Uma solução, dois grandes problemas endereçados. Assim pode ser resumida a iniciativa de Caio Luizetto, fundador da Favila Casas Sustentáveis, que transforma resíduos de tubos de pasta de dente em casas para pessoas em situação de vulnerabilidade, construídas em apenas 24 horas! Em um formato de economia circular, os resíduos industriais que seriam descartados ganham um novo ciclo de vida ao serem transformados em insumos utilizados na construção de paredes e telhados. Em entrevista ao Habitability, Luizetto compartilha as inovações que definem seu trabalho, os desafios enfrentados pela Favila e, o mais importante, o impacto transformador que suas casas têm nas comunidades que atendem. Uma história que não se limita à construção civil, mas à possibilidade de devolver às pessoas um direito básico e, ao mesmo tempo, o despertar de um sonho: o de um lar.
O que o inspirou a criar a Favila Casas Sustentáveis e como surgiu a ideia de utilizar tubos de pasta de dentes reciclados na construção civil?


Caio Luizetto: Antes da marca Favilas existir, já estávamos desenvolvendo casas sustentáveis para pessoas em situação de vulnerabilidade, viabilizadas por meio de vaquinhas online. Ao longo do tempo, identificamos um número muito grande de pessoas morando na rua. Era uma problemática séria, agravada pela pandemia. Foi então que começamos a ouvir falar sobre materiais alternativos e um deles, que era produzido justamente na fábrica do meu sogro em São Carlos/SP, nos chamou atenção: placas e telhas feitas de tubos de pasta de dente reciclados. A produção principal era a de telhas para a construção civil, feitas a partir de materiais reciclados da indústria. Mas existiam também umas placas que não tinham destino, que não eram utilizadas para nada.
Foi aí que eu, junto com a minha esposa (Raquel Dandalo), começamos a estudar mais a fundo essas placas para entender suas propriedades, as possibilidades de uso e buscar mais tecnologia para desenvolvê-las. Percebemos que era um material sensacional, que poderia, inclusive, ser um dos elementos estruturais de uma casa.
Quais foram os principais desafios enfrentados no início do projeto e como você os superou?
Caio Luizetto: Quando você está desenvolvendo um produto que vai diretamente para o mercado, ele enfrenta um tipo de desafio, mas quando esse produto nasce dentro de um projeto social, tem uma vantagem, pois ele não enfrenta, de imediato, tantas barreiras impostas pelo mercado. Claro que, em algum momento, a gente acabou enfrentando isso também. Mas, a princípio, nossos maiores desafios foram outros, principalmente a questão de verba. Isso porque, há uma série de etapas que demandam investimentos, desde a parte de desenvolvimento, que envolve testes laboratoriais, análises mecânicas e a criação de protótipo.
Como os tubos de pasta de dentes são transformados em materiais que podem ser usados para construir essas casas? Quais etapas estão envolvidas nesse processo?
Caio Luizetto: Atualmente, nós trabalhamos com aparas da indústria. Ou seja, não são de pós-consumo. São resíduos industriais. Processamos esses materiais, que passam por etapas de micragens específicas, com trituração, separação e moagem. A partir disso, desenvolvemos o que chamamos de blend – uma composição que entendemos ser a mais adequada para garantir o melhor desempenho da placa. Criamos esse blend com os materiais moídos e, em seguida, aplicamos processos de prensagem térmica com uso de resinas. O processo, em si, é relativamente simples: moer, separar ou aglutinar e dar forma ao material. Claro que, dentro desse processo, existem microetapas, mas a lógica geral é essa.
Quais são as vantagens técnicas e ambientais de utilizar esse material em comparação aos métodos tradicionais para a construção de casas de alvenaria, por exemplo?

Caio Luizetto: É importante separar dois pontos: a placa como material e o sistema construtivo como um todo. A Favila não é apenas a placa, ela representa um sistema construtivo inovador patenteado, que possibilita uma construção rápida. Falando apenas da placa, ela oferece diversos benefícios que lhe permitem substituir tranquilamente outros produtos disponíveis no mercado. Um exemplo é sua capacidade isotérmica. Não se trata exatamente de um repelente térmico, mas é um material que oferece conforto térmico real.
Além disso, apresenta isolamento acústico, com atenuações sonoras de até 62%, dependendo da frequência da onda. E isso com uma placa de apenas 6 mm de espessura. Ela também é 100% impermeável, não propaga chamas, é extremamente resistente e possui uma memória curta: ao ser dobrada, tende a retornar ao formato original, o que facilita bastante o manuseio.
Quanto tempo demora para levantar uma casa com essa placa?
Caio Luizetto: Esses protótipos foram pensados, principalmente, para atender a demandas sociais, como a substituição de barracos por moradias sustentáveis. E estamos falando de lugares onde, muitas vezes, nem caminhão consegue chegar. As paredes são levadas por vielas estreitas, uma a uma. Mesmo assim, conseguimos erguer uma casa de 27 m² em apenas 24 horas, com todas as partes elétrica e hidráulica instaladas.
Como a construção dessas casas pela Favila afetou a qualidade de vida dos moradores da Favela dos Sonhos, em Ferraz de Vasconcelos, em São Paulo/SP?

Caio Luizetto: Ao longo do tempo, avaliamos cinco áreas principais: saúde, trabalho, sono, alimentação e segurança. O mais impressionante foi a velocidade com que essas mudanças aconteceram. E descobrimos algo que nem esperávamos: financeiramente, os moradores gastavam mais quando viviam em barracos. Sempre havia algo quebrando, uma tela, uma tábua, uma fiação… O custo da precariedade era alto. Com as novas casas, além de economizar, as pessoas passaram a dormir melhor, com melhorias significativas na qualidade do sono. Assim, passaram também a ter mais disposição para trabalhar e cuidar da saúde. As relações familiares foi outra questão que melhorou muito, porque antes todos dormiam juntos no mesmo cômodo. Agora, com ambientes separados, há mais privacidade e qualidade de vida.
É importante lembrar que estamos falando de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade. Por isso, eu costumo dizer que o que oferecemos é um start de dignidade. Dar a elas a chance de trabalhar, tomar um banho, lavar a roupa, se alimentar bem e dormir com segurança. Na minha visão e nas minhas métricas, isso representa o início de uma transformação real. Um avanço na qualidade de vida que pode, de fato, mover essa pessoa para outro patamar.
Vocês poderiam compartilhar alguma história marcante ou experiência significativa ao longo da trajetória do projeto, que tenha sido um divisor de águas ou que tenha impactado de forma profunda o trabalho e os resultados alcançados até aqui?
Caio Luizetto: Cerca de 40% das casas que entregamos nunca haviam tido um banheiro. Em algumas localidades, houve casos de pessoas que demoraram até três meses para conseguir usar o banheiro da casa, porque passaram anos habituadas a ir ao mato. Existe aí um processo de adequação, uma aprendizagem do que é morar, do que é habitar. Pessoas que nunca tinham usado uma janela, que nunca tiveram uma porta… Por isso que sempre reforço: não é só sobre a placa, no caso da Favila, é sobre a casa como um todo. Essa casa foi pensada como uma moradia transitória, um start de dignidade, e foi desenvolvida com base em três pontos de transição.
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Quais são esses três pontos?
Caio Luizetto: O primeiro é tirar a pessoa da extrema vulnerabilidade e levá-la para uma condição de vulnerabilidade, mas com o mínimo de dignidade. Esse é o primeiro passo. O segundo é a transição do próprio indivíduo, que precisa aprender a morar. É um processo educacional. Há pessoas que não sabem habitar um espaço, então é necessário respeitar esse tempo de aprendizado. Pensando nisso, desenvolvemos a casa com características específicas, que levam em conta as quebras e ajustes naturais do processo. Sabemos que haverá adaptações e a estrutura permite isso. O terceiro ponto é que todos os elementos da casa podem ser reaproveitados, caso a pessoa venha a construir uma casa de alvenaria no futuro. As placas podem virar divisórias de cômodos, as telhas podem ser reaproveitadas, o madeiramento, a fiação, as janelas que são de alumínio, as ferragens, tudo foi projetado para ser reutilizado. Quando você começa a medir o impacto disso na vida da pessoa, percebe que é um salto gigantesco. Mesmo que, numa visão macro, ainda estejamos lidando com um contexto de extrema vulnerabilidade, para quem vive isso, é uma transformação real.
Ao longo do desenvolvimento do projeto da placa, houve a necessidade de realizar adaptações significativas em relação à ideia original? Quais foram os principais ajustes feitos para chegar ao produto que vocês têm hoje?
Caio Luizetto: Já precisamos adaptar o sistema construtivo como um todo. Por exemplo: no início, nós fazíamos o piso das casas com um tipo específico de madeira, porque percebemos que grande parte do público que atendíamos eram pessoas acumuladoras. Passamos, então, a usar uma madeira que, embora mais vulnerável à água, apresentava maior resistência estrutural do que outras opções impermeáveis. Para compensar, aplicávamos produtos que ajudavam na impermeabilização do piso.
Depois, em uma segunda fase do projeto, percebemos que precisávamos mudar esse piso. O problema não era apenas o acúmulo de objetos, mas também o alto tráfego de pessoas em espaços muito pequenos. Teve um caso, por exemplo, de uma casa com 13 m² onde viviam seis crianças. Então, ao longo do tempo, fizemos várias adaptações. Fechamos espaços e reforçamos pontos estratégicos da casa, especialmente onde havia gargalos de uso e resistência.
Quantas casas a Favila já fabricou?


Caio Luizetto: Já construímos cerca de 40 casas. Nosso foco ainda está em prototipar, testar e evoluir o projeto. Então, a lógica tem sido essa: construímos, coletamos dados, analisamos e fazemos ajustes. Nosso objetivo é industrializar o processo, mas, para isso, precisamos de um volume maior de dados e de diferentes contextos de uso. Não posso industrializar sem a certeza de como o sistema se comporta em várias circunstâncias.
Então, a Favila pretende expandir a atuação para outras comunidades e regiões?
Caio Luizetto: Nossa ideia é atingir grandes massas. O crescimento das favelas está absurdo, teve um aumento de 22%, então é urgente ter uma tecnologia que consiga, no mínimo, acompanhar esse ritmo de crescimento, que consiga competir com ele. Do jeito que está o projeto atualmente, não dá para atender a toda essa demanda. Por isso estamos criando uma linha de produção, industrializando o processo. Já temos até um manual, com tudo detalhado, ao ponto de podermos treinar equipes para montar a casa em qualquer lugar.
Como funciona o processo de contratação dos serviços da Favila? Quais são os tipos de organizações ou entidades que costumam buscar a colaboração de vocês para implementar transformações urbanas e sociais?
Caio Luizetto: É um tipo específico de modelo de negócio em que a atuação se dá de forma triangular. A não atua diretamente. Ela precisa ser contratada por uma ONG. Esse foi o caso do nosso envolvimento com a Gerando Falcões. A Gerando Falcões tem um termo de parceria com a prefeitura, porque está fazendo uma intervenção urbana, e contrata a Favila. A Favila, por sua vez, não pode ser contratada diretamente pelo Estado, nem vende para o Estado ou iniciativas privadas.
Você mencionou que os governos e prefeituras não podem contratar diretamente a Favila, mas você acredita que projetos como o da Favila podem, de alguma forma, influenciar a criação ou adaptação de políticas públicas?
Caio Luizetto: Eu sonho com isso! Seria o ideal. Mas existe uma distância muito grande entre sonhar e abrir os olhos para a realidade. O que eu percebo é que a construção no Brasil, de forma geral, e aqui nem estou falando só do governo, ainda é muito limitada. Nas próprias universidades de engenharia, o que se aprende é basicamente cimento. Você não vê um esforço real para estudar novas tecnologias, outras formas de construir que já são utilizadas em outros países, as patentes disponíveis no mercado. Falta esse olhar mais aberto. Então essa apatia por novas tecnologias não é apenas uma falha do governo, é algo estrutural da construção civil brasileira. O que acontece é que a formação de base das pessoas que estão no governo, e mesmo do setor como um todo, é voltada para esse modelo convencional, de cimento. Por isso é difícil ver iniciativas governamentais que busquem de fato alternativas.
Você acredita que é possível promover uma mudança significativa nesse setor? E, ao longo dos últimos anos, notou alguma evolução nesse sentido?
Caio Luizetto: Existe algum movimento nesse sentido, mas é muito pacato, muito lento e não consegue superar as barreiras, tanto as lógicas de funcionamento do governo, quanto as burocráticas. Até existem incentivos para materiais sustentáveis, mas a construção em si ainda enfrenta muitas barreiras. A formação do setor no Brasil continua sendo pautada pelo cimento. E isso afeta o governo, o mercado, tudo. Quando você apresenta um material ecológico, como uma placa feita de tubo de pasta de dente, por exemplo, a pessoa acha que está com lixo na mão.
A leitura que eu faço é que, no Brasil, tudo que vem do lixo pode até ser bonito, pode impressionar. Todo mundo pode achar maravilhoso o que você faz. Mas, no fim das contas, esse produto nunca vai ter valor real. A valorização de materiais reciclados é muito difícil. É um processo muito lento. Para você ter ideia, já fui procurado por várias prefeituras, mas quando o projeto chega na secretaria de habitação, ele trava e o processo não avança.
O que é necessário para transformar essa mentalidade no setor da construção?
Caio Luizetto: O problema é cultural. Dentro de uma secretaria de habitação, deveria haver um departamento de desenvolvimento e inovação. Quando falamos de inovação, às vezes não é só um produto. Muitas vezes, é uma mudança simples ou algo que você conecta. O que falta nessa relação de desenvolvimento, sustentabilidade e arquitetura, é uma mesa multidisciplinar, com múltiplos conhecimentos. Uma mesa que possa trabalhar junto para criar soluções. Análise de dados, soluções, respeito às métricas e evolução constante. Enquanto o governo não tiver uma iniciativa assim, vamos continuar enfrentando muitos obstáculos.
Que conselho você daria para empreendedores sociais que querem iniciar projetos sustentáveis e de impacto social no setor da construção?
Caio Luizetto: O primeiro ponto para avançar é confiar em si mesmo e seguir em frente. Se você não conseguir fazer isso, não vai avançar nem metade do caminho. O segundo ponto é construir uma mesa multidisciplinar, trazendo diversas pessoas com conhecimentos diferentes. Na minha equipe, falta um engenheiro, mas temos médicos, psicólogos e outros profissionais, porque acredito que a inovação verdadeira é aquela que faz sentido para o usuário final. A empatia e a experiência do usuário são, na minha visão, os melhores caminhos para avançar com inovação. O terceiro ponto é ser generalista, pois em algum momento tudo se conecta. A inovação muitas vezes exige estratégias indiretas. Por exemplo, ao criar um produto que não é aceito em determinado setor, você pode desenvolver algo diferente, ganhar mercado e, depois, adaptar esse produto para o setor desejado. Inovação requer foco, uma visão ampla e uma abordagem multidisciplinar. Embora existam barreiras, como lobbies e grupos fechados, sempre há outras formas de fazer seus produtos ganharem espaço no mercado.