A tecnologia blockchain existe há pelo menos oito anos e já é adotada no mercado imobiliário, trazendo avanços como o aumento da segurança nas transações, rastreabilidade de documentos, autenticação de contratos e até a tokenização de ativos. No entanto, no Brasil, ela ainda opera sem diretrizes formais. Esse cenário começou a mudar em 2023 quando o Conselho Federal de Corretores de Imóveis (Cofeci) lançou uma ferramenta que permite o registro de contratos e documentos usando blockchain – o Sistema de Governança e Registro (SGR) – e deve ganhar um novo impulso com a mais recente iniciativa da instituição: uma comissão especial para estudar o uso de blockchain no mercado imobiliário brasileiro. O movimento é visto como um passo essencial para que o Brasil acompanhe os avanços tecnológicos do setor e ofereça maior segurança jurídica a todas as partes envolvidas nas transações.
A Resolução Cofeci n.º 1.486/2024, publicada no Diário Oficial da União em 18 de dezembro de 2024, marca a primeira movimentação institucional estruturada com foco na regulamentação da tecnologia no setor. A proposta da comissão é construir as bases para um marco regulatório que torne os usos da tecnologia mais claros, padronizados e juridicamente seguros.
Embora a ausência de normas específicas não tenha impedido sua adoção em iniciativas pontuais, limitava sua expansão e a confiança de agentes do mercado. Com o respaldo regulatório, a expectativa é que a adesão a blockchain acelere, sobretudo em áreas como o registro de imóveis, digitalização de processos cartorários, registro de contratos e novas formas de investimento por meio da tokenização de propriedades. A medida também aproxima o Brasil de tendências internacionais: países como Estônia, Suécia e Emirados Árabes já avançam no uso de blockchain em registros públicos, com foco na redução de custos e no aumento da confiabilidade dos dados.
Segundo o advogado e contabilista Alcides Martinhago Junior, sócio da Martinhago Advocacia, escritório especializado em Direito Civil e Imobiliário, “embora blockchain ofereça transparência e imutabilidade, ainda carece de regulamentação formal, especialmente quanto ao reconhecimento jurídico de contratos inteligentes (smart contracts) e da tokenização de ativos imobiliários. Sem respaldo legal claro, essas soluções tecnológicas não substituem, por enquanto, os procedimentos tradicionais de matrícula e registro de imóveis”.
Além disso, para ele, capacitação e conscientização são fundamentais para a adoção bem-sucedida de blockchain no mercado imobiliário. “É essencial envolver todas as partes interessadas – desde corretores e investidores até compradores e vendedores – e capacitá-las com o conhecimento necessário para navegar nesse novo paradigma. Além disso, a adoção de blockchain no registro de imóveis requer um quadro legal e regulamentar claro, que reconheça a validade das transações baseadas em blockchain e estabeleça diretrizes para sua implementação”, destaca.
O advogado acrescenta que, para que a regulamentação se torne realidade, é necessário um esforço coordenado entre o setor privado, o governo e os órgãos reguladores, mas – sobretudo – do Congresso Nacional. “É ele quem precisa criar leis específicas sobre o tema. Existem alguns projetos em tramitação, mas ainda sem previsão concreta para serem aprovados. Enquanto isso não acontece, o mais prudente é que as empresas do setor adotem boas práticas: contratos bem redigidos, supervisão humana sobre decisões automatizadas e respeito às normas já existentes — como a Lei de Registros Públicos, o Código de Defesa do Consumidor e o Marco Civil da Internet”, ressalta.
Blockchain, o que é e como funciona no mercado imobiliário?

Quem já comprou ou alugou um imóvel vivenciou a saga de ter que apresentar uma infinidade de documentos, comprovantes e garantias, além de enfrentar idas a banco e cartórios. O uso da tecnologia blockchain é o contraponto de tudo isso. Assim como o uso da IA, por meio dela é possível agregar produtividade, segurança e automação de contratos, facilitando a vida não somente dos clientes, mas também dos profissionais do setor.
A tecnologia consiste em um sistema de registro distribuído que permite armazenar dados de forma descentralizada, inviolável e transparente. Em vez de um único servidor, as informações ficam registradas em blocos interligados e criptografados, espalhados por diversos computadores da rede. Isso impede alterações posteriores e garante a autenticidade e integridade das transações — características que vêm se mostrando altamente vantajosas em processos como registros de imóveis, contratos e negociações imobiliárias.
A segurança de garantir registros imutáveis e à prova de fraudes é um dos destaques do uso da tecnologia. Além de dar transparência aos procedimentos, ela permite que todas as transações sejam verificadas em tempo real. Já a descentralização e a imutabilidade oferecidas pelo sistema melhoram o processo de registro de propriedades no Brasil, tão burocrático, moroso e sujeito a erros.
Outra vantagem de blockchain no mercado imobiliário é a viabilização de contratos digitais inteligentes (smart contracts), que levam à automação total de processos contratuais, eliminando intermediários.
Ao automatizar etapas de transações imobiliárias, assinatura do contrato e liberação de pagamentos com mais eficiência e economia de tempo, a tecnologia ainda é capaz de reduzir significativamente os custos operacionais, desafiando o modelo tradicional dominado pelos cartórios e ampliando o acesso das pessoas ao mercado imobiliário.
Com blockchain no mercado imobiliário, corretores têm acesso a um sistema robusto para registrar operações, o que facilita a fiscalização e reduz a burocracia. Cada imóvel tem sua própria identidade digital de forma segura e transparente, com todas as informações relevantes: histórico de propriedade, encargos e restrições.
Histórico de blockchain no mercado imobiliário

O primeiro uso de blockchain no setor foi realizado em 2017. Dois anos depois, a startup Growth Tech realizou a primeira escritura de compra e venda de imóvel registrada por meio da tecnologia no Brasil, além de conduzir a primeira incorporação imobiliária com blockchain.
Porém, foi só em 2023, com o SGR, destinado a otimizar e fortalecer as transações imobiliárias no País, que o uso da tecnologia ganhou maior respaldo. Desenvolvido para otimizar e fortalecer as transações imobiliárias, o SGR é uma plataforma digital que conecta cartórios de registro de imóveis, notários, advogados e corretores de forma integrada, oferecendo funcionalidades como consulta e validação de contratos, emissão de cópias autenticadas e monitoramento de registros em tempo real. Ainda que o uso do sistema não seja obrigatório, ele permite que procedimentos digitais tenham o mesmo valor legal dos presenciais — o que representa um avanço significativo em termos de segurança jurídica e agilidade.
Caminho do meio
Em entrevista exclusiva para o Habitability, Andreas Blazoudakis, CEO da netspaces, afirmou que blockchain no mercado imobiliário, além dos Non Fungible Tokens (NFTs), tem a capacidade de criar o “caminho do meio” para o setor. Ele analisou que o mercado coloca o consumidor em uma bifurcação: ou ele compra, ou vive de aluguel a vida inteira. “Para quem não tem dinheiro à vista, os dois são ruins. Ou você assume uma dívida de décadas e paga dois apartamentos, ou apenas paga aluguel e não mora em um lugar que é seu. Antes falava-se que ninguém iria mais comprar casa, mas as pessoas ainda querem ter casa própria. O meio do caminho que a tecnologia blockchain traz é criar essa equação onde o usuário pode comprar uma porcentagem do imóvel, pode vender essa parte, pode diminuir o valor do aluguel…Primeiramente, precisa do acesso para ter algo, depois flexibilidade para mudar essa coisa. Hoje não tem nem acesso, nem flexibilidade”, disse Blazoudakis
Mundo cripto

O avanço de blockchain também impacta outras inovações. É o caso das stablecoins ou criptoativos. É impossível falar deles sem passar pelo blockchain, já que essa é a base estrutural que possibilita o funcionamento dessas moedas digitais.
Como o próprio nome sugere, as stablecoins são criptomoedas com valor estável, lastreadas em ativos como moedas fiduciárias (real, dólar, euro), commodities (como ouro ou petróleo) ou até mesmo outras criptos. Mas o que garante essa estabilidade e confiabilidade em um ambiente digital? A resposta está em blockchain — a mesma tecnologia que vem transformando o registro e a negociação de imóveis no Brasil.
Como um sistema de registro descentralizado, inviolável e auditável, ela permite registrar transações de qualquer tipo. No caso das stablecoins, cada unidade emitida é registrada em blockchain, garantindo transparência, rastreabilidade e segurança. Toda transação feita com esses ativos digitais fica gravada em tempo real em uma rede pública ou privada, o que evita fraudes, facilita auditorias e dá confiabilidade às operações.
No mercado imobiliário, isso tem impacto direto: ao aceitar pagamentos em stablecoins ou criptomoedas como Bitcoin (BTC) e Ethereum (ETH), construtoras e imobiliárias contam com a infraestrutura de blockchain para verificar e registrar os pagamentos, reduzindo custos com intermediários financeiros, ganhando agilidade nas transações internacionais e atraindo um público mais digitalizado.
A adesão crescente ao pagamento em cripto também reflete essa mudança. De acordo com estudo da fintech Stilt, 94% dos usuários de criptomoedas pertencem às gerações Millennial e Z — justamente as que lideram a aquisição da primeira casa própria. Para esse público, usar ativos digitais já faz parte do cotidiano financeiro, o que pressiona o mercado imobiliário a se atualizar.
O advogado Martinhago Junior alerta, contudo, para a necessidade do cumprimento das formalidades legais, como a lavratura da escritura pública, o registro da transação no Cartório de Registro de Imóveis, o pagamento do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e, se aplicável, a apuração e recolhimento do ganho de capital. Só assim, explica ele, a transferência de propriedade imobiliária tem validade e eficácia jurídicas. “Não há vedação legal expressa quanto ao uso de criptoativos como forma de pagamento, desde que o valor seja corretamente declarado em moeda nacional e todas as obrigações fiscais e registrais sejam observadas”, comenta o advogado.
Tanto o uso de blockchain em contratos e registros de imóveis, quanto a adoção de criptomoedas como meio de pagamento fazem parte do mesmo movimento de digitalização e desintermediação do setor. São tecnologias que se conversam e se fortalecem mutuamente — criando um ecossistema mais ágil, transparente e compatível com os hábitos das novas gerações. Elas já fazem parte do presente e dos rumos para o futuro, mas é o desenvolvimento de um quadro regulatório claro e a colaboração entre os setores público e privado que darão um novo impulso ancorado em segurança.