A escassez de energia elétrica é um problema estrutural na Zâmbia, que se agrava com as secas prolongadas, afetando a geração hidrelétrica, responsável por grande parte da matriz energética do país. Em regiões remotas, como a província de Luapula, essa instabilidade no fornecimento coloca em risco serviços essenciais, como o abastecimento de água e o tratamento de esgoto.
Mas uma transformação energética já está em curso. A Luapula Water Supply and Sanitation Company (LpWSC), responsável pelo abastecimento e saneamento nesta região distante, desenvolveu um projeto inovador que transforma resíduos em energia: a geração de eletricidade a partir do biogás.
Na estação de tratamento de águas residuais recém-inaugurada em Mansa, capital regional, o cenário tradicional ganha uma nova configuração. Em vez de depender exclusivamente da instável rede hidrelétrica nacional, a estação passou a produzir sua própria energia, capturando o metano gerado na decomposição do lodo de esgoto.
Um problema antigo, uma resposta inovadora
A iniciativa foi moldada a partir de um intercâmbio direto entre a LpWSC e seus parceiros alemães, liderados pela Stadtentwässerung Dresden, com o apoio da Fernwasserversorgung Elbaue Ostharz e da Zweckverband Wasser und Abwasser Vogtland. De um lado, a expertise técnica e a experiência acumulada na Europa, do outro, o conhecimento do território, a liderança operacional e uma meta clara de autossuficiência energética.
“Este projeto não se trata apenas de energia, trata-se de liderança diante da crise”, disse ao portal da ONU-HABITAT, o gerente sênior de engenharia da LpWSC, Golden Manyanga. “Vimos os desafios das mudanças climáticas e da insegurança energética e optamos por responder com inovação. Ao transformar resíduos em energia, estamos mostrando que uma concessionária zambiana pode liderar a transição para soluções energéticas limpas, confiáveis e nacionais”, completou.
A usina de biogás em Mansa funciona por meio da digestão anaeróbica, processo natural que degrada resíduos orgânicos na ausência de oxigênio, liberando gás metano. Esse gás é capturado, purificado e transformado em eletricidade, que alimenta tanto a estação de tratamento, quanto as estações de bombeamento da região.
Os impactos dos resíduos que viram energia
Os ganhos ambientais são tangíveis. Ao capturar o metano produzido na decomposição do esgoto, um gás de efeito estufa com potencial de aquecimento global superior ao do dióxido de carbono, a LpWSC reduz significativamente a emissão de poluentes que prejudicam o clima. Esse processo contribui para um tratamento mais eficiente das águas residuais, transformando um problema ambiental em uma solução sustentável.

Além disso, o lodo remanescente do tratamento não é descartado, mas convertido em fertilizante orgânico, que pode ser utilizado pela agricultura local. Essa prática estabelece um ciclo de reaproveitamento, onde os resíduos do saneamento alimentam a produção agrícola, promovendo a economia circular e fortalecendo comunidades rurais.
Para os profissionais envolvidos, o impacto também é positivo. A operação do sistema gerou novos postos de trabalho nas áreas de operação, manutenção e capacitação técnica, estimulando a formação de uma equipe local especializada em tecnologias limpas e renováveis. Com a redução dos custos com energia, a empresa tem mais recursos para investir na ampliação e na melhoria dos serviços.
O projeto também contribui para a saúde pública ao reduzir a contaminação dos corpos d’água da região, diminuindo os riscos de doenças transmitidas pela água. A melhoria nas condições ambientais beneficia tanto a população local, quanto os trabalhadores da estação.
O próximo passo
A LpWSC planeja expandir a capacidade da usina de biogás para, no futuro, oferecer energia excedente às comunidades vizinhas. Também está em análise a adoção de painéis solares, que integrados ao sistema atual, criariam uma fonte híbrida, aumentando a autonomia energética da região.
Em um país altamente dependente da energia hidrelétrica, vulnerável aos efeitos das mudanças climáticas, o projeto em Mansa demonstra como inovação, parcerias internacionais e gestão eficiente podem reforçar a resiliência energética e promover o desenvolvimento sustentável urbano.
Resíduos que viram energia no Brasil
No Brasil, o Grupo de Estudo e Pesquisa em Água, Saneamento e Sustentabilidade (GEPASS), ligado ao LabSanTec da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), desenvolveu o chamado Sistema Bioeletroquímico Empilhável, projetado para converter efluentes orgânicos em eletricidade e hidrogênio por meio da ação de microrganismos. Diferentemente de processos que demandam grande consumo de energia, o sistema propõe inverter a lógica, em vez de gastar, gerar energia durante o tratamento.
A tecnologia se baseia em microrganismos que degradam matéria orgânica biodegradável, isso a torna promissora para resíduos como esgoto doméstico e subprodutos da agroindústria, mas também a limita frente a efluentes não-orgânicos, como os de algumas siderúrgicas, que não servem de alimento aos microrganismos utilizados.
Em fase laboratorial, a solução precisa avançar para testes em escala piloto com parceiros industriais e de saneamento. Segundo o coordenador Marcelo Nolasco, em entrevista ao jornal da USP, a adoção depende da abertura do setor produtivo a inovações que, apesar do investimento inicial, tendem a gerar retornos econômico e ambiental no médio e longo prazos.