Morar Primeiro: casa é ferramenta contra desumanização

Moradias populares, voltadas para população vulnerável, transformam vidas, mostra a líder do Morar Primeiro, Simone Gatti

Por Redação em 22 de maio de 2023 5 minutos de leitura

simone gatti

A casa significa lar, acolhimento, pertencimento, segurança e família. A casa também pode simbolizar um novo começo, principalmente para aqueles que, um dia, já tiveram em situação de rua. Essa é a pedra principal do Morar Primeiro, do fundo FICA, viabilizar a habitação para os mais vulneráveis. No meio do cenário hostil da maior metrópole da América Latina, a iniciativa mostra que a humanidade é essencial para a cidade do futuro.  

“Se as políticas públicas e a sociedade civil não priorizarem a população mais vulnerabilizada, a gente nunca vai ter uma cidade inteligente de verdade”, diz a urbanista, presidente do Fundo FICA e do Fundo FUA, Simone Gatti.

O FICA faz parte da Associação pela Propriedade Comunitária, é um fundo imobiliário sem fins lucrativos, focado em oferecer habitações para população de baixa renda, através do aluguel social. Em parceria com a Paróquia São Miguel Arcanjo, gerida por Padre Júlio Lancelotti, o FICA criou o Morar Primeiro, projeto que está reformando imóveis para beneficiar 15 famílias que moravam embaixo de dois viadutos. 

E é o momento que ela lembra aquela informação que muitos tentam ignorar no dia a dia: São Paulo tem cerca de 60 mil pessoas na rua. “Estamos em um momento de miséria absoluta, são quase 60 mil pessoas que não têm onde dormir. Mulheres perdendo seus filhos, sem saber se vão acordar no dia seguinte”, fala Gatti. 

Locação social

“O modelo único de habitação social no Brasil, que é a propriedade privada, não chega nas camadas mais pobres da população”, afirma Simone. O fundo trouxe para o Brasil o conceito de locação social. Na prática, o FICA compra apartamentos e os aluga por preço justo e reduzido para famílias de baixíssima renda. 

Leia também: A arquitetura pode curar traumas?

Assim, o fundo consegue apoiar pessoas que não são contempladas pelo sistema financeiro e que estariam longe da fila do financiamento de habitação em bancos populares. Alguns dos imóveis do FICA são localizados na região central de São Paulo, outros estão próximos de áreas nobres do Tatuapé. Tudo para garantir que a população terá acesso a “uma habitação de qualidade em área com infraestrutura, podendo pagar por isso e sem ficarem vulneráveis à especulação imobiliária”. 

“A locação social garante a habitabilidade e a permanência da pessoa na habitação e ainda pode mantê-la na localização onde ela construiu seus laços sociais. Começamos a trabalhar no Centro de São Paulo justamente considerando o excesso de pessoas morando em situação precária nessa região”, comenta a urbanista. Além disso, comenta Simone, é uma forma de reduzir a ociosidade dos prédios na região central de São Paulo.

Morar Primeiro: casa é pedra fundamental

Para poder atuar com famílias em situações vulneráveis, o FICA conta com uma equipe multidisciplinar. Afinal, explica Simone, não se trata apenas da casa, mas de garantir que aquelas pessoas tenham “acesso à saúde, educação, emprego, a renda”. O passo seguinte para o FICA foi o de ampliar o escopo das habitações sociais e assim veio o Morar Primeiro.

Leia também: Nadia Somekh: “arquitetos são profissionais de saúde”

Focado no conceito de “housing first”, ou seja, que a casa é o ponto de partida para que a população em situação de rua consiga exercer direitos fundamentais, buscar objetivos pessoais e melhorar a qualidade de vida. “A resposta é tão rápida que nos surpreende”, comenta Simone.

Apartamento 1 (Foto: Reprodução/ Fundo FICA)

Apartamento 1 (Foto: Reprodução/ Fundo FICA)

Leia também: Nadia Somekh: “arquitetos são profissionais de saúde”

Simone lembra de um dos primeiros beneficiários do aluguel social que, hoje em dia, presta serviços de carreto e manutenção para o próprio Fica. A primeira família que entrou no imóvel do FICA, inclusive, já conseguiu elevar a sua renda a ponto de ter se mudado para uma nova casa, maior, fora do projeto, para se estabelecer.  

A urbanista conta que, em apenas três meses do Morar Primeiro, já é possível observar a diferença que a moradia traz para as famílias. “Já temos muitas mulheres empregadas, crianças com melhora na saúde. E mulheres que estão no processo de conseguir a guarda dos filhos de volta. É uma oportunidade”, comenta. Num primeiro momento, o projeto dá preferência para beneficiar famílias chefiadas por mulheres.

Atualmente, o Morar Primeiro conta com três imóveis, dois deles ainda estão em fase de reforma. São unidades entre 30 metros quadrados e 40 metros quadrados, com um quarto, banheiro e cozinha. Com lavanderias coletivas e espaços para as crianças brincarem. Os espaços são mobiliados, e redesenhados com foco na necessidade dos moradores. 

Autonomia (e cachorros)

E é aí que entra o diferencial da abordagem do Morar Primeiro: ela procura dar autonomia para os beneficiados. Nos imóveis do projeto, é liberado ter animais de estimação e não há proibição relativa a horários. Podem parecer detalhes pequenos,  mas Simone e a equipe perceberam que são pontos muito importantes mas não são atendidos pelos abrigos e moradias sociais hoje em dia.

“Existem alguns programas de abrigos e de moradia que o morador não pode entrar com cachorro, que não podem entrar depois das 10 da noite, não pode trazer visita. Então, não é uma casa, né?”, conta Simone. Para ela, essa abordagem acaba por afastar as pessoas em situação de rua das possibilidades de abrigo, já que não considera a individualidade deles.

“Por aqui, a casa é deles, eles têm liberdade, desde que esteja em um parâmetro socialmente aceitável. O outro indivíduo é um ser humano, que tem desejos, vontades e tem seus gostos”, fala Simone. O único ponto que a organização reforça são as regras de convívio em apartamentos, como fazer menos barulho. Algo comum de todos os condomínios por São Paulo.  

O projeto aprende com os beneficiários todos os dias. “Quando vimos a lista de cachorros das famílias, a gente percebeu que precisaria fazer um acordo com uma ONG de veterinários para cuidar dos animais. É uma forma de respeitar a identidade da pessoa. Não é só um lugar para ela ir dormir, mas para ela criar a vida dela”, fala.

Um dos maiores sonhos de Simone, além de expandir a quantidade de imóveis para atender mais e mais famílias, é que o projeto seja copiado. “Ao contrário de muitas outras iniciativas, nós queremos ser copiados. Queremos que outras iniciativas, públicas ou não, sejam criadas nos moldes do FICA e do Morar Primeiro”.