A consolidação dos primeiros padrões globais para edificações sustentáveis e resilientes, anunciada na COP30, marca menos um momento de ruptura e mais um ajuste de rota em um setor que há anos opera sem uma linguagem comum. O avanço, liderado pela iniciativa Buildings Breakthrough Initiative, apoiada pelo World Green Building Council (WGBC), e detalhado no relatório interino do World Green Building Council, não se limita a organizar princípios técnicos. Ele reconfigura a forma como governos, investidores e cidades compreenderão, daqui em diante, o que significa construir com baixas emissões e alta resiliência climática.
O movimento chama atenção menos pelo anúncio em si e mais pelo que ele sinaliza: uma tentativa de reduzir a fragmentação regulatória que historicamente dificultou a comparação entre países, a adoção de metas conjuntas e a construção de mercados mais previsíveis para tecnologias e materiais de baixo carbono. Ao mesmo tempo, a adesão inicial de seis países a um novo marco para compras públicas sustentáveis sugere que governos podem ter um papel mais decisivo na formação de demanda por edificações com menor impacto climático e maior resiliência.
Em um cenário em que edifícios respondem por uma parcela expressiva das emissões e da vulnerabilidade urbana, estimadas pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) entre 34% e 39% das emissões energéticas globais, considerando tanto operações, quanto materiais e construção, a padronização por si só não resolve os desafios de implementação, financiamento ou capacidade técnica. No entanto, ela inaugura uma etapa importante, na qual a transição para um ambiente construído mais resiliente passa a ser discutida com maior comparabilidade, transparência e potencial de coordenação entre países e atores do setor.
Os novos princípios globais: o que definem as Edificações Próximas de Zero Emissões e Resilientes (NZERBs)
O relatório interino apresentado na COP30 pela Buildings Breakthrough Initiative reúne pela primeira vez um conjunto de princípios globais para orientar a transição rumo às Edificações Próximas de Zero Emissões e Resilientes (NZERBs). O documento não opera como norma técnica ou certificação, mas como um arcabouço conceitual que busca alinhar governos, investidores e instituições em torno de critérios mínimos compartilhados. Esses princípios se estruturam em três dimensões – emissões, resiliência e vulnerabilidade; e detalham caminhos que podem apoiar políticas, regulamentações e compras públicas.
1. Eficiência energética e redução das emissões operacionais

O primeiro eixo do documento enfatiza a necessidade de atuar sobre as emissões operacionais, isto é, aquelas associadas ao uso cotidiano do edifício. A orientação é começar por medidas de eficiência energética: estratégias de design passivo adequadas ao clima, melhoria do desempenho do envoltório e adoção de equipamentos de alto rendimento. O relatório destaca que a redução dessas emissões deve ser maximizada antes da incorporação de outras camadas tecnológicas.
Esse eixo está diretamente ligado ao princípio de priorização livre de combustíveis fósseis, que sugere evitar, sempre que possível, o uso de fontes fósseis no local. Para isso, recomenda-se a integração de tecnologias que permitam interação com a rede elétrica e o uso de recursos renováveis disponíveis localmente. No caso dos sistemas de refrigeração, o documento orienta o uso de aparelhos de baixo potencial de aquecimento global (GWP), reduzindo a dependência de hidrofluorcarbonetos (HFCs).
2. Otimização do ciclo de vida e redução das emissões incorporadas
O segundo eixo aborda as emissões incorporadas, que abrangem todas as emissões associadas à produção de materiais, processos de construção, transporte, uso de água e gestão de resíduos ao longo do ciclo de vida da edificação. O relatório orienta que a redução dessas emissões seja considerada desde as etapas iniciais do projeto, incluindo:
- Emissões iniciais: seleção de materiais de baixo carbono, soluções circulares, foco em durabilidade e eficiência de recursos, além da adoção de práticas de construção enxuta.
- Renovação e prolongamento da vida útil: o documento reforça que intervenções de retrofit geralmente apresentam menor impacto climático do que a substituição por novas edificações, priorizando a conservação de estruturas existentes.
- Fim de vida: recomenda-se projetar edifícios para desmontagem, de modo a facilitar reutilização, recuperação de componentes e reciclagem eficiente.
Esse conjunto de medidas dialoga com o princípio da suficiência, entendido como a busca por otimizar o uso de recursos, inclusive a intensidade do uso do espaço. A suficiência aparece como um mecanismo transversal que ajuda a evitar o superdimensionamento e contribui para reduzir as emissões totais ao longo da vida útil do edifício.
3. Resiliência como dimensão multidimensional e contextual
A resiliência é tratada no documento apresentado na COP30 como um componente central, mas intrinsecamente multidimensional. Ela envolve desde a integridade estrutural até a capacidade de adaptação a novos regimes climáticos, proteção de ocupantes e continuidade operacional. O relatório ressalta que a resiliência é altamente dependente do contexto local, ou seja, do perfil de risco, geografia, infraestrutura e necessidades da comunidade que devem influenciar diretamente as estratégias a serem adotadas. Entre os princípios estabelecidos, destacam-se:
- Edificação resiliente ao clima: projetos devem partir de avaliações de risco e vulnerabilidade capazes de antecipar tanto ameaças naturais, quanto impactos advindos das mudanças climáticas.
- Avaliação e mitigação de riscos: as decisões de projeto e operação devem incorporar análises prospectivas que considerem não apenas riscos imediatos, mas também aqueles associados a cenários de médio e longo prazos, como secas, incêndios florestais e inundações.
- Medidas de resiliência: devem ser contempladas soluções que permitam ao edifício preparar-se, resistir, absorver e recuperar-se dos riscos identificados, mantendo níveis essenciais de funcionamento ao longo de sua vida útil.
Compras públicas como alavanca

O endosso de seis países – Colômbia, França, Finlândia, Gana, Japão e Quênia – ao Marco Global de Ação sobre Compras Públicas marca um ponto de inflexão importante. Se edifícios são responsáveis por uma parcela significativa das emissões globais e da demanda por materiais intensivos em carbono, governos, ao atuarem como grandes compradores, têm potencial para alterar toda a dinâmica de mercado.
“Os edifícios não são apenas parte do desafio climático, eles são uma das nossas soluções mais poderosas. Os 16 Planos de Ação Nacionais desenvolvidos por meio do Painel de Avaliação mostram como podemos ampliar políticas comprovadas para construir economias resilientes, comunidades saudáveis e um futuro com zero emissões de carbono”, disse Cristina Gamboa, CEO da WGBC em comunicado à imprensa.
O objetivo do movimento é criar critérios mínimos para que licitações e contratos públicos priorizem edificações de baixo carbono, eficiência energética elevada, estratégias de circularidade e desempenho climático verificável. Na prática, isso significa que construtoras, fabricantes e incorporadoras serão incentivadas a adaptar portfólios, tecnologias e cadeias de suprimento às novas exigências. Ao mesmo tempo, governos ganham instrumentos para reduzir a pegada ambiental de patrimônios públicos como escolas, hospitais e habitações sociais, segmentos que tendem a concentrar grande volume de contratação e impacto territorial.
Esse tipo de alinhamento cria um efeito cascata: quando o setor público estabelece padrões mais elevados, o setor privado tende a acompanhar. “Já vimos essa abordagem ter sucesso por meio de 12 roteiros nacionais desenvolvidos e implementados na Europa, no âmbito do nosso projeto BuildingLife, e em diversos outros países. Agora, estamos ampliando esse impacto globalmente. Ao alinhar, estabelecer parcerias e expandir, estamos unindo governos, indústria e agentes financeiros com os Conselhos de Construção Verde em todo o mundo para acelerar a ação climática no ambiente construído e gerar resultados reais e duradouros”, completa Gamboa.
Desafios e oportunidades da transição para edificações sustentáveis
A transição para edificações de baixo carbono e resilientes é, ao mesmo tempo, uma necessidade técnica e um desafio que se choca com fragilidades estruturais das cidades emergentes. As áreas urbanas do Sul Global concentram grande parte da exposição a riscos climáticos e de vulnerabilidade socioespacial, isto é, eventos extremos, ilhas de calor, enchentes e a presença de assentamentos informais ampliam tanto a probabilidade, quanto o impacto dos choques sobre populações de baixa renda.
Do ponto de vista técnico, evidências recentes reforçam que a conservação do estoque construído pode ser mais eficiente do que substituí-lo. Um estudo publicado no periódico Buildings and Cities demonstra que renovações profundas e retrofits apresentam emissões iniciais significativamente menores que a demolição e reconstrução, indicando que estratégias baseadas em prolongar e adaptar a vida útil dos edifícios são mais eficazes para acelerar reduções de GEE.
O desafio, contudo, não se limita à viabilidade técnica. Análises da Global Alliance for Buildings and Construction (GlobalABC) mostram que o investimento global necessário em eficiência energética e construção sustentável precisa praticamente dobrar nesta década para que o setor se alinhe às metas de 1,5 °C a 2 °C, o que significa alcançar algo na ordem de US$ 500 bilhões anuais até 2030. Esse descompasso entre ambição climática e capacidade de financiamento é especialmente crítico em países de média e baixa rendas.
Além disso, estudos recentes chamam atenção para impactos sociais não intencionais associados a intervenções ambientais. Pesquisas como Green Gentrification and Environmental Injustice: A Discussion Based on the New Pinheiros River Program, conduzida por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), mostram que projetos de requalificação e “enverdecimento” urbano podem gerar valorização imobiliária e deslocamento de moradores, fenômeno reconhecido como gentrificação verde. Esse padrão indica que políticas de eficiência energética e resiliência precisam ser integradas a instrumentos de proteção social e planejamento inclusivo, evitando que ganhos ambientais resultem em novas ondas de exclusão.
De modo geral, a consolidação dos primeiros padrões globais para edificações sustentáveis e resilientes, anunciada na COP30, estabelece uma linguagem comum para orientar políticas, investimentos e mercados de baixo carbono, mas não resolve sozinha os desafios de implementação, financiamento ou equidade urbana. Embora renovações e retrofits possam reduzir significativamente emissões, e compras públicas possam impulsionar demanda por construções mais verdes, a efetividade das medidas dependerá da capacidade de governos, setor privado e cidades transformarem princípios em ações concretas, integrando eficiência energética, resiliência climática e proteção social.