Ir e vir, direito básico do ser humano, desafio complexo de mobilidade das cidades

Em entrevista, mestre em Engenharia de Transportes Eva Vider fala sobre os caminhos para garantir o direito constitucional de ir e vir.

Por Nathalia Ribeiro em 12 de março de 2024 7 minutos de leitura

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Eva Vider (Foto: Divulgação)

A qualidade do transporte público e a mobilidade urbana são temas relevantes quando se considera o impacto direto que exercem sobre a saúde e a qualidade de vida dos cidadãos. Mas, como destaca a a Engenheira Civil e mestre em Engenharia de Transportes pela COPPE/UFRJ Eva Vider, em entrevista ao Habilitability, as limitações do sistema também estão diretamente relacionadas a um dos direitos constituições básicos: o de ir e vir!

Afinal, enfatiza ela, o direito de ir e vir está intimamente ligado à capacidade das pessoas de se deslocarem livremente para atender às suas necessidades diárias, como trabalho, educação, saúde e lazer. Um sistema de transporte público acessível, eficiente e abrangente garante que esse direito seja respeitado e exercido por todos os membros da comunidade. ‘’Tanto é que no Brasil foi criada a Lei Federal da Mobilidade Urbana (nº 12.587/2012), segundo a qual aos municípios com população acima de 20 mil habitantes devem elaborar e apresentar um Plano de Mobilidade Urbana, com a intenção de planejar o seu crescimento de forma ordenada’’, disse Eva, que tem experiência em Mobilidade, Transporte Urbano e Economia dos Transportes.

Se na lei esse é um direito básico, na prática ele é bem mais complexo e multifacetado, como mostra Eva, trazendo também insights sobre as possíveis rotas para transformar o panorama da mobilidade urbana, para todos.

Desafios da mobilidade nas cidades

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Na busca por garantir o direito de ir e vir de cada cidadão com conforto, segurança, economia e inclusão social, a definição da infraestrutura de transporte é o cerne do Plano de Mobilidade Urbana. ‘’Um plano de mobilidade urbana eficaz deve abordar não apenas os deslocamentos dentro das cidades, mas também os movimentos de e para áreas adjacentes. Caso contrário, os residentes dessas regiões continuarão a depender do transporte individual, aumentando os congestionamentos’’, disse Eva. 

Para que isso se dê de forma efetiva, é preciso uma abordagem coletiva e coordenada, com todos os municípios envolvidos assumindo a responsabilidade pela implementação de soluções de transporte integradas e eficazes. “Muitas vezes, esses deslocamentos provenientes de outras cidades para o município central em questão são ainda mais significativos do que os deslocamentos internos. Isso é particularmente evidente na cidade do Rio de Janeiro, onde a demanda por deslocamentos de Niterói, São Gonçalo, São João de Meriti, São João e Baixada Fluminense é gigantesca’’, observa. 

Em 2023, o Relatório Global sobre Transporte Público, realizado pela Moovit, empresa e aplicativo de mobilidade urbana, mostrou que o Rio de Janeiro é a quarta pior cidade do mundo em relação ao tempo que se gasta diariamente em transportes públicos. Conforme destacado no relatório, os cariocas levam, aproximadamente, 67 minutos para chegar ao destino. Outras duas cidades brasileiras ficam entre as 10 com maior tempo médio de viagem: Recife (64 minutos) e São Paulo (62 minutos).

O impacto substancial que deslocamentos de longa distância exercem sobre os congestionamentos urbanos é outra faceta do problema. Nesse quesito, Brasília lidera o ranking, tendo 39% das viagens com distâncias superiores a 12 km.

Para Eva, é fundamental que os responsáveis pela elaboração e implementação do plano de mobilidade das grandes cidades que enfrentam esse cenário estejam conscientes dessa realidade e incorporem medidas para lidar com esses fluxos de deslocamento internos e intermunicipais.

Integração, institucionalização e monitoramento

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Mas, como fazê-lo de maneira eficaz? Para ela, a resposta está na sustentabilidade e na transversalidade: o plano de mobilidade deve estar coordenado com todos os planos diretores da cidade, como o de desenvolvimento urbano, transporte, saúde e educação. ‘’A integração desses diversos planos de desenvolvimento é fundamental para garantir uma abordagem abrangente e coesa na elaboração do plano de mobilidade urbana’’, disse ela.

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‘’Com o plano pronto é preciso institucionalizá-lo de forma a garantir sua permanência ao longo do tempo, independentemente das mudanças de governo. Um plano de mobilidade urbana não é apenas um projeto de governo, mas sim, um plano abrangente para a cidade, cuja implementação e revisão podem se estender por décadas, enquanto os governos mudam a cada quatro anos. Portanto, o desafio é institucionalizar esses planos para alcançar objetivos a curto, médio e longo prazos, além do desafio de recursos financeiros para implementar essas ações e projetos’’, pontua. 

Eva ainda pontua que o monitoramento é essencial para uma revisão contínua dos resultados e das necessidades adicionais que surgem em decorrência do crescimento das cidades. Idealmente, essa revisão deve ocorrer a cada cinco anos, garantindo que os planos e projetos continuem atendendo às demandas em evolução. ‘’É um grande desafio manter essa revisão constante, pois as dinâmicas de desenvolvimento humano e os sistemas de transporte implantados estão em constante mudança ao longo do tempo. Contudo, é fundamental monitorar e verificar regularmente se os planos estão alinhados com as necessidades emergentes e se ajustar conforme necessário para garantir sua eficácia contínua’’, completa ela.

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Indicadores de qualidade ajudam na melhoria do transporte

De acordo com Eva, os indicadores para o monitoramento da qualidade em sistemas de transporte público já existem, fornecendo dados sobre o desempenho do sistema, permitindo a identificação de áreas que precisam de melhorias e até o coeficiente de aproveitamento, que determina se a oferta de transporte é adequada à demanda de passageiros. “No numerador, temos a demanda de passageiros, enquanto no denominador, temos a oferta de lugares disponíveis. Se o resultado for maior que 1, isso indica que o número de passageiros transportados é maior do que a capacidade oferecida, indicando uma saturação do sistema de transporte. Isso pode resultar em ônibus lotados, avarias nos veículos, calor e desconforto para os passageiros’’, explica a engenheira.

A qualidade em cada modal de transporte passa por questões matemáticas básicas, como a capacidade máxima de passageiros. Um ônibus tem 52 lugares sentados e 40 em pé, totalizando 90 lugares. Quando esse limite é ultrapassado, o modal se torna saturado, comprometendo a segurança e o conforto dos passageiros. ‘’Nesse momento, é necessário considerar a mudança para um ônibus maior ou outro modo de transporte’’, indica ela.

Outro indicador de qualidade é o dimensionamento do sistema de transporte, que ajuda a determinar a quantidade adequada de veículos e recursos necessários para atender à demanda de forma eficaz. Atualmente, tem se usado seis passageiros por metro quadrado no dimensionamento, sem, no entanto, levar em consideração as particularidades de cada modal. “Essa métrica é mais adequada, por exemplo, em relação ao metrô, que opera sobre trilhos, com velocidade constante e menos oscilações. Já os ônibus enfrentam condições variadas de tráfego, com paradas frequentes e diferentes tipos de vias. As viagens, portanto, tendem a ser não só mais demoradas, como menos confortáveis”.

Para ela, o sucesso ou fracasso dos projetos de infraestrutura de transporte público está intrinsecamente ligado à habilidade de enfrentar e superar os desafios que se apresentam de forma direcionada, tendo um planejamento cuidadoso e vontade política como elementos-chave, que podem determinar a capacidade das cidades em alcançar seus objetivos de mobilidade urbana.

Repensando a mobilidade urbana

De acordo com uma pesquisa realizada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) sobre a mobilidade urbana e o uso dos meios de transporte no Brasil, 43% dos residentes nas principais áreas urbanas do País avaliam o transporte público como ruim ou péssimo. Essa insatisfação é mais evidente entre os moradores das regiões Norte e Centro-Oeste, com 55%, e do Nordeste, com 46%. Em contrapartida, a percepção negativa sobre o transporte público é menos comum nas regiões Sudeste, com 44%, e Sul, com 18%.

Em consonância com esse cenário, uma pesquisa também conduzida pela CNI revelou que os brasileiros têm preferido utilizar serviços de carros por aplicativo em detrimento dos serviços públicos de transporte. Segundo o estudo, 64% dos entrevistados avaliaram os serviços oferecidos pelos aplicativos de transporte como bons ou ótimos. O metrô vem logo atrás com 58% de boas avaliações. Em termos de custo-benefício, o transporte privado se destaca para muitos. O levantamento abrangeu 2.019 indivíduos economicamente ativos, com idade igual ou superior a 16 anos, residentes em cidades brasileiras com mais de 250 mil habitantes.

Nesse contexto, o que poderia motivar as pessoas a deixarem seus carros na garagem e reduzirem o uso de aplicativos de transporte? Segundo outro estudo conduzido pela CNI, a redução do preço da tarifa seria um incentivo, assim como a diminuição do tempo de espera e o aumento da segurança.

Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

O passe livre pleno, que abrange todo o sistema de transporte público durante todos os dias da semana, já adotado por 84 cidades brasileiras, ou mesmo a chamada tarifa zero aos finais de semana, vão ao encontro desses anseios. ‘’Esses são exemplos de boas práticas que desafiaram paradigmas centenários e exploraram modelos alternativos de transporte e desenvolvimento urbano. Claro que cada localidade possui suas peculiaridades e necessidades, muitas cidades que adotaram a tarifa zero plena, por exemplo, são de pequeno porte, embora São Paulo, uma metrópole gigantesca que já tem o passe livre aos domingos, esteja sondando uma possível implementação do modelo’’, disse ela.

Em sua análise, além do objetivo primário, que é “o aumento do uso do transporte público, as iniciativas têm resultado na revitalização dos centros urbanos”. “Além disso”, acrescenta, “o equilíbrio econômico-financeiro tem se mantido satisfatório, principalmente devido aos benefícios indiretos proporcionados por tais medidas devido ao aumento de gastos com lazer e visitação turística’’. ‘’De todo modo, uma boa infraestrutura de transporte urbano é garantia de saúde, melhor aproveitamento do tempo e a preservação do direito de ir e vir. É, portanto, uma responsabilidade das autoridades municipais garantir que isso seja feito de maneira adequada”, finaliza.