A desigualdade de gênero é uma realidade no uso das cidades, afetando de forma marcante a experiência e o cotidiano de homens e mulheres no ambiente urbano. Uma das medidas cruciais para assegurar espaços mais inclusivos e igualitários é a iluminação pública. Infelizmente, um elemento frequentemente negligenciado.
Quando bem planejada e implementada, ela pode ter um impacto significativo na segurança e no bem-estar dos moradores da cidade. Isso significa levar em consideração que as mulheres, em particular, enfrentam riscos adicionais nas ruas mal iluminadas ou pouco seguras, o que pode limitar sua mobilidade e restringir sua presença nos espaços públicos.
Segundo o Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), aproximadamente 90% dos casos de estupro reportados à polícia em 2011 tinham mulheres como vítimas. Enquanto que os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostram que cerca de 48,7% dos casos de estupro são cometidos por desconhecidos, geralmente em vias públicas. Esse contexto de violência e vulnerabilidade pode ter impacto significativo na percepção das mulheres sobre a cidade e na sua relação com ela.
De acordo com uma pesquisa da ActionAid realizada em 2016, 86% das mulheres entrevistadas afirmaram já ter sofrido assédio ou violência nos espaços públicos, sendo que 57% relataram ter recebido comentários de teor sexual e 8% foram vítimas de estupro em público.
Iluminação pública reflete desigualdades social e de gênero
A insegurança e medo, que marcam a visão das mulheres sobre as cidades, se devem em grande parte, à forma como os espaços urbanos foram historicamente construídos. É o que destaca a geógrafa colombiana Anna Ortiz. Segundo ela, o planejamento urbano desconsidera as experiências e necessidades específicas do gênero feminino, resultando em espaços urbanos feitos sob uma perspectiva masculinizada e embranquecida, sem levar em consideração a pluralidade de corpos e existências que os habitam.
Como resultado, as mulheres, sobretudo da parcela social e economicamente menos favorecida, muitas vezes moldam seus trajetos de acordo com o sentimento de insegurança ao caminhar por ruas mal iluminadas. Isto é, o medo afeta diretamente seu direito de ir e vir, influenciando as rotas e horários.

A parada de ônibus é um exemplo. Segundo o estudo “Meu Ponto Seguro”, 77% das mulheres se sentem particularmente vulneráveis nesse local, devido ao isolamento, à falta de movimento no entorno, ao tempo de espera pelo ônibus e, especialmente, à ausência de iluminação. Isso acontece porque a iluminação pública costuma ser direcionada para facilitar o tráfego de veículos nas ruas e avenidas, reforçando um modelo urbano que prioriza o transporte motorizado no lugar do pedestre.
Pesquisas em Kampala, Uganda, também mostram essa relação entre iluminação pública e a sensação de (in)segurança entre as mulheres. Enquanto apenas 8% das ruas pavimentadas eram iluminadas, 79% das mulheres se sentiam inseguras caminhando pela cidade.
É por razões como essas que investir em infraestrutura urbana, como a melhoria da iluminação, é essencial para criar espaços mais seguros e inclusivos para as mulheres, especialmente, em países emergentes, como mostra o relatório Safe Cities and Safe Public Spaces. Iniciativas em Nova Delhi, Índia, e Port Moresby, Papua Nova Guiné, comprovam que melhorias na iluminação pública aumentaram a sensação de segurança e reduziram a violência contra as mulheres.
E se as ruas iluminadas são mais seguras para as mulheres, o são também para os demais grupos sociais vulneráveis, como idosos, pessoas com deficiência, imigrantes e pessoas de baixa renda, pois a luz está relacionada à capacidade de vigilância pessoal – a habilidade de ver e ser visto por outras pessoas.
Integração da iluminação pública nas políticas de segurança

A Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD), em parceria com o CoM SSA, desenvolveu um guia para ajudar os municípios da África Subsaariana a implementar sistemas de iluminação pública sensíveis ao gênero, que levem em consideração as necessidades específicas das mulheres e contem com sua participação ao longo do processo de desenvolvimento de projetos e políticas públicas.
O guia apresenta uma lista detalhada de ações que devem ser tomadas em cada fase do projeto de iluminação pública, desde o planejamento inicial até a avaliação contínua do sistema implementado. As medidas incluem treinamento de equipes especializadas e a busca de financiamento, consulta pública para a escolha de tecnologias financeira e ambientalmente viáveis, definições legais, compra, instalação e teste de equipamentos, e monitoramento constante da operação após a implementação.
Os estudos mencionados pelo guia apontam diversos benefícios na implementação de sistemas de iluminação pública sensíveis ao gênero, como a melhoria nas eficiências energética, econômica e ambiental. A utilização de tecnologias avançadas, como os LEDs, além de proporcionar uma iluminação mais adequada, também reduz o consumo e os custos públicos com energia elétrica. Além disso, essa abordagem pode diminuir a violência de gênero, aumentar a segurança e a harmonia nos bairros, melhorando a relação entre a sociedade e o poder público.
Trabalhar em conjunto, portanto, é fundamental. Se as cidades são feitas pelas pessoas, elas certamente serão feitas para as pessoas… todas elas. É a parceria entre organizações dos setores público e privado, bem como de grupos da sociedade civil na elaboração e planejamento de projetos urbanos, que criarão cidades mais inclusivas, seguras e equitativas não só para mulheres, mas também para elas e demais grupos vulneráveis. A reelaboração dos sistemas de iluminação pública é um importante passo nessa trajetória, mas não o único.
Veja também o episódio 16 do podcast Habitability: