Um planeta mais quente, instável e hostil não ameaça apenas florestas, oceanos e cidades e também compromete diretamente o futuro de quem não chegou ao mundo. As mudanças climáticas, cada vez mais rápidas e intensas, já começaram a impactar a saúde materna e reprodutiva em diversas regiões do planeta, aumentando as chances de complicações na gravidez e até mesmo de perdas. Essa é uma das conclusões do novo relatório “10 Novos Insights em Ciência Climática”, criado por mais de 80 cientistas da The Earth League, provenientes de 45 países, e divulgado pela agência Bori.
Com base nas pesquisas mais recentes, o documento revela uma realidade alarmante: o aumento das temperaturas globais pode comprometer gerações inteiras, desestabilizar ecossistemas vitais, como a Amazônia e os oceanos, e provocar perdas econômicas trilionárias. Entre os destaques do material estão os efeitos sobre a saúde reprodutiva, a intensificação de eventos como o El Niño, o agravamento da vulnerabilidade de cidades e infraestruturas críticas e o alerta de que partes do planeta podem, em breve, ultrapassar os limites do habitável.
O relatório abrange uma gama de pesquisas climáticas e foi elaborado para subsidiar formuladores de políticas com o conhecimento mais recente disponível. Portanto, também aponta caminhos com soluções possíveis – desde que adotadas com urgência e justiça. Em entrevista para o Habitability, Mercedes Bustamante, professora da Universidade de Brasília e membro do conselho editorial da publicação, detalha os riscos reais da crise climática para a saúde humana, a resiliência da Amazônia e o futuro das próximas gerações, além de apontar caminhos possíveis para virar esse jogo. Confira!
O relatório afirma que partes do planeta podem se tornar inabitáveis. O que isso significa, na prática — especialmente de quem ainda vê a crise climática como algo distante?
Mercedes Bustamante: O relatório indica que, em algumas partes do planeta, as condições de clima já não são mais adequadas para seres humanos, por causa de limites fisiológicos de tolerância à temperatura (em associação com as mudanças de umidade relativa do ar). Isso implica em potenciais conflitos associados à mobilidade e migração de populações que já estão em situação de vulnerabilidade. Como observado em crises migratórias recentes, as consequências não se concentram somente nos locais onde ocorrem, mas podem ter consequências regionais e globais.
Segundo o relatório, a saúde materna e a reprodutiva estão ameaçadas por extremos climáticos. Como a crise está sendo vivida no corpo das mulheres e por que isso deveria ser uma prioridade nas políticas públicas?

Mercedes Bustamante: O relatório alerta que é preciso ter um cuidado e políticas específicas quanto aos impactos da mudança climática sobre mulheres e sobre a saúde reprodutiva e da primeira infância. Os sistemas de saúde pública e assistência social devem estar preparados para entender e atender essas especificidades para não agravar as consequências sobre grupos que já são mais sensíveis.
Equidade de gênero e justiça climática são apontadas como caminhos. O que essas estratégias significam na prática — e como podem proteger vidas?
Mercedes Bustamante: Isso significa entender que nem todos são e serão afetados da mesma forma e terão a mesma capacidade de resposta aos impactos. Por isso, políticas públicas precisam de um desenho que contemple quem mais precisa de suporte e que, ao mesmo tempo, elimine vulnerabilidades estruturais.
Há uma preocupação em relação a um colapso na Amazônia. Quais sinais apontam para esse ponto de virada e o que ainda pode ser feito para evitá-lo?

Mercedes Bustamante: Ainda não estamos em uma situação de colapso da Amazônia, mas há sinais de preocupação associados ao aumento da degradação florestal, incêndios mais frequentes e que estão afetando áreas maiores, além da menor capacidade de resposta dos ecossistemas aos distúrbios. Precisamos trabalhar para reverter esses fatores de degradação, avançar na restauração florestal e estimular atividades econômicas não predatórias na região.
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O relatório também destaca o papel dos saberes tradicionais e da diversidade biocultural da Amazônia na resiliência climática. Como esses conhecimentos se conectam com a ciência?
Mercedes Bustamante: Povos indígenas e comunidades tradicionais têm uma longa história de convivência e manejo dos sistemas naturais. O intercâmbio de conhecimentos pode abrir novas estratégias para a conservação e o manejo da natureza que contribuam para a mitigação de emissões de gases de efeito estufa e, ao mesmo tempo, contribuam para a adaptação aos impactos que já se fazem sentir.
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O aumento da temperatura dos oceanos pode intensificar eventos como o El Niño e gerar perdas trilionárias. Ainda assim, por que tantos líderes tratam a transição climática como um gasto e não como investimento?
Mercedes Bustamante: A questão financeira é um ponto chave da ação climática. Não basta alocar recursos para combater a mudança do clima, é preciso retirar recursos de atividades predatórias (por exemplo, subsídios a atividades poluentes). Metade do PIB global depende da natureza e de seus serviços ambientais. É contraproducente no presente, e será ainda mais no futuro, não investir em conservação e sustentabilidade.
O Brasil é peça-chave nesse cenário. Somos parte do problema, da solução ou de ambos?
Mercedes Bustamante: A COP30 no Brasil é uma oportunidade para o País consolidar sua agenda climática com ações efetivas para reduzir nossas emissões. O sucesso da COP, no entanto, dependerá do compromisso de muitos atores e presença forte de países que possam fazer a ação climática avançar apesar dos esforços em contrário da atual gestão federal estado-unidense.