracassa. Antes de tecnologia, o importante é que as cidades tenham programas estruturados, com iniciativas bem planejadas e voltadas à melhoria da qualidade de vida, levando em conta o contexto local e a realidade de seus habitantes.
Pensando na realidade brasileira, marcada por contrastes regionais, desigualdades e uma rica diversidade cultural, como você imagina o futuro das cidades inteligentes? Que obstáculos estruturais e culturais ainda precisam ser enfrentados para que esses modelos realmente funcionem?
Flavia Bernardini: Vejo dois grandes desafios. O primeiro é o avanço da extrema-direita, não apenas no Brasil, mas em diversas partes do mundo, o que tem imposto barreiras significativas à pesquisa e ao desenvolvimento em áreas como a Inteligência Artificial (IA). Muitos pesquisadores têm enfrentado restrições, como a negativa de vistos ou o corte de financiamentos, especialmente em áreas voltadas para a inclusão e a análise das desigualdades sociais. A resistência da extrema-direita à inclusão das pessoas e ao avanço de políticas públicas voltadas para a equidade cria um cenário difícil para a implementação de projetos de cidades inteligentes, que dependem de investimentos do governo federal, especialmente em cidades sem grandes fontes de receita.
A implementação de cidades inteligentes exige um planejamento estratégico, que muitas vezes é inexistente ou insuficiente em várias prefeituras. Esse planejamento requer investimentos consideráveis, equipes dedicadas e uma abordagem colaborativa, além de custos altos para a execução de projetos. As prefeituras precisam de apoio do governo federal para realizar ações de impacto. Além disso, é fundamental considerar as decisões de curto, médio e longo prazos, já que as ações cotidianas exigem um tipo de planejamento diferente das decisões de longo prazo.
O segundo desafio, ouso dizer, é a falta de organização interna nas prefeituras. Muitas secretarias operam de forma isolada, cada uma focada em seu próprio “feudo”, sem uma comunicação eficaz com as demais. Essa fragmentação dificulta a criação de um funcionamento integrado, essencial para o bom desenvolvimento e gestão da cidade.
Como superar esses desafios e garantir que as cidades inteligentes realmente se tornem uma realidade no país?
Flavia Bernardini: Quando penso em projetos de cidades inteligentes, enxergo isso dentro de um guarda-chuva mais amplo, como parte de um programa municipal de cidades inteligentes. E, dentro desse programa, podem existir diferentes tipos de projetos. Às vezes, é algo específico, como a instalação de câmeras para criar uma espécie de “cerca inteligente”. Em outros casos, pode ser um projeto voltado para a área da saúde, como analisar dados para decidir onde instalar novos hospitais. Lembro, por exemplo, do movimento forte em Niterói para criar um hospital de referência durante a pandemia da Covid-19. Houve toda uma discussão sobre onde ele deveria ser localizado, baseada em dados e demandas do território.
Esse tipo de projeto exige pessoas capacitadas, testes, e a compreensão de que nem tudo vai funcionar perfeitamente desde o início, às vezes uma parte dá certo, outra não. Por isso, é fundamental que haja disposição para assumir certos riscos.