O lixo pode ser problema ou solução, depende do manejo, diz Saville Alves

Saville Alves, fundadora da startup Solos, conta como uma visão de negócios centrada na sustentabilidade e inclusão pode impactar o mundo.

Por Nathalia Ribeiro em 11 de junho de 2024 17 minutos de leitura

Saville Alves (Foto: Tayse Argôlo)

Saville Alves, a empreendedora baiana por trás da startup Solos, dedicada à promoção da economia circular, possui visão singular do que realmente importa no mundo dos negócios. Enquanto sua empresa recebe reconhecimento, sendo agraciada com o Prêmio Nacional da Inovação, e sua própria figura é destacada pela Forbes como uma das 20 mulheres mais inovadoras no cenário das AgTechs no Brasil, Saville mantém sua atenção firmemente voltada para um propósito que transcende troféus e manchetes: construir uma sociedade mais justa e equitativa por meio da sustentabilidade. 

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Desde os tempos escolares, onde já exibia um talento natural para liderança, até sua graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e seu envolvimento com o Movimento Empresa Júnior, uma incubadora de talentos, Saville sempre demonstrou uma visão fora do comum, buscando maneiras de influenciar positivamente sua comunidade.

Essa mentalidade empreendedora e socialmente consciente se reflete na missão da Solos. A startup não apenas desenvolve soluções para lidar com o pós-consumo de materiais, mas também colabora ativamente com outras empresas, autoridades públicas e cooperativas de reciclagem para reintegrar esses resíduos à cadeia produtiva, impulsionando assim a economia circular e promovendo a sustentabilidade de forma tangível. A empresária já liderou investimentos que ultrapassaram 15 milhões de reais, abrangendo uma ampla gama de iniciativas ESG em várias regiões do país. 

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Foto: Tayse Argôlo

A trajetória de Saville Alves é uma fusão de sua missão pessoal e profissional. Liderança, inovação e sustentabilidade são os pilares fundamentais que sustentam sua jornada em direção a um futuro onde os negócios não apenas prosperam, mas também deixam um impacto positivo no mundo. Em uma entrevista exclusiva ao Habitability, Saville compartilha como seu compromisso com a economia circular fortaleceu comunidades locais e oferece sua visão sobre como o gerenciamento adequado do lixo pode ser parte integrante de uma solução sustentável.

HABITABILITY: De onde surgiu seu interesse em fomentar a economia circular e como isso se tornou um ponto central em suas atividades?

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Saville Alves: Eu tenho refletido muito sobre minha jornada desde a infância, especialmente sobre a escolha que minha mãe fez ao me matricular em uma escola com método Montessoriano. Esse método, baseado na perspectiva da criança, proporcionou-me autonomia e segurança desde cedo. Além disso, a valorização da criação de sentido na educação formal foi crucial para minha formação. Aos 11 anos, tive minha primeira experiência institucionalizada de liderança ao ser eleita representante de turma, foi nesse momento que comecei a entender a responsabilidade de conciliar interesses e necessidades. 

Na faculdade, integrei a empresa Júnior, entrei como treinee, depois me tornei diretora e depois conselheira, o que me levou a compreender a importância do comprometimento com resultados e metodologias de trabalho. Quando eu entrei no mercado de trabalho, fiz parte de duas multinacionais, a primeira de comunicação e depois uma da indústria petroquímica, e nesta eu vivi momentos importantes de aprendizado. Trabalhar em uma empresa que fatura bilhões e movimenta muitos recursos me ensinou a compreender a dimensão dos negócios e sua interação com diversos atores. Na vice-presidência de Relações Institucionais e Desenvolvimento Sustentável, eu lidava diretamente com a interface das políticas públicas, o que me proporcionou uma visão clara de como essas políticas influenciam e são influenciadas pelo setor privado.

A cereja do bolo foi quando ingressei na ONG Teto, uma organização internacional que nasceu no Chile, mas marca presença no Brasil há muitos anos. Trabalhei diariamente em favelas e comunidades sem acesso a muitos direitos básicos, como saneamento, e pude ver de perto o problema dos resíduos. O impacto do lixo é muito claro nessas áreas, com suas consequências visíveis e perceptíveis pelo cheiro, mostrando a gravidade do manejo inadequado. Esse contato direto me despertou para a importância da gestão de resíduos. No começo, minha jornada foi voltada para o empreendedorismo e a liderança, e com o tempo, fui entendendo melhor onde queria dedicar meu tempo e aprendizado. Foi assim que comecei a me interessar pela questão dos resíduos.

HABITABILITY: Qual é a motivação por trás da decisão da Solos de manter sua base em Salvador, enquanto muitas outras empresas optam pelo eixo Rio-São Paulo para suas operações?

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Foto: Tayse Argôlo

Saville Alves: Eu sou de Salvador e, embora a Solos atue em todo o Brasil, meu compromisso com a cidade e sua história é muito forte. Por ser daqui, tenho uma visão particular sobre Salvador, e é a partir dessa perspectiva que trabalho. As desigualdades e a forma como elas se manifestam na cidade foram algo que aprendi a observar desde cedo. Salvador é uma cidade extremamente preta, e essa identidade se reflete não apenas na cor e nos traços das pessoas, mas também na religiosidade e na cultura. Essa influência está presente em todos nós, em maior ou menor grau, com diferentes níveis de consciência e intencionalidade. Esse ponto de partida molda minha visão de mundo e a forma como faço negócios. Essas experiências trazem um tempero especial para a Solos e para outros empreendimentos em que estou envolvida.

Apesar de termos ido para São Paulo para acelerar certos processos, decidimos que não queríamos nos estabelecer lá e sim retornar para Salvador, onde acreditamos que podemos criar uma base sólida. Atualmente, temos mais operações no Sudeste, e a maioria da minha equipe ainda é de Salvador, tanto os nascidos aqui quanto aqueles com um ponto de base aqui. Conseguimos gerenciar as coisas de várias maneiras, mas o que quero enfatizar é que não posso julgar uma pessoa ou uma empresa apenas porque ela nasceu em São Paulo. O fato de alguém ser originário de uma determinada cidade não a torna automaticamente nacional em sua abordagem e tomada de decisão. O local de origem não determina a capacidade de resolver problemas de forma ampla e relevante.

HABITABILITY: Qual foi a inspiração por trás da missão das Solos? Considerando todo o contexto histórico, como você identificou a oportunidade de fazer a diferença e contribuir de forma significativa?

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Saville Alves: Costumo dizer que o lixo pode ser um problema ou parte da solução, dependendo de como lidamos com ele. É um problema que afeta todos nós, embora cada um tenha suas respectivas responsabilidades. A escala do problema varia conforme o tamanho do negócio e a quantidade de resíduos gerados. O mercado de resíduos está em crescimento, com uma crescente discussão sobre resíduos recicláveis, embalagens e a economia circular. No entanto, o Brasil enfrenta alguns desafios críticos. Atualmente, somos o quarto maior gerador de lixo do mundo, atrás apenas da Índia, China e Estados Unidos, o que é compreensível devido às suas grandes populações. No entanto, outros países com territórios maiores geram menos resíduos que nós, o que ressalta a gravidade da situação aqui.

Do montante de resíduos que geramos, apenas cerca de 4% é reciclado, e a maior parte desse processo é realizada por catadores que enfrentam extrema vulnerabilidade. O trabalho dos catadores é árduo e eles estão nas ruas todos os dias, em todos os bairros e grandes cidades, visíveis para quem passa, mas muitas vezes não se reconhece a exploração por trás dessa cena. 65% das pessoas que catam são mulheres e é importante reconhecer que elas estão indiretamente fornecendo materiais para grandes empresas estrangeiras. Muitas das empresas que reciclam alumínio hoje, por exemplo, compram de pessoas que estão nas ruas, sem proteção adequada, enfrentando o tempo e até dormindo nas ruas. É uma situação surreal, uma institucionalização da exploração que é difícil de encarar.

HABITABILITY: Como a Solos busca garantir que as grandes empresas compreendam sua responsabilidade social diante dessa realidade?

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Saville Alves: Na Solos, trabalhamos com grandes empresas, todas elas de grande porte. Essas empresas são as principais impulsionadoras do sistema. Quando uma empresa lança um produto, ela tem o poder de transformar nossa vida e essas empresas têm o poder de criar produtos de qualidade e marcas que despertam interesse, moldando assim nossas preferências e comportamentos. Aqui, temos muita convicção sobre como podemos fazer com que essas grandes empresas entendam sua responsabilidade e se juntem a nós como parceiras. 

Nosso foco é construir e implementar soluções eficazes para ajudar aqueles que estão em situação de vulnerabilidade a alcançar mobilidade social. Acreditamos que a reciclagem de resíduos pode criar oportunidades sociais significativas, especialmente considerando a abundância de matéria-prima disponível. Os resíduos são amplamente concentrados nas cidades, onde reside a maior parte da população, e estamos comprometidos em abordar essa questão de forma eficiente. 

Nosso objetivo é garantir o correto descarte de resíduos e promover a inclusão social e produtiva das pessoas envolvidas, tanto os catadores mais vulneráveis quanto às cooperativas e associações já estabelecidas. Além de trabalhar em parceria com empresas, mantemos uma relação consistente com o poder público, especialmente os municípios, responsáveis pela gestão dos resíduos sólidos. Em geral, buscamos manter um diálogo constante com os gestores municipais para garantir a limpeza da cidade. Nosso grande sonho é tornar a reciclagem inclusiva em todo o Brasil, e para isso, atuamos em três frentes principais, focando especialmente nas áreas com maior concentração de resíduos.

HABITABILITY: Quais são essas frentes específicas de atuação?

Saville Alves: A primeira frente é focada na parte de conteúdo e experiências, então, direcionamos nossas trilhas de aprendizagem para que as pessoas se aproximem do conceito de Economia Circular de maneira mais acessível, utilizando estratégias de marketing digital e uma linguagem contemporânea. O intuito é evitar que isso pareça apenas um discurso ativista. Embora eu me identifique como ativista, reconheço que nem todos compartilham essa visão e compreendo que o ativismo não é a única solução para o problema. É mais um estilo de vida, uma mentalidade, e cada indivíduo tem suas próprias afinidades com o tema. O mundo enfrenta diversos desafios, e para resolvê-los, precisamos da participação de todos. Isso pode significar mudanças de comportamento e tomadas de decisão em diferentes níveis de poder. 

A segunda frente é a gestão de resíduos em grandes eventos. Hoje em dia, estamos especialmente focados nos eventos públicos com patrocínio privado, como os carnavais em São Paulo, Salvador, Recife e outros, além das festas de Réveillon, como o ano novo em Fortaleza, que reúne mais de 1 milhão de pessoas. Esses eventos são de proporções gigantescas e muitas vezes ocorrem em locais que não estão preparados para receber um grande número de pessoas e o volume de resíduos. Por isso, é necessário criar toda uma infraestrutura para adaptar a cidade, além de implementar métodos para inclusão dos catadores e cooperativas locais. 

O Réveillon de Fortaleza contou com  duas centrais de reciclagem montadas no Aterro da Praia de Iracema, do programa Re-ciclo (Foto: Marcos Moura/ Prefeitura de Fortaleza)

E a terceira frente se baseia na utilização de sistemas inteligentes de coleta, que envolvem tecnologia e análise de dados para otimizar o processo. Isso inclui a implementação de sistemas de coleta seletiva, bem como o desenvolvimento de plataformas digitais para que os cidadãos possam solicitar serviços de coleta focados em suas residências, condomínios ou estabelecimentos comerciais. A partir dessas informações, eles podem tomar decisões mais informadas e eficazes a respeito dos seus resíduos. Com validações como essas, podemos avançar na formulação de políticas públicas, buscando sempre progredir e melhorar.

HABITABILITY: A Solos já impactou cerca de dois milhões de pessoas e gerou mais de mil e quatrocentas toneladas de materiais reciclados. Quais são algumas das iniciativas mais impactantes que você liderou?

Saville Alves: Já conseguimos validar uma iniciativa em Fortaleza por meio de uma operação concreta. Hoje em dia, é um programa oficial da prefeitura, que inclusive anunciou sua expansão recentemente. Então, os catadores das cooperativas locais agora utilizam triciclos elétricos e equipamentos de proteção individual (EPIs) durante suas coletas. Essas coletas podem ser agendadas por meio de um aplicativo e são otimizadas por rotas inteligentes, graças à tecnologia. Além do valor obtido com a venda dos materiais recicláveis, os catadores também recebem uma quantia pelo serviço prestado. 

Re-ciclo, programa de coleta seletiva idealizado pela Prefeitura de Fortaleza e operado pela Solos (Foto: Reprodução/ Prefeitura de Fortaleza)

Iniciamos com apenas dois bairros e, gradualmente, expandimos nossa atuação, alcançando 12 bairros. Agora, estamos em processo de ampliação para 15 bairros. Essa expansão está levando o programa a uma escala que abrange todo o município, aumentando significativamente seu alcance e impacto.

Conseguimos validar e garantir a rastreabilidade, identificando e destacando os indicadores relevantes. Com os resultados devidamente comprovados, estamos agora em posição de buscar investimentos para ampliar a iniciativa. O êxito elimina a incerteza financeira que frequentemente dificulta a implementação de projetos piloto por parte do poder público.

HABITABILITY: Quais são os desafios nessa jornada de uma empresa voltada para a economia circular, considerando tanto a necessidade de soluções quanto o impacto financeiro e social de suas operações? 

Saville Alves: Existem muitos desafios, mas também é verdade que esses desafios geram um certo apetite por soluções. Não estou tentando romantizar a situação, mas sim destacar a importância de buscar maneiras de resolver esses problemas. Vejo que o cerne do problema está na essência do modelo de negócio ser centrado no impacto. No fim do dia, a mesma determinação que temos para gerar lucro é a mesma que impulsiona nosso desejo de transformar o mundo. Precisamos compreender que o dinheiro que geramos por meio de nossas operações é o veículo para o impacto desejado. 

Quanto mais sucesso financeiro alcançarmos, mais capacidade teremos de ampliar nossas operações, o que, por sua vez, resultará em um aumento significativo do impacto que podemos gerar. Isso significa que podemos reinvestir em operações mais robustas e relevantes, que efetivamente contribuem para a melhoria da qualidade de vida e promovem a sustentabilidade, através de práticas como a reciclagem. 

E tem uma questão social. Isso é algo muito sério e desde o início, nós tínhamos uma planilha chamada “Sonhos e Solos”, que é nossa Matriz de Estratégia. Ela começou com apenas cinco indicadores, mas hoje já temos mais de 30 indicadores que monitoramos para garantir que as coisas estejam alinhadas e que a melhoria em um aspecto signifique necessariamente a melhoria em outro. Eu vejo isso como um desafio empresarial, especialmente para uma startup no Brasil, tentando superar o “vale da morte” que ocorre após os dois primeiros anos. Já é difícil para qualquer modelo de negócio, e ainda mais para nós, que buscamos fazer tecnologia com impacto social. 

Para além das considerações sobre o modelo de negócio voltado para tecnologia e as questões territoriais associadas a estar distante do que é tradicionalmente considerado o grande centro de negócios, como São Paulo, existe também o paradigma do gênero. Como líder feminina, estou consciente das múltiplas camadas de desafios que enfrentamos. Realmente temos nos esforçado para ocupar esses espaços. Isso significa que precisamos desenvolver muitas estratégias, como aumentar nossa presença em eventos, fazer mais palestras, pois é necessário demonstrar autoridade no assunto. 

Precisamos nos inserir em diversos ambientes e realizar mais reuniões para conquistar vendas ou parcerias. E claro, existem os desafios relacionados ao gerenciamento do tempo. Todos esses aspectos fazem parte da dinâmica, especialmente quando falamos do mercado e dos clientes. Enfrentamos o desafio óbvio de mudar mentalidades, mas também não é apenas uma questão de sorte; é um reflexo da maturidade do mercado, que está cada vez mais proativo na busca por soluções e, inclusive, já compreende a importância disso.

HABITABILITY: A Solos tem uma forte ênfase nos princípios de ESG. Você poderia explicar como esses princípios são aplicados na operação diária da empresa?

Saville Alves: Nós temos uma grande variedade de parâmetros para considerar. Por exemplo, este ano estamos desenvolvendo um relatório de GRI (Global Reporting Initiative), visando adotar uma metodologia global para validar os parâmetros que utilizamos em nossas operações, abordando questões como segurança, risco, inclusão e impacto.

A questão de gênero é algo muito importante para mim, por exemplo. Tanto internamente quanto externamente na nossa operação, temos programas dedicados à inclusão e à permanência das mulheres. Atualmente, 100% das lideranças da SOLOS são mulheres, a maioria dos colaboradores também são mulheres. Além disso, em algumas operações todas as participantes são do sexo feminino. 

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Foto: Tayse Argôlo

É interessante notar que em nossas operações, de modo geral, mais de 60% dos colaboradores são mulheres. É verdade que na sociedade as mulheres acabam assumindo atividades mais detalhistas e minuciosas, refletindo habilidades muitas vezes associadas ao gênero feminino, como cuidado e atenção aos detalhes. Muitas vezes, as mulheres são vistas como mais aptas para atividades que não envolvem dirigir ou carregar peso, mas na nossa operação, a maioria das mulheres são responsáveis por pilotar os triciclos, coletando materiais pela cidade. No entanto, isso também nos coloca diante de outros problemas reais da sociedade, como questões de assédio, que infelizmente já enfrentamos.

HABITABILITY: Nesse caso, como as organizações podem estabelecer protocolos para lidar com situações de assédio enfrentadas por colaboradoras? 

Saville Alves: Então, houve uma situação em que uma das cooperadas sofreu assédio. Diante disso, surge a questão: como podemos acionar a secretaria de proteção à mulher para obter apoio? A denúncia é essencial, mas muitas vezes a cooperada se retrai e reluta em falar sobre o ocorrido, o que dificulta o processo. Quando você está distante dessa realidade, compreender a situação torna-se ainda mais desafiador. Por isso, desenvolvemos protocolos para lidar com essas situações e adquirimos algumas percepções importantes. 

Por exemplo, em algumas operações de triciclos, usamos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), como capacetes. No entanto, ele foi feito para quem tem cabelo liso escorrido. Na situação nossa, a cooperada trançou o cabelo e quando ela foi montar na bicicleta e colocar o capacete, descobrimos que não havia capacetes adequados para cabelos trançados. Após muita busca, encontramos apenas um fornecedor que fabricava capacetes para cabelos black. 

Essas são agressões sutis do dia a dia – não é alguém te insultando diretamente, mas sim o fato de que os instrumentos de trabalho não foram feitos pensando em você, no seu cabelo, no seu tamanho. Quando situações como essa acontecem, elas nos ensinam e se transformam em protocolos. Após o incidente com o capacete, desenvolvemos um protocolo específico para garantir que todas as mulheres em nossas operações tenham os equipamentos adequados. Da mesma forma, temos um protocolo para lidar com assédio contra mulheres.

HABITABILITY: Agora, falando sobre meio ambiente. Quais são as principais soluções que você enxerga para mitigar os impactos ambientais?

Saville Alves: Olha, recentemente participei de uma imersão no ecossistema de inovação em Belém, no Pará. Essa experiência foi muito reflexiva e inspiradora para mim. Belém, como muitas grandes cidades brasileiras, têm áreas de grande luxo e concentração de renda, mas a maior parte do território enfrenta pobreza e falta de acesso. Essa desigualdade é uma característica comum nas grandes cidades do Brasil.

O contato com a biodiversidade da Amazônia em Belém foi impressionante. Visitei uma cooperativa e vi uma planta de Tucumã que, apesar de ter dois anos, ainda era muito pequena. Isso me fez refletir sobre o tempo necessário para regenerar uma floresta, que pode levar décadas ou séculos. Não podemos trabalhar com a ideia de desmatar e replantar em outro lugar; é insustentável. Uma floresta dessa magnitude e com essas características requer muito mais tempo para se regenerar do que o tempo que levamos para destruí-la. Isso foi uma reflexão importante. Outra foi sobre como a economia circular pode contribuir para a preservação da Amazônia.

O Pará, desde 2020, ultrapassou Minas Gerais como o estado com maior atividade de extrativismo mineral no país. Isso significa que há muitas empresas operando lá e, ao mesmo tempo, ainda existe uma grande parte da floresta preservada devido à sua imensa extensão. Desmatar a floresta é um processo difícil e mesmo assim acontecendo. Com a crescente mineração, o Pará virou um grande celeiro. Parte da mineração é usada para fabricar embalagens, e se melhorarmos os índices de reciclagem dessas embalagens e dos eletroeletrônicos, que contêm muitos desses minérios, podemos contribuir para a proteção da floresta. A ideia é manter a floresta em pé, como eles dizem lá. Para isso, precisamos reciclar mais, reintroduzindo materiais e reduzindo a necessidade de extração de matéria-prima.

E o pior é que no ano passado, foi descoberta uma área de petróleo. A maior parte do plástico produzido no Brasil e no mundo vem do petróleo. Se começarmos a explorar essa área de petróleo, corremos o risco de destruir ainda mais a floresta. Portanto, a reciclagem é essencial para reduzir a dependência de novas matérias-primas e preservar o meio ambiente. 

HABITABILITY: Como podemos aumentar efetivamente os níveis de reciclagem de plásticos?

Foto: mali maeder/ Pexels

Saville Alves: Aumentar o nível de reciclagem de plásticos pode ser alcançado restringindo um pouco mais os tipos de plástico, pelo menos para as embalagens. O plástico é onipresente, sendo utilizado em saúde, alimentação, roupas, transporte e muito mais, e ele traz benefícios significativos. Por exemplo, a caixa da bateria dos carros costumava ser feita de metal, o que deixava o carro mais pesado e aumentava o consumo de gasolina. Hoje, a caixa é feita de plástico, o que torna o carro mais leve e eficiente no consumo de combustível. Até mesmo a lataria dos carros, agora feita de plástico, contribui para essa eficiência.

No entanto, o problema não é exatamente o plástico em si, mas a durabilidade e a aplicação desse material. As aplicações mais duradouras do plástico são menos problemáticas. O grande desafio está nas embalagens descartáveis, que têm uma vida útil extremamente curta. Por exemplo, uma garrafa de água mineral é consumida em questão de minutos, mas o plástico usado para produzi-la pode levar séculos para se decompor. Portanto, focar na reciclagem e na gestão desses plásticos de vida curta é crucial para mitigar seu impacto ambiental.

HABITABILITY: Quais são os principais obstáculos que impedem o Brasil de aumentar sua taxa de reciclagem e como podemos superá-los para promover uma cultura mais eficiente e sustentável de reciclagem no país?

Saville Alves: Eu defendo fortemente a ideia do descarte correto e da transformação de resíduos. Isso é o mínimo que deveríamos fazer no Brasil, mas infelizmente estamos muito atrás. Países como a África do Sul e o Chile, com economias semelhantes à nossa, reciclam 16%, enquanto nós reciclamos apenas 4%. A África do Sul, por exemplo, enfrentou muitas questões de desigualdade racial e social, e mesmo assim recicla quatro vezes mais que o Brasil. Não estamos falando de um país como a Alemanha, que recicla quase tudo e transforma resíduos em energia, com apenas 0,01% de lixo indo para aterros sanitários. Para o tamanho da produção deles, isso é praticamente nada.

Basicamente, em termos de políticas públicas, o que observamos é que países mais avançados possuem sistemas de coleta porta a porta para resíduos comuns e recicláveis. Todos os municípios, ou pelo menos os maiores produtores de resíduos, deveriam ter esses sistemas. Além disso, deveria existir uma taxa baseada no volume de resíduos gerado, onde os mais pobres seriam subsidiados, já que geralmente geram menos resíduos do que os mais ricos. Essa taxa seria proporcional à quantidade de resíduos produzidos.

Além disso, historicamente, no Brasil, as empresas que lidam com a coleta de resíduos sólidos têm operado há décadas. Se buscarmos no Google sobre quem realiza a reciclagem ou coleta de resíduos em cidades como Rio de Janeiro, Salvador, Recife e São Paulo, encontraremos empresas que têm décadas de experiência nesse campo. Isso cria um cenário de monopólio, com modelos de operação já estabelecidos e acordos pré-existentes, dificultando mudanças.

HABITABILITY: Quais mudanças deveriam ser feitas?

Saville Alves: Os editais de licitação para licenciamento dessas empresas são frequentemente restritivos e não oferecem espaço para empresas de diferentes portes ou com soluções alternativas. Por exemplo, muitos editais exigem um número específico de caminhões compactadores, o que inviabiliza a reciclagem, já que esse processo comprime todos os materiais em uma bola compacta, dificultando a separação. Esse tipo de licitação, portanto, não favorece a reciclagem. 

Outro problema é que as empresas responsáveis pela coleta muitas vezes também operam os aterros sanitários, o que cria um conflito de interesses. Deveria haver regulações para evitar essa situação. A lógica atual é que quanto mais resíduos eu coletar, mais eu ganho, especialmente se eu os direcionar para o meu próprio aterro. Isso ocorre porque recebo pagamento por tonelada de resíduos coletados e ainda mais se os deposito em meu próprio terreno. Essa estrutura prejudica a introdução de modelos inovadores, a expansão da reciclagem e a inclusão de cooperativas.

Entendo as complexidades de se envolver com múltiplas empresas quando se trabalha com o setor público. O governo tende a preferir a segurança da burocracia, buscando minimizar incertezas. Empresas menores e mais recentes trazem consigo um nível maior de incerteza, o que pode afetar sua capacidade de operar e atender às demandas. No entanto, é essencial explorar outras alternativas.

Mas uma questão que gosto de destacar é que o lixo é muito tangível, ao contrário das emissões de gases de efeito estufa. Quando usamos dispositivos eletrônicos ou ligamos o ar condicionado em casa, estamos gerando emissões, mas não podemos vê-las. Já o lixo é algo palpável. Sabemos exatamente o que se tornou lixo, como uma embalagem de um produto que compramos. Essa tangibilidade facilita a mudança de comportamento. Acredito que esse seja o primeiro passo. 

HABITABILITY: Como você vê o papel da economia circular no futuro do desenvolvimento sustentável?

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Saville Alves: Estamos avançando em direção a um novo pensamento sustentável, tanto para indivíduos quanto para empresas, e a economia circular desempenha um papel fundamental nessa abordagem. Ela está intimamente ligada ao consumo de bens e à indústria de bens de consumo. A economia circular nos aproxima do ciclo tangível e material dos recursos, começando pelo destino adequado dos produtos descartados.

Estamos começando a repensar o design das embalagens desde o início do processo de produção. Isso significa considerar como podemos reintegrar esses materiais ao ciclo de forma eficiente. Ao mesmo tempo, estamos fazendo mudanças mais lentas no design, identificando materiais que são difíceis de reciclar e substituindo-os por alternativas mais viáveis. Nessa jornada, a legislação é importante, muitas vezes moldando a política pública. O design enfrenta o desafio de ser pensado desde a fabricação até a regulamentação para que possa chegar ao mercado de forma segura e legítima.

No entanto, no meio do caminho, há todos nós que consumimos produtos. Nossas escolhas de consumo têm um impacto significativo, desde acumular mais resíduos em casa até decidir entre diferentes opções de embalagens. Claro, estamos falando de diferentes perfis de consumidores. Algumas pessoas têm mais opções e fazem escolhas conscientes, enquanto outras estão limitadas pelas circunstâncias.

Por que escolheríamos uma embalagem de Longa Vida para o creme de leite, que é difícil de reciclar e pode promover a proliferação de fungos e bactérias devido ao plástico interno, quando há alternativas mais sustentáveis disponíveis? Essas questões precisam ser abordadas na educação, seja dentro das escolas ou integradas ao nosso dia a dia. A economia circular tem um papel fundamental em nos colocar no centro dessas decisões, seja no momento da compra ou em nosso comportamento diário.

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