Iniciativas Brasil afora defendem o andar a pé como um ato político e de transformação da nossa relação com a cidade e as pessoas.
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Paula Maria Prado em 16 de fevereiro de 2024 6minutos de leitura
Pé ante pé, andamos. Os olhos se perdem na confusão cinza, marrom, vermelha e, eventualmente, verde nas ruas. Lojas abertas/fechadas, casas, aqui era um bar e ali tinha uma banca de revista. Um homem vem ao longe. A sensação é que se sua fisionomia for focada, será possível definir sua idade, ocupação e afiliações políticas. E, então, ele passa e se mistura à multidão. Na via que mal se sabe o nome, o volume de carros é grande. O chão chega a vibrar com um ônibus que passa lotado. Sol e calor. Batidas, vozes, sons eletrônicos, freadas, buzinas… a trilha sonora faz tudo parecer caótico, mas, a verdade é que está tudo no seu devido lugar. Ou melhor, no lugar de sempre. Embora cada um faça parte do cenário, nem sempre as pessoas estão atentos a ele. É aí que a mobilidade a pé faz a diferença!
Caminhar faz bem ao corpo, à mente… e à cidade. Para além da poética presente no vento batendo no rosto, seguir a pé é um ato político. Ocupar as ruas e se apropriar de espaços públicos são atos importantes para a vida comunitária. É por meio dessa apropriação que se aprende a criticar serviços prestados, agir, lutar por direitos e curtir a cidade, além de garantir que todos tenham acesso a espaços de convivência melhores. Contudo, primeiro, é preciso conhecer o entorno. Nada melhor do que fazer isso a pé.
Essa é a defesa do Apē – Estudos em Mobilidade, grupo paulistano que se empenha em construir coletivamente conhecimentos sobre mobilidade urbana, cidade e educação. Fundado em 2012, a associação sem fins lucrativos surgiu do encontro de estudantes universitários, em sua maioria da Universidade de São Paulo (USP). Na ocasião, o intuito era debater o uso e a apropriação da cidade, bem como suas formas de vida.
“Na época, alguns alunos notaram que a discussão sobre mobilidade urbana na grade curricular dos cursos que frequentavam estavam muito atreladas às questões técnicas de trânsito, pautadas pelo urbanismo tradicional. E já estávamos vivendo uma nova discussão sobre mobilidade urbana, uso e apropriação da cidade. Então, nos unimos para estudar”, conta Julia Anversa, arquiteta, urbanista e educadora da associação desde a sua fundação.
Outro incentivo para o surgimento do grupo foi a Lei Federal da Mobilidade Urbana (nº 12.587/2012), destinada aos municípios com população acima de 20 mil habitantes. A partir daquele momento, tais cidades deveriam elaborar e apresentar um plano de mobilidade urbana, com a intenção de planejar o seu crescimento de forma ordenada.
Essa lei suscitou na comunidade acadêmica novas maneiras de pensar em modos não motorizados de deslocamento, transportes coletivos e acessibilidade. “Passamos a estudar o plano e textos, em sua maioria estrangeiros, sobre mobilidade a pé e de bicicleta e como isso poderia ser promovido nos grandes centros”, completa a educadora. Além de Júlia, fazem parte do grupo as arquitetas e educadoras María Fernanda Arias Godoy, Marieta Colucci, Tayná Messinetti e mais outras 15 pessoas de profissões diversas.
A defesa pela caminhada começa com o entendimento de que modos lentos de transportes transformam a nossa relação com a paisagem e com as pessoas, além de serem mais seguros (com menos acidentes e mortes) e menos poluentes. Andar a pé é ainda a forma mais democrática de deslocamento. Mas, claro, há seus desafios.
“Uma coisa é você morar no centro, trabalhar no centro e incentivarmos que seu deslocamento seja feito de forma ativa, até por questão de saúde. Outra é você morar na periferia, distante do seu local de trabalho. Assim, a defesa dos modos ativos e da caminhada pelo território compreende uma reestruturação da lógica urbana. Não adianta continuar fazendo bairros dormitórios a longas distâncias e achar que a mobilidade será resolvida com o incentivo para que as pessoas andem a pé”, alerta Julia.
Foto: Divulgação/ Apé – Estudos de Mobilidade
Assim, para chegar a raiz do problema, é preciso que a sociedade dialogue não só mobilidade e urbanismo, bem como outros temas diversos: desigualdade, direito à cidade, questões de gênero e etárias. Por isso, a educação está no centro da atuação do Apē – Estudos em Mobilidade. Discussões internas logo viraram encontros abertos ao público. A associação promove ainda hoje formações de professores, intervenções, consultorias, palestras com autores dos textos lidos, participa de congressos e, junto de outros atores, passou a desenvolver boletins técnicos. Entre os temas já discutidos, passe livre, linhas de ônibus e metrô 24 horas.
Andar a pé é um bom começo
Foto: Alberto Oliveira/ Apé – Estudos de Mobilidade/ Divulgação
Nas escolas, o foco são as crianças. Considerando a cidade como um território de aprendizagem, o Apē – Estudos em Mobilidade propõe a apropriação e ocupação de ruas e demais espaços públicos para a compreensão e transformação das realidades. “Falamos muito sobre a educação integral (não de tempo integral), que entende o jovem como parte da comunidade. Ele só consegue se relacionar com ela andando a pé. Então, montamos grupos e caminhamos em torno das instituições. É uma forma dele ser impactado de forma multissensorial pela cidade”, explica Julia.
A arquiteta ainda destaca que há movimentos em que pessoas se juntam para defender, por exemplo, espaços públicos no seu bairro, “mas, tudo começa quando você é impactado pela realidade ao seu redor. Andar a pé é um bom começo”.
Por meio do projeto “Exploradores da Rua”, as educadoras levam crianças para conhecer, aprender e explorar o ambiente urbano. Ao fim do percurso, são incentivadas a desenhar o que melhoraria no trajeto.
E, além disso, um grupo de crianças andando na rua, segundo a educadora, causa efeito imediato na comunidade. “As pessoas se desacostumaram de vê-las na rua. Ainda mais em uma cidade que não foi feita por/para crianças. Ao mesmo tempo, há uma nostalgia dessa liberdade que perdemos nos confinando. Impactadas por esses grupos de crianças andando pela cidade, as pessoas se tornam mais preocupadas, cuidadosas e gentis”, conta.
Com base em pesquisa realizada em 2017 pela Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), estima-se que 40% dos brasileiros se deslocam a pé. E, se incluídos os 28% que se deslocam em transporte coletivo, que permite trecho a pé no início ou no final da jornada, os deslocamentos a pé chegam a 68% do total. Ou seja, em torno de 130 milhões de pedestres se movimentam pelas ruas brasileiras todos os dias.
No entanto, ainda assim, veículos motorizados individuais predominam nas vias, chegando, em algumas cidades, a ocupar mais de 80% do sistema viário circulando ou mesmo estacionado.
Defender uma cidade mais amigável para pedestres é o foco de coletivos como o Apē – Estudos em Mobilidade, que, aliás, não está sozinho nessa luta. Diversos outros grupos defendem a caminhada por meio de mobilização, pesquisas, educação e comunicação. Entre eles, o Caminha Rio, no Rio de Janeiro, que realiza ações com foco em uma cidade mais amigável para pedestres, com forte atuação junto ao poder público; o Cidade a Pé, em São Paulo; o Carona a Pé, com foco no deslocamento de crianças, promove a realização de caronas a pé para aquelas que vão às escolas; e a Caminhada Jane Jacobs Floripa, que realiza caminhadas pela capital catarinense com conversas sobre a história de locais visitados.
Foto: Antonio Figueiredo/ Apé – Estudos de Mobilidade/ Divulgação
O antigo coletivo SampaPé! foi um dos responsáveis por conseguir o projeto “Paulista Aberta”, que fecha a avenida Paulista, em São Paulo, todos os domingos, das 9h às 17h. E o movimento Olhe pelo Recife – Cidadania a Pé, mapeou os problemas na capital pernambucana relacionados ao deslocamento a pé na cidade, levando-os aos gestores.
A capital paulista conta ainda com o “São Paulo a Pé”, promovido pela SPTuris – empresa municipal de promoção turística e eventos. O projeto reúne roteiros curtos que, utilizando tecnologia Google Maps de geocodificação, podem ser personalizados, por exemplo, “Cultura na Avenida Paulista”, “Cultura Oriental na Liberdade”, “Rua Oscar Freire e arredores” etc.
Em comum, o desejo de uma cidade mais humana, que possa ser vista, sentida e vivida com segurança por meio da mobilidade a pé.
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