Jonas Lourenço: “A casa precisa ser humana, antes de ser smart”

A partir da reflexão sobre a série Adolescência, arquiteto e urbanista que materializa a sensibilidade da psicologia em projetos arquitetônicos fala sobre o poder da casa como instrumento de cura.

Por Ana Cecília Panizza em 25 de junho de 2025 9 minutos de leitura

Jonas Lourenço (Foto: Daniel Nilson)

Arquiteto, urbanista, três anos de psicologia e… pai. É a partir desse conjunto de perspectivas que Jonas Lourenço fez um post no Instagram com reflexões sobre a série “Adolescência”, segunda mais assistida do catálogo da Netflix dentre as de língua inglesa, com 141,2 milhões de visualizações. Sua publicação teve mais de 170 mil visualizações e 15 mil compartilhamentos, números que revelam a dor em comum.

Arquitetura como extensão do cuidado. Como forma de construir vínculos, transformar realidades e projetar futuros mais humanos. Casa como lugar de reconexão. É isso que reflete a visão de Lourenço que, para além do olhar do arquiteto, engloba a percepção do pai de três filhos, papel do qual se orgulha. Entre uma pergunta e outra, durante a entrevista cedida com exclusividade para o Habitability, ele fala da família, compartilhando sonhos e projetos em comum. “Vivemos numa geração em que muitos adolescentes estão se isolando no próprio quarto, e isso não acontece por acaso. A arquitetura que construímos (ou deixamos de construir) tem facilitado esse afastamento”, diz um trecho do texto, que convida os leitores a “olhar pra sua casa com mais intencionalidade”.

Doutorando e pesquisador na Universidade de Lisboa, onde é professor, Lourenço se dedica a estudos sobre casas vernaculares e neuroarquitetura, com ênfase em casas afetivas, e investiga como os espaços influenciam emoções, vínculos e bem-estar. “A casa muda com a gente se a gente deixar”, reflete ele, que atua em projetos de diferentes escalas e tipologias com ênfase em habitações residenciais, arquitetura social e sustentabilidade.

Antes da arquitetura, estudou por três anos psicologia. Juntando as duas disciplinas, materializa a sensibilidade e a subjetividade da psicologia às paredes firmes de projetos de casas, escolas e outras construções. Com essa união, à frente do escritório Lourenço Arquitetura, ele busca se afastar da arquitetura concretada e fria, e da arquitetura do espetáculo, para priorizar o acolhimento a quem habita a casa. “Nós, arquitetos, não somos os protagonistas: o morador é que tem que ser”, frisa. 

Jardim Botânico de João Pessoa/PB (Foto: Beatriz Avelino)

Em sua trajetória profissional também estão projetos humanitários na África, como a Escola Pamosi, em Huambo (Angola), e em iniciativas no Senegal e na Guiné-Bissau, em parceria com organizações missionárias e comunitárias. No Brasil, trabalhou em projetos públicos, como a revitalização do Jardim Botânico de João Pessoa/PB e a requalificação do Lixão do Roger, também na capital paraibana, projeto premiado internacionalmente. Entre as novidades, está um livro que será lançado no Brasil em setembro de 2025, inspirado em projetos desenvolvidos desde o início da carreira. Os títulos evidenciam a sensibilidade que permeou toda a conversa, como “casa que cheira abraço” e “casas que ultrapassam muros e criam vínculos”.

QUE SENSAÇÕES E IMPRESSÕES VOCÊ TEVE AO ASSISTIR À SÉRIE “ADOLESCÊNCIA” E COMO VOCÊ FEZ ESSA CONEXÃO COM O PAPEL DA CASA E AS QUESTÕES ABORDADAS PELA SÉRIE?

Foto: Divulgação Netflix/ Ben Blackall

Jonas Lourenço: Não costumo fazer análise de filme ou série, mas “Adolescência” me fez olhar para a casa não apenas como arquiteto, também como pai. Assisti como quem observa um terreno instável para os adolescentes e fiquei pensando: eles (os adolescentes) estão querendo entender quem são em um mundo que não dá trégua para adolescente. O que me impactou foi perceber como, em vários momentos da série, a casa, que era o espaço que deveria proteger, acolher e curar, se tornou ausente. Era como um hotel, onde as pessoas vivem sua dor em silêncio, atrás das suas portas fechadas. E isso, como arquiteto, me acendeu um alerta do que eu venho falando há vários anos: a arquitetura pode estar contribuindo, mesmo que involuntariamente, para esse distanciamento.

COMO ISSO SE REFLETIA NOS ESPAÇOS DA CASA, AO SEU VER?

Jonas Lourenço: Percebi (na série) que havia, intencionalmente, ambientes frios, salas que pareciam vitrines e que não eram espaços de encontro. Os quartos isolavam ao invés de convidar para o diálogo. A casa perdeu a função do abraço, do refúgio. A saúde mental e a arquitetura estão profundamente conectadas. E precisamos repensar o lar como um espaço de reconexão com o outro e consigo mesmo. A série mostra, sem dizer. A imagem denuncia muito. Quando a arquitetura não é intencional para o afeto, ela vai colaborar para um colapso emocional. O design das residências pode influenciar a saúde mental dos habitantes. Os edifícios residenciais precisam ter acesso a luz natural, ventilação, privacidade, privacidade acústica, visual. Os espaços comuns precisam estar em um bom nível de ruídos para evitar que isso comprometa a saúde mental dos moradores. E a falta desses elementos contribui justamente para isolamento e depressão. A arquitetura residencial deve ser pensada hoje não em termos só estéticos, mas também em termos que promovam saúde mental e saúde emocional. 

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COMO MANTER CONEXÃO DENTRO DE CASA? PARA QUEM NÃO TEM RECURSO, QUAIS DECISÕES SIMPLES E ACESSÍVEIS, NO DIA A DIA, PODEM SER TOMADAS? 

Jonas Lourenço: Isso começa com a intenção, antes de se colocar o primeiro tijolo na casa. Na arquitetura, projetar é criar vínculos. Integrar a cozinha à sala, criar uma bancada, criar um canto de leitura, um espaço de meditação. Fazer a refeição sem telefone, sem celular, ter conversas sem pressa. Dar atenção a isso. O que é que você pode melhorar na sua casa? Melhorar com o que você tem? Às vezes, mudar o sofá de forma que se consiga ter uma visão da área externa ou mudar o móvel de forma que você consiga favorecer a interação entre as pessoas, criar alcance, onde as pessoas possam interagir. Por que, nas décadas de 1980 e 1990, as horas de TV e de filmes eram mais interessantes? Porque eram surpreendentes. Nós não sabíamos, na TV aberta, o que ia passar. A gente ficava junto, em família, na expectativa. Durante a novela, ou o filme, a gente opinava e não estávamos isolados com fones de ouvido. Hoje, até para assistir a um filme, as pessoas estão com o telefone e, se for desinteressante, apertam o “2x” para ver mais rápido. A gente tem perdido a qualidade desse tempo. E por último, que é o design biofílico: a presença de plantas em ambientes internos reduz estresse, melhora o humor, aumenta o bem-estar. São práticas simples, que tornam o lar mais harmonioso.    

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O MODELO DE CASAS COM CÔMODOS MAIS SEGMENTADOS SURGIU QUANDO E ONDE? DE QUE FORMA ESSE MODELO APARTA INTEGRANTES DE UMA FAMÍLIA? 

Jonas Lourenço: Esse modelo é norte-americano e surgiu no pós-guerra, nas décadas de 1950 e 1960, quando ganhou força o sonho de casas amplas em áreas suburbanas, com muitos cômodos, cada um com sua função isolada, a partir da visão de Le Corbusier, considerado o pai da arquitetura moderna, que dizia que a casa é uma máquina de morar. A casa estava ligada à função dela. As casas eram caixas de morar, com corredores que pareciam fronteiras internas. Vemos muito isso nos filmes. Uma casa com jardim, mas que, na parte interna, tinha divisões. Esse modelo não estimula a convivência, reforça o isolamento e segue até hoje, permeando a arquitetura contemporânea. E a tecnologia aumenta isso. Hoje temos muito esse agravante de, além de ter espaços individualizados, temos a tecnologia, que faz com que cada pessoa no seu quarto tenha a sua tela, a sua rede, o seu mundo. São casas habitadas, mas desconectadas. O pior é que isso tem sido reproduzido em todo o mundo como um modelo aspiracional, quando na verdade é um projeto de distanciamento, questão que eu combato nas redes sociais: a homogeneização das residências, em que todas as casas têm que ser iguais. 

A CASA É REFLEXO DO MORADOR E VICE-VERSA?

Jonas Lourenço: A casa pode ser feita como um espelho, e isso é poderoso. Ela pode ajudar a nos voltar para dentro, quando tudo fora está no caos. Luz natural, texturas que acolhem as pessoas, plantas. Esse ambiente nos convida a olhar para dentro, em paz. Um lugar com menos ruído e mais propósito pode ajudar pessoas ansiosas a desacelerar. Pode inspirar uma organização. É a casa que cura. O nosso entorno físico tem um poder sobre o nosso emocional. E a casa, quando bem pensada, pode ser aliada para nos ajudar a enfrentar ansiedade, cansaço, sobrecarga… pode ser uma espécie de pequeno santuário. O ambiente doméstico pode influenciar o nosso estado emocional e os moradores da casa porque ele perpassa não só pelo que sentimos, mas pelo conjunto, pelas pessoas que estão ao nosso redor. A casa é viva. Espaços iluminados e organizados e elementos naturais podem trazer calma e introspecção, auxiliar em todas essas questões. Luz natural melhora o humor; ambientes desorganizados aumentam o estresse. Tanto é que há uma quantidade enorme de pessoas hoje trabalhando como personal organizer; acho fantástico, acho isso terapêutico. A pessoa não consegue dar conta, ela não tem força para arrumar sua bagunça, mas não é força física, é uma força emocional. 

A TECNOLOGIA TAMBÉM PODE SER ALIADA DOS PROJETOS ARQUITETÔNICOS? 

Jonas Lourenço: Não sou inimigo da tecnologia, eu a uso diariamente, porém ela mudou a forma de viver a vida, a forma como projetamos e a forma como habitamos. Hoje, nós, arquitetos, conseguimos projetar uma casa inteira em 3D antes de passar para a obra. E a interação dessas tecnologias avançadas revolucionou o processo de design e construção, trazendo mais precisão e eficiência. Podemos usar inteligência artificial para prever insolação, ventilação e conforto térmico. Isso traz uma arquitetura de qualidade, uma arquitetura melhor. Porém, ela é desconectada do presente, porque casas são cheias de automação, mas são vazias de presença. O desafio é usar a tecnologia como aliada e não como fuga, abstração. A casa precisa ser humana, antes de ser smart. Ambientes muito automatizados podem deixar a desejar quanto a calor humano. Quando a gente incorpora tecnologia, é importante que entendamos que ela deve servir para melhorar nossa qualidade de vida e promover o conforto, a sustentabilidade, mas sem comprometer a essência acolhedora.

QUAL É O FUTURO DO HABITAR? PARA ONDE ESTAMOS CAMINHANDO E COMO MELHORAR ESSE CAMINHO E ESSE FUTURO? 

Jonas Lourenço: O futuro é feito à mão. E, quando eu digo isso, eu falo do futuro mais genuíno, mais ligado ao ancestral e ao natural, porque a tecnologia está forçando isso. Existe uma necessidade de um reset. Existem hoje clínicas para pessoas serem curadas de dependência tecnológica. Chegou-se a esse ponto em muito pouco tempo, menos de 10 anos que estamos assim, cada dia tem uma inovação. E a inteligência artificial mostrou, escancarou, a nossa necessidade de fugir dela, de sermos mais humanos, mais afetivos do que tecnológicos. Vamos continuar inovando, ok, mas o verdadeiro avanço vai ser espiritual, emocional, humano. As casas precisam ter mais significado. As empresas que vendem imóveis já sabem disso e, portanto, estão despertando – como poder de venda – o que é essencial. A sua casa vai ter áreas verdes, vai ter mais espaço de convivência. É isso, no fundo, que as pessoas buscam, e não a ostentação de uma porta de 6 metros. Os alimentos precisam ser mais orgânicos e menos artificiais. Espaços onde a vida possa pulsar. As pessoas hoje buscam experiências. As casas que curam, que apoiam, que protegem. Esse realmente é o luxo. O tempo é o luxo. O tempo de qualidade. Vejo essa geração cansada desse excesso e a casa pode ser a resposta.

QUAL O PAPEL DA ARQUITETURA NESSE FUTURO?

Jonas Lourenço: Como arquiteto, meu papel é desenhar essa resposta com responsabilidade, com beleza, mas como pessoa, como pai, como esposo, é fazer com que minha casa seja esse laboratório para um futuro mais saudável, para que meus filhos possam saber que sempre vão ter esse espaço de chão e cura. E as tendências na área residencial apontam para essa valorização da conexão com a natureza, da sustentabilidade. Há também ênfase na criação de espaços multifuncionais e adaptáveis. Não se pode perder a memória: se você perder a memória, você tem uma casa que é genérica. A casa pode ser integrada à tecnologia, com materiais mais ecológicos, pensando no planeta. Isso é fundamental. A geração mais nova, dos meus filhos, pensa muito no planeta. Vejo jovens que não têm mais smartphone e têm aquele telefone Motorola antigo. Minha filha tem uma máquina fotográfica do tipo que revela. As casas do futuro são projetadas para nutrir não só o corpo, mas também a mente e o espírito. E para promover uma vida mais equilibrada e conectada com o ser humano. 

O QUE VOCÊ SUGERE PARA TORNAR A CASA UM LUGAR DE MAIOR INTERAÇÃO ENTRE PAIS E FILHOS, PRINCIPALMENTE QUANDO ESTÃO NA ADOLESCÊNCIA?

Jonas Lourenço: Como pai e arquiteto, vejo que a casa pode ser um elo poderoso na relação com nossos filhos, ou um muro. Na adolescência, essa fase cheia de silêncios, questionamentos e emoções intensas, o jeito como a casa está organizada faz muita diferença. A gente não precisa forçar momentos juntos, mas pode criar oportunidades para que eles aconteçam naturalmente. Cozinhar juntos, jogar um jogo de tabuleiro na sala, ter um cantinho da leitura que a gente compartilha… Tudo isso ajuda. A arquitetura tem esse poder de facilitar os encontros, de deixar o “ficar junto” mais leve, mais espontâneo. Às vezes, só tirar a TV da frente da mesa de jantar já muda o clima da casa. E tem algo que muita gente ignora: os adolescentes se comunicam melhor quando não estão sendo “encarados”. Sabe aquela conversa que flui melhor lavando a louça juntos ou caminhando lado a lado? A ciência já apontou isso. Vale a pena pensar em espaços que incentivem esse tipo de interação: uma varanda para cuidar de plantas juntos, uma cozinha onde todos conseguem circular, um ateliê com tinta e papel para criar sem julgamentos. E, mais do que tudo, criar zonas de “desligar” dos eletrônicos. Um espaço onde o olhar se volta de novo para o outro, para o tempo real, para o afeto. Para mim, casa boa mesmo é aquela onde a gente se sente visto, escutado e amado.

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