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“Cidades precisam ser deliciosas para todos”, diz Larry Beasley
Criador do “Vancouverismo”, Larry Beasley conta sobre como a experiência canadense pode ajudar o Brasil.
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Camila de Lira em 4 de abril de 2022 8minutos de leitura
O que torna uma cidade boa de se viver? E o que torna ela simplesmente deliciosa? A diferença entre essas respostas foi o que incentivou o urbanista canadense Larry Beasley a transformar a sua cidade, Vancouver, em uma referência para o urbanismo mundial. O modelo recebeu o nome de “Vancouverismo”, que se caracteriza por um formato de cidade verticalizada, densa e sustentável.
Em entrevista exclusiva ao Habitability, Beasley conta um pouco do foco da mudança de Vancouver e de como a cidade se tornou centrada em pessoas, mesmo com um espaço limitado para crescer. “As cidades não são um conceito estático, elas são sempre dinâmicas”, disse o urbanista e escritor do livro “Vancouverism”. O planejador urbano, que também é referência em cidades sustentáveis, ainda falou sobre os desafios da gentrificação e como o Brasil pode transformar suas cidades.
Você transformou a cidade de Vancouver nas décadas de 1980 e 1990. Como foi esse processo?
Larry Beasley – Logo que saí da faculdade queria trabalhar no serviço público. Vancouver passava por mudanças: os bairros centrais estavam morrendo e as pessoas estavam fugindo para os subúrbios… Então passei 10 anos da minha vida revitalizando bairros centrais da cidade e assim conseguimos estabilizar nossas comunidades, fazendo com que as pessoas não quisessem mais ir para os subúrbios. Nesse meio tempo, a economia canadense estava mudando e tivemos que reinventar a cidade para essa nova realidade de migração e imigração. Foi aí que o processo todo começou: tivemos que reposicionar a cidade a partir do centro e dos bairros considerados “degradados”.
Cidades pelo Brasil estão passando por essa batalha para revitalizar parte de seus centros. Como aconteceu em Vancouver?
Larry Beasley – O primeiro ponto é que, durante os anos 1990, a gente colocou um limite físico até onde a cidade poderia crescer. Os limites eram as montanhas, rios e a área verde em volta de Vancouver. Isso conteve o espraiamento e ajudou a manter as áreas agrícolas. No entanto, nos deu um desafio: tivemos que ser mais inteligentes na densificação da cidade. Nesse caso, significava verticalizar as áreas que já tínhamos.
Tivemos que convencer os cidadãos que ali era um espaço bom de se viver em oposição aos bairros residenciais com grandes casas. Para isso, tivemos que ser criativos. Então, passamos a analisar todos os aspectos que compõem o morar em um espaço urbano. Conversamos com milhares de pessoas de cada bairro de Vancouver para entender quais eram as áreas que deveríamos estimular, o que acabou trazendo um novo conceito de cidade super-densa, diversa, não voltada para carros e muito bem habitável. A cidade precisava ser deliciosa, um lugar que os cidadãos prefeririam viver.
Nessas conversas com os moradores, o que descobriram?
Larry Beasley – A gente analisou o que famílias com crianças pequenas e famílias maiores precisavam para viver em espaços de alta densidade. Descobrimos que os problemas eram mais ligados à mobilidade até o trabalho e as escolas. Também perguntávamos o que seria delicioso de ter no bairro. Muitos falavam sobre a necessidade de espaços abertos ou prédios de qualidade.
Qual foi o resultado prático desse processo?
Larry Beasley – Do começo dos anos 1990 até o final de 2010, Vancouver se transformou completamente. Mais de 75 mil pessoas mudaram para o centro. Na faculdade de urbanismo eu aprendi que, normalmente, um planejador urbano não vê os resultados do seu trabalho. Mas a gente conseguiu ver. Além disso, os bairros continuaram com diversidade de pessoas. A maioria deles têm um terço de pessoas de baixa renda, um terço de pessoas de alta renda e um terço de classe média. Foi algo que se manteve nos últimos 25 anos.
Pensando em desenvolvimento econômico, qual o maior desafio de Vancouver hoje em dia?
Larry Beasley – No final de todas as edições do Vancouverism [livro de Beasley sobre o modelo de Vancouver], sempre falo que sempre terão novas edições. As cidades não são um conceito estático, elas são sempre dinâmicas. As cidades evoluem, há sempre novos desafios.
Um dos maiores desafios do Canadá é a habitação para a classe média, principalmente para a classe média do futuro. Cidades como Vancouver se tornaram tão boas que muitos vieram para cá. Isso aumentou o preço dos imóveis e criou um grande problema de acessibilidade à habitação. O mercado acomoda muito bem as pessoas mais ricas e há recursos governamentais para a população de baixa renda. O problema é a habitação para a classe média. Temos até um nome para isso, são o “missing middle” [o meio perdido, em tradução livre].
Em entrevista para o Habitability, Washington Fajardo, secretário de planejamento Urbano do Rio de Janeiro, falou que preferia lidar com a gentrificação do que com o abandono. Qual a sua visão sobre a gentrificação?
Larry Beasley – Existem dois tipos de gentrificação. Um tipo entrega o bairro aos ricos enquanto desapropria os pobres. O outro tipo revitaliza o bairro, torna-o disponível para quem tem mais dinheiro, mas protege os mais pobres. Essa última é a gentrificação sem desapropriação.
Nos bairros mais pobres de Vancouver seguimos uma estratégia de “adensamento sem desapropriação”. À medida que aumentamos a qualidade, a comodidade e a habitabilidade dos bairros, também tomamos medidas para proteger os serviços públicos do local, pensando naqueles usados por pessoas de renda menor.
O fato é que, para revitalizar as comunidades, é preciso trazer mais riqueza para dentro dela. Aqueles que não gostam de riqueza chamam essa ação pejorativamente de gentrificação.
Eu concordo com o que Fajardo disse, prefiro gerenciar a gentrificação e fazer melhor o meu trabalho, que é assegurar os serviços e a habitação para as pessoas e melhorar a qualidade dos bairros por meio de mudanças sutis no cenário, para, no final, tornar a vida das pessoas melhor.
Como o modelo canadense pode ajudar o cenário brasileiro atual onde há uma questão em revitalizar bairros mais pobres?
Larry Beasley – No final dos anos 1960 e começo dos anos 1970, as cidades canadenses tinham bairros caindo aos pedaços. Eram áreas empobrecidas e fisicamente destruídas. A primeira ação do governo foi a “renovação urbana”, o que foi um grande erro. A renovação demolia os bairros considerados degradados porque se baseava na premissa que o problema daqueles espaços era a infraestrutura. Além de demolir prédios históricos magníficos, essa política não era nada sustentável. Os habitantes daqueles bairros não gostavam dessa renovação e acabavam indo para outros espaços. Porque, no final das contas, mesmo nas piores situações físicas, ainda é possível existir comunidades vibrantes. Foi um tapa na cara para os urbanistas daquela época, já que muitas pessoas começaram a se virar contra o planejamento urbano e a renovação.
A mudança veio nos anos 1980, com o processo de entrevistar e conversar com os moradores desses bairros. No lugar de renovar, procuramos revitalizar. Entendemos o que os bairros precisavam e preenchíamos essas lacunas. Algumas vezes era muito mais uma questão de melhorar os serviços públicos do que reconstruir espaços inteiros.
Tendo em vista a sua atuação na revitalização de bairros pobres em Vancouver, como o planejamento urbano pode acomodar as mudanças sociais pela qual as cidades passam?
Larry Beasley – O planejador é apenas um agente, um ator em todo o sistema socioeconômico. Não acho que um planejador consegue dizer que apenas o planejamento, o gerenciamento urbano, consegue assegurar todas as dimensões de uma sociedade igualitária e justa. É preciso uma ação da comunidade, do político, da economia. E até mesmo mudança cultural em alguns casos. O que o planejamento urbano pode fazer é contribuir para que a sociedade avance na direção da igualdade social em alguns pontos. Podemos nos assegurar que nossas políticas e nossos processos respeitem a população, não importa de onde ela venha. Também podemos assegurar que a cidade que a gente desenhe, em termos de formas e usos, tenha abrangência para pessoas de todos os espectros econômicos. E, com certeza, podemos nos assegurar de incluir vários tipos de famílias e pessoas em nossos projetos de habitação: desde famílias com quatro pessoas até indivíduos morando sozinhos, casais jovens, famílias mais velhas. Podemos ajudar a construir instituições que dão a infraestrutura para as pessoas criarem comunidades.
Muitas coisas não podem ser feitas pelo planejamento urbano, mas podem ser feitas por uma comunidade, uma vez que ela consiga se organizar. As infraestruturas ajudam a criar uma ferramenta para os cidadãos virarem esses agentes.
E com relação ao meio ambiente, como um planejador urbano pode fazer a diferença?
Larry Beasley – Esta é com certeza uma área que os planejadores urbanos podem fazer uma diferença gigante. Até a virada do século, o meio ambiente não era levado em conta na construção das cidades. Ninguém conseguia dizer como os ecossistemas [em volta das cidades] funcionavam. E, certamente, ninguém conseguia dizer como as cidades estavam impactando negativamente esses ecossistemas. Isso mudou desde o começo do século 21. Hoje em dia, todo planejador urbano já tem padrões para colocar esse tipo de análise no papel.
Algumas cidades, como Copenhague, já estão planejando ser zero carbono até 2025. Sim, 2025, e não em 2050 como a ONU planejou para o resto das cidades do mundo. De maneira prática, alguns atos simples podem trazer resultados sustentáveis para a cidade, como definir as áreas verdes de preservação. Uma inspiração que tenho vem do Brasil, a cidade de Curitiba, onde eles conseguiram criar espaços para o transporte público que eram bons para as pessoas, removendo centenas de carros das ruas.
A diferença entre os problemas ambientais e os problemas sociais é que, no caso dos problemas ambientais, as soluções científicas são evidentes. Os problemas sociais são mais complexos de se resolver.
Nesse sentido, você vê o espaço “social” sendo mais importante que o espaço físico em uma cidade?
Larry Beasley – Por mais que a parte social seja importante, a parte física também importa. Afinal, uma grande cidade não é a que tem uma grande sociedade, mas uma infraestrutura ruim ou feia. A melhor cidade tem um espaço físico bonito e funcional. Em Vancouver, os prédios do centro foram planejados para manter a visão das montanhas e dos rios, porque o visual também importa. No final das contas, os dois lados, o social e o físico, são importantes para se criar uma cidade incrível. Os dois lados precisam ser gerenciados e observados para criar inovação.
Você é um defensor da ideia de que os carros não vão sumir, mas a sociedade vai se adaptar de forma mais sustentável. Como as cidades irão absorver o “novo carro”?
Larry Beasley – O número de pessoas donas de carros está aumentando no mundo. Em alguns países, as pessoas optam por comprar o primeiro carro antes de ter o primeiro banheiro privado! Isso mostra o quanto a mobilidade pessoal é fundamental para os seres humanos. O problema é que criamos um formato de mobilidade pessoal que não é sustentável. É muito grande, faz muito barulho… Vejo esses problemas sendo resolvidos. Os veículos não vão poluir, serão gerenciados de outra forma.
Além dos carros em si, viemos de uma cultura onde o carro era o rei (ou a rainha, depende de quem fala). E essa não é mais a realidade. Nós iremos gerenciar o carro, mas ele não será mais o centro do planejamento urbano. Eu sou a favor de diminuir pela metade o espaço das cidades voltado para os carros. Isso não significa, no entanto, que a gente vai se livrar do carro. Temos que gerenciar o carro para que ele seja útil para a gente, no lugar de ser uma utilidade que abusa da gente.
Sou também a favor do transporte coletivo gratuito. Para ser competitivo no nível individual, o transporte público coletivo deveria ser de graça, da mesma forma que as ruas são de graça para andar.
Como será a cidade de 2050?
Larry Beasley – A resposta acadêmica para essa pergunta é que a cidade será habitável para todos, sustentável e resiliente, com mecanismos para evitar as surpresas desagradáveis. A cidade terá um uso diversificado, nada de apenas bairros residenciais ou bairros comerciais. E será densa.
Indo para fora do espectro físico, será uma cidade mais inclusiva, que vai descobrir os caminhos legais de acomodar pessoas de todos os espectros.
E, se é para colocar uma gota de otimismo, devo dizer que serão cidades lindas. Serão gloriosamente lindas. Afinal, o que não toca o coração das pessoas não é protegido por elas. E as cidades precisam tocar o coração de todos.
É interessante observar que você não fala de uma cidade com uso intenso de tecnologia quando faz esse cenário do futuro. Por que?
Larry Beasley – É verdade que as cidades precisam ser resilientes para abraçar as novas invenções da humanidade, já que estamos, de fato, com ciclos mais rápidos de transformações digitais. Mas a vida é mais do que apenas invenções tecnológicas.
Se você for ao básico do que significa viver e morar em um lugar, você percebe que o que importa é o apoio, a comunidade, a família, a autorrealização. Acabamos perdendo um pouco disso na busca por desenvolvimento econômico. A felicidade vem quando existe amor e respeito mútuo envolvido. É por isso que acho que esses valores precisam entrar na equação quando falamos de planejamento urbano e que as cidades precisam manifestar isso.
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