“’Não se mexe no que está funcionando’ é a máxima da mediocridade”, diz Vanderley John

Segundo Vanderley John, para deixar de ser o “cemitério da inovação”, construção precisa trabalhar em consórcios.

Por Redação em 7 de março de 2022 8 minutos de leitura

Vanderley John

Mudanças climáticas, transformações na sociedade e velocidade da tecnologia não são mais “coisa do futuro”. Já são realidade. E, exatamente por serem realidade, pedem ação imediata do setor de construção. Mas, o que fazer para não deixar o segmento se tornar o “cemitério da inovação”? O professor da Escola Politécnica da USP e coordenador do Centro de Inovação na Construção Sustentável (CICS) da USP, Vanderley John, responde em entrevista exclusiva ao Habitability.

“No Brasil existe aquela máxima de que não se mexe no que está funcionando. Essa é a máxima da mediocridade. Sociedades que inovam trabalham se questionando”, disse John. Para o professor e pesquisador do centro Inova, o setor terá que repensar sua relação com o meio ambiente para continuar crescendo. Além disso, questões como aumento da produtividade e envelhecimento da população devem interferir na construção dos próximos anos. “Tem uma responsabilidade da liderança [das construtoras] pensar que estamos construindo para um futuro e que futuro é esse? É possível ganhar dinheiro fazendo a coisa certa”, acrescentou. Confira a seguir a entrevista na íntegra.

Professor, qual o maior desafio que você vê no setor de construção civil?

Vanderley John – Um desafio muito grande para o setor de construção é a questão das mudanças climáticas. Desde a maior frequência de eventos extremos que temos observado, além da necessidade de se ter construções de menor impacto ambiental. Os principais insumos do setor são cimento, aço, cerâmica, e todos eles produzidos em larga escala se tornam  grandes emissores de CO2. E o desafio é que não dá para resolver as mudanças climáticas sem mexer na nossa cadeia construtiva e na tecnologia. As medidas vão ser profundas. Se fala muito hoje em dia das construções e das cidades chegarem a se tornar “zero CO2” até 2030 ou 2050. Mas ninguém vai chegar em zero CO2 em 2050, se não começar a iniciar um processo de mudança substancial no curto prazo. A aprendizagem é longa para fabricantes, projetistas, construtores e até usuários. Precisamos experimentar focados no que é  crítico (impacto da mudança do clima), baseados em indicadores quantitativos, com metas ao longo do tempo, ancoradas em  benchmarks do mercado. Qual é o benchmark, qual é a tecnologia best in class de CO2 nos sistemas construtivos? Quantos quilos de CO2 são produzidos para construir 1m² de residencia? E para operar? Nós não temos esse benchmark. 

No Brasil, ainda se acha que a questão ambiental central é a destruição da Amazônia, que é, de fato, uma tragédia. Mas, se ela parar, teremos que continuar lidar com o problema ambiental da construção. O mercado, muitos acadêmicos e as autoridades acham é que greebuilding é uma coisa de prédio de luxo, afinal o certificado custa … é um diferencial de venda. Confundem sustentabilidade com certificado greenbuilding. Como não conseguem financiar os requisitos sofisticados destes selos, acreditam “não consigo fazer nada”. Tenho convicção de que sempre dá para fazer alguma coisa no orçamento atual, e muita coisa com pouco investimento adicional. Precisa ter vontade e conhecimento. A mudança precisa ser aprendida e desenvolvida também pelas empresas, porque não vai sair da universidade e cair direto nas empresas. É um longo aprendizado, serão necessarias metas agressivas. Precisamos começar já ou falharemos.

Até 2060, outro fenômeno deve mudar a sociedade brasileira, que é o envelhecimento médio da população. As expectativas do IBGE indicam que, até 2060, a população idosa deverá ser maior que a de jovens no Brasil. Quais são os impactos para a indústria?

Foto: velirina / Shutterstock.com

Vanderley John – Vocês estão certos. O  envelhecimento da população vai impactar bastante o setor da construção é, em algumas dimensões. A primeira é que, de maneira geral, o operário da construção civil é de baixa renda e não grandes perspectivas de progressões salariais. Esse profissional vai ficar cada vez mais escasso, a educação abre oportunidades e porque em 2030, 2035, a população economicamente ativa do Brasil começa a diminuir. Seremos um país pobre com uma população envelhecendo e decrescente. Em 2050, a população vai começar a diminuir em termos absolutos, isso já acontece em países como Japão e em partes da Europa. Mas são países com renda per capita alta, com poder de paridade de compra cinco vezes a nossa. A produtividade vai ser impactada. A economia pode crescer porque tem mais gente trabalhando com a mesma produtividade, ou cresce porque tem produtividade crescente com força de trabalho estagnada ou diminuindo. O Brasil é um país pobre porque, por muitas razões, tem uma baixa produtividade. A da construção é um quinto da produtividade da média da construção europeia. Nossa produtividade é baixa em diversas áreas, desde projeto até a execução. E isso não é algo que as empresas podem resolver sozinhas. A produtividade baixa é uma cultura, porque é ligada formas de operar, modelos de negocio, à base tecnológica da empresa e da cadeia de fornecimento. Nós temos que aumentar a produtividade porque vai faltar gente, e porque se não aumentarmos a produtividade, estamos condenando os Brasileiros a pobreza, já que a produtividade limita o salário. 

Ao contrario de muito discurso, a pobreza não é explicada pela  corrupção, mas  é fundamento é devido a um problema de de tecnologia, organização e cultura, que afetam a produtividade. E que fique claro, a produtividade não é culpa dos trabalhadores ou dos operários, pois é responsabilidade da elite incluindo os professores universitários. No Brasil todo mundo acha que os problemas são os outros. Esquecemos que nos somos os outros dos outros.

Quais são os outros impactos que a inversão da pirâmide etária brasileira trará para a estrutura da construção? Como a indústria terá que se adaptar?

Vanderley John – Questão do envelhecimento tem a segunda dimensão, que é a mudança de perfil dos usuários da nossa construção, e da necessidade de os edifícios mudarem. A gente concebe os edifícios como sendo coisa estática, pensando na família, e a construção segue um pouco da visão.

Um exemplo acredito que é que o Brasil é campeão mundial em banheiros per capita na renda média e alta..Ter vários banheiros é  conveniente e, aqui, significa status da casa ou do apartamento. As empregadas domesticas limpam.  Mas com a redução da população ativa, vão começar a faltar empregados domésticos, que foi algo que a Inglaterra passou em 1800 e pouco. É um problema clássico de país que está ficando rico. Mas e aí, o que pode acontecer com um casal de idosos, com problemas de mobilidade, numa casa de quatro quartos,  sem uma empregada? Como vai manter tudo isso? O que vai acontecer?  O mesmo raciocínio se aplica aos porteiros. Temos toda uma necessidade de repensar a sociedade. No caso das empresas, é se questionar mesmo se é necessário todos esses atributos para vender um empreendimento.

Existe um grande mito da construção que diz que o cliente que diz o que quer. Numa época aqui em São Paulo, todo mundo dizia que ninguém comprava apartamento sem que o prédio tivesse sauna. Fico pensando o que foi feito das saunas de predios residenciais no Itaim Bibi, Em um deles sei que foi transformada em depósitos de vassouras onde eram as saunas. Há cinco anos, era imprescindivel tal da garage band. E eu nunca conheci ninguém que tivesse um sonho de ter uma garage band em casa, mas o argumento de venda era esse. Recentemente, foi o espaço gourmet, que foi seguido de espaço de meditação. Conheço condomínios que tem dois tipos de espaço de meditação. E, bem, o cliente nunca pediu isso, são invenções. Na verdade, tem uma responsabilidade da liderança [das construtoras] pensar que estamos construindo para um futuro, que futuro é esse? É possível ganhar dinheiro fazendo a coisa certa. É uma escolha.

O outro ponto de pressão no setor é o uso da tecnologia. Qual a sua visão sobre o Big Data ou robótica na construção?

Vanderley John – Sou entusiasta das novas tecnologias.

Precisamos delas porque não é razoável fazer as mesmas coisas e esperar resultados diferentes. E no Brasil existe aquela máxima de não se mexe no que está funcionando. Essa é a máxima da mediocridade, se a gente ficasse com esse pensamento do “está funcionando, não mexe”, a gente ainda estaria nas cavernas. Sociedades que inovam trabalham se questionando.

A digitalização é uma área que tera enorme impacto certamente. As revoluções industriais mostraram que o que mudam as sociedades são as tecnologias que podem ser aplicadas em vários sistemas produtivos, que o pessoal chama na área de economia de tecnologias multipropósito. A robótica, inteligência artificial, Big Data, IoT [Internet das Coisas], são ferramentas multiproposito da industria 4.0. Elas se aplicam a todos os mercados e setores. A robótica ja está mais pesada em construção – robôs ficaram melhores e muito mais baratos. Conheço empresas que fazem placas de concreto que já trocaram parte de sua mão de obra para robôs e viram retornos financeiros e de qualidade impressionantes. E isto no Brasil. 

Mas, a verdade é que ainda não sabemos como estas tecnologias multipropósito vão se integrar  na construção.Ainda não existe o que chamamos de “design dominante”, que maximiza o resultado destas ferramentas.. A digitalização é uma questão estratégica, se liga com usuários, com a questão ambiental, se tiver melhor controle e medidas, consigo otimizar mais os processos. Todas elas implicam em inovação.

Como fazer essa inovação chegar à ponta final? E qual o papel da relação entre universidade e empresas nesse processo?

Vanderley John – O Harvey Bernstein, que foi presidente de uma fundação para promover inovação da  American Society for Civil Engineering dizia que a construção civil era o cemitério da inovação. A fundação que ele presidia foi fechada há uns 20 anos…. Somos um setor onde inovar, é muito complicado. Temos muita regulamentação. Poucas construtoras tem escala para fazer inovação. Então na construção a inovação tende a ser dominada pelo fornecedor de materiais, componentes e equipamentos, que não enxerga o processo e o produto como todo, não vê e não controla as inovações dos demais produtos.

A experiência internacional é de gerar inovação na construção, é muito conveniente trabalhar em consórcios, que diluiem o risco, fornece a visão geral, ao combinar esforços de várias empresas gera sinergias, e somando esforços surge densidade para influenciar o mercado. Nós somos 50% dos recursos naturais do planeta, metade do aço, 98% da cerâmica, 40% do plástico, 100% do cimento, metade da madeira. Nós somos gigantes, dependemos de fábricas, canais de distriubição, etc. e as margens da construção são pequenas. O que significa que, para ser viável, qualquer novidade precisa escalar. E inovação e escala são duas coisas que conversam pessimamente: inovação começa pequena.  Quando se trabalha em grupo, as coisas são melhores. Esse é um grande desafio. 

Inovação deep tech x inovação “para aplicativos”: onde o Brasil cresce e para onde ele deveria crescer quando falamos de inovação?

Vanderley John –  Mudar significa inovar tanto em modelos de negócio, quanto em formas de administrar, acho que nesse ponto estamos indo bem, temos muitas startups focada nessas duas áreas. Mas o maior desafio é inovar em deep tech. O impacto ambiental e a vida das pessoas são muito pouco afetados por modelo de negócio. Ela é afetada pelo prédio, pela parede, pelos sensores, pelas fábricas. E aí não estamos tão bem. E é o mais complicado, o mais difícil. Temos algumas empresas na área de construção modular,  que são importantes. Mas o impacto e o grau de novidade é ainda pequeno.  Sem inovação deeptech não tem sustentabilidade e não tem ganhos de produtividade.

Considerando todos os desafios que você trouxe, qual o ideal do habitar para 2050? 

Vanderley John – Quando a gente começa a fazer previsão, a gente vai errar. Mas precisamos fazer as previsões quase como faróis, para nos indicar para onde seguir. O futuro são construções leves, de alta produtividade e bastante adaptáveis, porque o mundo vai adaptar. Construções que tem a possibilidade de embarcar tecnologia para cuidar da saúde das pessoas, para melhorar o conforto e até para saber se as construções estão boas. Antes do cliente reclamar. Vejo que esse é o futuro da habitação.

E vejo um futuro onde teremos métricas setoriais, e metas, e benchmarks, quanto na questão ambiental, que para mim é a mais complicada. E aquela ideia do profissional engenheiro civil e arquiteto que ao se formar prometem “nunca mais estuda” e cumprem, para mim, não é possível. Isto não é possivel na maior parte do mundo – inclusive paises em desenvolviemnto – que exigem atualização permanente para manter os registros profissionais.  Ela se ancora navisão de que se aprende “na pratica”. So que a pratica funciona na construção tradicional, mas não vai funcionar numa inovação tecnológica permanente. Temos que, repensar a carreira profissional, garantindo a atualização permanente. Mas depende do CONFEA..  

Como chegaremos em tudo isso? Eu não faço a menor ideia, mas to achando que o futuro será interessante.