Conceito chinês de civilização ecológica alia futuro verde e desenvolvimento econômico

Também conhecido como ecocivilização, plano visa enfrentar mudanças climáticas e preservar o meio ambiente.

Por Ana Cecília Panizza em 22 de fevereiro de 2024 6 minutos de leitura

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Por um lado, o processo de industrialização, modernização e urbanização da China vem melhorando os padrões de vida da população desde a década de 1980, culminando na segunda posição no ranking das maiores economias globais. Por outro, a conta é alta em termos ambientais: o país é também o que mais emite Gases do Efeito Estufa (GEE) em termos absolutos, além de outros impactos negativos, como poluição das águas, do ar e dos solos. A resposta para equilibrar a relação entre os fatores ecológicos, econômicos, sociais, políticos e culturais é o conceito de civilização ecológica.

O conceito consiste na visão de um futuro verde e no compromisso do país com o meio ambiente, permeando as políticas públicas chinesas – está previsto na constituição – e como um plano de ação, pois integra o plano de governo para o enfrentamento às mudanças climáticas, à perda de biodiversidade e para garantir a preservação dos oceanos e das cadeias de abastecimento. A meta é transformar a China em uma uma civilização ecológica, ou ecocivilização, até 2035 e em uma sociedade (ainda mais) moderna e próspera até 2050. 

Projetos sustentáveis já implementados apontam para essa trajetória. É o caso de Shenzhen, primeira metrópole do mundo a operar com frota de ônibus 100% movida a energia elétrica. Em apenas uma década, a cidade, que era menor e mais poluída que São Paulo, eletrificou sua frota de ônibus e táxis, o que melhorou a qualidade do ar, diminuiu o consumo de combustível e aliviou os efeitos das ilhas térmicas. A medida foi associada ao uso de bicicletas, sistema de mobilidade tradicional na China, embora o tamanho das cidades do país dificulte o uso como alternativa exclusiva. Por isso, ônibus ou metrô são complementares: os usuários vão até as estações com bicicletas, que geralmente são elétricas, ideais para deslocamentos maiores por atingirem velocidade maior e não cansarem o usuário. Outra medida que ganha adesão da população é o carro elétrico, devido à isenção de impostos e dos investimentos em novas tecnologias. O modelo de transporte de Shenzhen foi adotado pela capital, Pequim, e por Guangzhou, que ganhou o Prêmio de Transporte Sustentável e o Prêmio Lighthouse da Organização das Nações Unidas (ONU). 

Cidade movida a energia solar 

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Outra cidade sustentável chinesa é Dezhou, a primeira do mundo movida a energia solar. Localizada na província de Shandong, noroeste da China, ela tem 5 milhões de habitantes. Lá, 98% da energia consumida vêm da energia solar. E a indústria de energia solar é a maior e mais famosa da cidade.

Já o município de Xiamen se destaca por ter construído um parque industrial marinho aliando alta tecnologia com sustentabilidade – e é exemplo para o desenvolvimento sustentável da economia oceânica. Na cidade de Tianjin, uma fazenda solar revolucionou a indústria de energia renovável ao combinar a produção de eletricidade limpa com a criação de camarões e a produção de sal. A usina solar é capaz de abastecer 1,5 milhão de residências.

Em Pujiang, província do leste chinês, um projeto incorporou a natureza aos meandros do rio Puyangijiang, tornando o local exemplo de cidade-jardim, em que a implementação de espaços verdes em ambiente urbano busca reproduzir a dinâmica das florestas. Isso estimulou a volta das pessoas à região, as quais, ao mesmo tempo, ajudaram a despoluir as águas, incentivadas por uma campanha de restauração ecológica.

Leia também: Em vez de jardins na cidade, por que não uma cidade-jardim?

Civilização ecológica, guarda-chuva de ideias   

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Em artigo no Jornal da Unicamp, o economista Niklas Weins, professor no departamento de estudos internacionais da Xi’an Jiaotong-Liverpool University em Suzhou (China), afirma que as raízes filosóficas do conceito de civilização ecológica estão na fusão de pensamentos chineses e ocidentais. O termo foi cunhado pelo filósofo alemão Iring Fetscher, em 1978, e retomado por cientistas da União Soviética que discutiam os limites materiais do planeta Terra. Na China, o ex-vice ministro chinês do meio ambiente Pan Yue introduziu o conceito de civilização ecológica no âmbito das diretrizes do Partido Comunista. Mas foi no final do mandato do presidente Hu Jintao, em 2013, que o conceito apareceu pela primeira vez nos níveis mais altos de governo e se tornou um dos grandes lemas do presidente Xi Jinping, presidente atual. 

Desde seu primeiro discurso citando a civilização ecológica, no 17º Congresso do Partido Comunista, em 2007, Xi adota o conceito como pilar do desenvolvimento do país e o expandiu durante seu governo. Além de incorporá-lo na Constituição, o incluiu nos Planos Quinquenais, colocando a ecocivilização como modelo para um desenvolvimento de alta qualidade. O modelo inclui elementos políticos e culturais, mas há também motivações econômicas: a construção de uma civilização ecológica global requer uma rede de infraestrutura, comércio, integração financeira e tecnologia de energias renováveis. 

Nesse processo, a ecocivilização é um guarda-chuva de ideias sobre a sustentabilidade. “Tudo isso como parte de um esforço para unir o desenvolvimento econômico com a preservação ambiental e o uso sustentável dos recursos naturais. (…) A civilização ecológica nos apresenta um modelo, mesmo que imperfeito, de uma transformação ampla da ideia de organização das sociedades em torno do risco”, diz Weins.

Receita do sucesso 

“Mais que planificar sua economia, a China faz um planejamento ao longo dos anos e o coloca em prática. Com isso, consegue passar das conceituações e, de fato, aplicá-lo em seu modo de desenvolvimento econômico”, diz a arquiteta e urbanista Sarah Dapieve, sobre o segredo de sucesso da China na implantação do conceito de civilização ecológica. Sarah é sócia no escritório Miscelânea Arquitetura e integra a equipe curatorial do evento-dispositivo de pesquisa-exposição EXPO CHINA (resultante da parceria entre a Escola de Arquitetura e o Instituto Confúcio UFMG). 

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Sarah Dapieve (Foto: Divulgação)

Ela acrescenta que o sucesso decorre também do fato de o país “agregar aspectos políticos e culturais no planejamento, então não fica um planejamento universal e raso: a China tem conseguido fazer isso com aplicabilidade”.  

Guerra contra a poluição

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No artigo “Agenda 2030 e Ecocivilização chinesa na construção de um futuro sustentável”, de Sarah Dapieve e Natacha Silva Araújo Rena (professora doutora da UFMG), as autoras citam determinações da China para alcançar um desenvolvimento de alta qualidade por meio do conceito de civilização ecológica. Entre elas estão: 

  • “Guerra contra a Poluição” – que busca reduzir as emissões de gases de efeito estufa,  melhorar a  qualidade do ar,  da  água  e do solo,  e  promover uma economia circular e de baixo carbono; 
  • Implementar  reformas  estruturais  e  institucionais  para  apoiar  a  construção  da civilização  ecológica,  como  a  criação  do  Ministério  de  Recursos  Naturais  e  do Ministério   de   Ecologia   e   Meio   Ambiente,   o   estabelecimento   do   sistema financeiro verde e o fortalecimento do marco legal e da supervisão ambiental; 
  • Desenvolver  iniciativas  de  Civilização  Ecológica  em  diferentes  setores  e  níveis, como    a    revitalização    rural,    as    cidades    e    vilas    de    baixo    carbono e o desenvolvimento orientado pela inovação;
  • Contribuir    para    os    esforços    globais    de    desenvolvimento    sustentável, especialmente    no    enfrentamento    das    mudanças    climáticas,    perda de biodiversidade, saúde dos oceanos e cadeias de abastecimento verdes. 
  • Aumentar   a   cooperação   e   liderança   internacional   da   China   em   questões ambientais, buscando integrar seu modelo de ação, principalmente, a partir da Belt and Road Initiative (BRI) – Nova Rota da Seda. 

Modelo exportação

A China quer exportar a civilização ecológica para o mundo, disseminando o conceito e mostrando seu compromisso com as questões ambientais como forma de estimular a cooperação e a estabilidade da ordem internacional. Para os chineses, a transição verde como parte de uma civilização ecológica mais global pode ser entendida como alavanca para o crescimento econômico chinês e a influência reguladora por meio da padronização internacional. 

No caso do Brasil, Sarah acha possível o país se inspirar na ecocivilização, mas em um sentido mais amplo, sem aderir totalmente ao conceito, buscando um desenvolvimento sustentável com características locais, específicas e brasileiras. “Esse é o segredo da ecocivilização, e acho que é dessa forma que o Brasil pode se valer do conceito: um desenvolvimento sustentável aplicado à realidade do país”. 

Assim, na  construção  de  um  mundo  multipolar com  ascensão  da  China  como potência econômica, é preciso que cada país construa seus próprios modelos de desenvolvimento, que incorporem suas realidades e especificidades, construindo coletivamente uma nova visão e outros modelos possíveis para uma economia verde.