Plantas que crescem em pleno asfalto; morcegos e aves que se acomodam em construções industriais. Paradoxo? Não. É engenhosidade e adaptabilidade da natureza fazendo das cidades um refúgio de biodiversidade para espécies cujos ecossistemas naturais foram degradados. Mais do que abrigo, locais densamente povoados podem se tornar centros de conservação de fauna e flora.
Esses fenômenos tendem a se intensificar, uma vez que o presente e o futuro são urbanos: cerca de metade da população mundial vive em cidades e essa parcela deve aumentar para 70% até 2050, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). À medida que o processo de urbanização aumenta, espécies de plantas e animais são forçadas a migrar para cidades.
No entanto, a natureza não se rende ao avanço do concreto. Algumas espécies mostram sagacidade ao conquistar ambientes urbanos, hostis a elas, e se adaptar. Antes, elas habitavam florestas, campos e montanhas. Em áreas urbanas, enfrentam o desafio de sobreviver mudando comportamentos, dietas e hábitos.
Por outro lado, cidades são refúgio de biodiversidade por oferecer vantagens para a fauna e flora pela abundância de recursos, como água, além de servir como abrigo, atraindo espécies, e ser um ambiente seguro, onde predadores naturais são raros.
Assim, a urbanização cria novos nichos ecológicos, como parques urbanos, jardins e até estruturas artificiais (edifícios e pontes), que podem ser explorados por espécies adaptáveis, que conseguem explorar esses locais e prosperar, muitas vezes até em ritmo mais acelerado do que em seus habitats naturais.
Ilustres moradores de cidades

Pombos são um exemplo clássico de cidades como refúgio de biodiversidade. Originários de regiões rochosas, eles se adaptaram bem ao ambiente urbano construído, onde edifícios altos e pontes substituem penhascos naturais. Em áreas urbanas, os pombos encontram fonte constante de alimento em resíduos deixados pelos humanos e são parte integrante da paisagem urbana, vistos principalmente em praças.
São amigáveis, não atacam as pessoas e desempenham papel importante na dispersão de sementes. Por outro lado, podem transmitir doenças, principalmente por meio de seus excrementos. Flavio de Queiroz Telles Filho, médico infectologista e professor do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Paraná (UFPR), explica, em entrevista ao portal Drauzio Varella, que as fezes de pombos podem transmitir doenças, como salmoneloses (intoxicação alimentar), psitacose (febre dos papagaios), histoplasmose (infecção fúngica) e a criptococose (infecção pulmonar), além de doenças alérgicas. “A principal doença transmitida por fezes de pombos é a criptococose, transmitida pela inalação de esporos do Cryptococcus neoformans, que se desenvolvem em fezes de pombos e de outras aves (psitacídeos ou periquitos e papagaios, andorinhas etc)”, diz o médico.
Cidades também abrigam guaxinins. Bastante comuns nos Estados Unidos e no Canadá, esses animais são conhecidos por sua capacidade de invadir lixeiras e encontrar abrigo em sótãos e garagens por conta de suas patas habilidosas, com as quais conseguem abrir tampas de lixeiras e acessar alimentos que outros bichos não conseguiriam.
Os coiotes também são bem-sucedidos em áreas urbanas. Originalmente habitantes de pradarias e florestas, esses animais têm grande capacidade de adaptação a uma ampla variedade de ambientes e dietas. São comuns em cidades dos Estados Unidos, onde caçam roedores e pequenos animais.
Dinâmica natural
Pierre-Olivier Cheptou, ecologista do Centro Nacional para Pesquisa Científica da França (CNRS), em entrevista ao portal da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), comenta que “existe uma dinâmica natural de espécies vegetais e animais para dominar esse novo ambiente pela adaptação, seja pela mudança de hábitos, seja pela evolução genética”. Ele cita a Crepis sancta, erva daninha que cresce em torno de árvores e ao longo de calçadas em cidades da região do Mar Mediterrâneo. A espécie fez grandes esforços para se adaptar a um novo ambiente. Em poucas gerações, essa erva daninha mudou sua estratégia de reprodução e priorizou a produção de sementes pesadas, que permitiriam a reprodução a curtas distâncias, em vez de sementes leves, que não seriam capazes de germinar no concreto.
Espinheiros, árvores frutíferas e gramíneas selvagens também podem se desenvolver em ruas e calçadas, de forma a criar uma continuidade da flora e conectar o campo com a cidade, com corredores de natureza, como os encontrados em parques lineares. Já fachadas de prédios e telhados podem ser cobertos por vegetação. Hortas urbanas também são locais em que espécies se perpetuam. Todos esses locais permitem o livre trânsito de animais e sementes. E comprovam que cidades são refúgio de biodiversidade.

As pessoas também se beneficiam da presença do verde dentro das cidades. A proximidade com a natureza não apenas contribui para um ambiente com ar mais limpo e para a redução das taxas de mortalidade e doenças cardiovasculares, mas também pode desempenhar um efeito de rejuvenescimento. Estudo publicado na revista Science Advances revelou que áreas com verde são capazes de retardar o envelhecimento biológico. Quem mora perto desses locais são, em média, 2,5 anos mais jovens biologicamente do que as pessoas que não têm esse privilégio.
Cidades são refúgio de biodiversidade quando há diversos olhares
Preservar espécies de plantas e de animais em cidades, contudo, é um desafio. A bióloga Silvana Prando Braga aponta para a necessidade de se olhar, antes, para a formação das pessoas. “Na escola a gente olhava para a natureza de forma excludente e se julgava como não pertencente. Como se o ser humano não pertencesse à natureza”.
Segundo ela, quando pesquisadores lidavam com problemas em uma espécie de planta ou animal, a solução era o isolamento: “retira todos os seres humanos que moram ali, vamos isolar essa espécie, ela precisa estar ali, “protegidinha” para poder resistir e ser preservada. Porém, de uns tempos para cá, tem se observado que muitos programas e projetos que adotavam essa visão – de que não somos pertencentes à natureza, com visão de exclusão e isolamento –, não deram certo. Não trouxeram bons resultados. Muito pelo contrário, programas levavam à diminuição da quantidade da espécie, do indivíduo de fauna ou flora”, destaca Silvana, que trabalhou com projetos socioambientais voltados à conservação de ecossistemas marinhos, em articulação com pesca artesanal e comunidades tradicionais. Atualmente, ela desenvolve ações em etnobotânica, agroecologia e economia popular e solidária com foco em saberes e fazeres tradicionais e no fortalecimento de quintais produtivos.
Para Silvana, é importante que, quando são debatidas soluções para que ambientes urbanos se tornem centros de preservação de espécies, e políticas públicas que garantam isso, seja considerada a complexidade toda que existe dentro da cidade e das relações lá encontradas. “Não basta olhar para isso com o olhar da bióloga: tenho que também convidar para essa discussão o arquiteto que faz planejamento urbano, o agente de saúde, o educador, o pedagogo, o cientista social”, avalia a bióloga, que acrescenta que o sucesso para a elaboração de uma boa política pública, e para sua viabilização, vem de diversos olhares para o mesmo problema, o que reproduz o cenário real. “Sobrepor esses olhares faz a construção de um cenário real”.
E esses olhares, de acordo com Silvana, não acontecem de forma dissociada. “Eu só me preocupo com o ambiente em que eu moro, com uma espécie de uma planta ou com um animal que há 10 anos aparecia na minha janela e hoje não aparece mais, se eu valorizo aquilo. E essa valorização não é limitada à fala – ‘olha, aquela planta ou bichinho é importante´. Não. Eu consigo entender a complexidade e a importância de uma árvore quando eu vejo aquele local, e aí começo a valorizar, a lutar por ele. O processo todo de uma construção de política pública vem muito do reconhecimento da educação. São movimentos complexos que têm que acontecer com consciência, e não só pelos tomadores de decisão. É importante que quem mora, quem utiliza os recursos da cidade, perceba e brigue, chame a atenção para isso também”.
Ensina-me a conservar

Locais de conservação de fauna e flora em cidades, como parques e áreas verdes, têm papel fundamental na proteção da biodiversidade por servirem de habitat para espécies nativas, além de áreas de passagem e descanso para espécies migratórias.
Mesmo sendo o parque mais frequentado do Brasil em 2024, com 4,6 milhões de pessoas, o Parque Nacional da Tijuca, no Rio de Janeiro, é exemplo de grande instituição urbana que abriga e protege a natureza. Lá atua a ONG Refauna, que reintroduz espécies de animais em áreas de Mata Atlântica, como as cutias. No início dos anos 2000 elas haviam desaparecido do local. Nos anos seguintes, mais de 30 foram introduzidas pela ONG. Longe de predadores e de caçadores, elas multiplicaram-se e hoje, em sua quarta geração, exercem papel fundamental para a Mata Atlântica: o de dispersoras de sementes.
No início de 2024, a foi a vez dos macacos-bugios, que são um dos 25 primatas mais ameaçados do mundo. Sete deles foram reintroduzidos no Parque da Tijuca e agora compõem uma nova família, compartilhando o espaço com outro grupo, de oito bugios. Em 2015, a introdução de um primeiro casal marcou o término da extinção local da espécie, que não era vista nas florestas da região há mais de 200 anos. Os animais chegaram com o objetivo de ajudar a consolidar a presença dos bugios na região, graças à interação que devem estabelecer com o grupo já existente, o que pode resultar em aumento da população e da diversidade genética. Além disso, agora que estão soltos no parque, vão colaborar com a dispersão de sementes de árvores que só eles conseguem realizar, o que contribui diretamente para a conservação do ecossistema local.
No Tocantins, a Prefeitura de Palmas promove anualmente a Semana das Araras, com ações educativas e seminário sobre conservação da espécie. Integrando o calendário oficial do município, a Semana das Araras tem apoio de escolas e órgãos ambientais. A programação oferece palestras em escolas e universidades, blitz educativa e seminário sobre psitacídeos (família de aves que inclui espécies de papagaios, periquitos e araras), com foco na conscientização sobre a importância ecológica das araras-canindé, espécie símbolo do Tocantins, e na preservação da fauna silvestre em ambiente urbano.
Já no Paraná, o programa Paraná Mais Verde incentiva o plantio de mudas de espécies nativas do estado para conciliar desenvolvimentos ambiental, econômico e social, além de incentivar a população a plantar árvores em área urbana ou rural, em locais que precisam ser recuperados ou melhor arborizados. O projeto é dividido em seis linhas de ação: Revitaliza Viveiros, Viveiros Socioambientais, Incentivo a Espécies Ameaçadas de Extinção, Datas comemorativas, Parques Urbanos e Poliniza Paraná.
A adaptação de plantas e animais em cidades destaca a surpreendente resiliência da vida selvagem, mas, por outro lado, realça a importância da convivência harmoniosa entre humanos e natureza. Para isso, é essencial que o processo de urbanização seja acompanhado por políticas de conservação que protejam os habitats naturais e promovam a biodiversidade, acompanhadas por educação e conscientização, para ressignificar a percepção das pessoas ante a natureza, já que cada um – fauna, flora e seres humanos – é parte integrante de ecossistemas urbanos, com papel vital na manutenção do equilíbrio ecológico. Dessa forma, definitivamente, as cidades podem se consolidar como refúgio da biodiversidade.