Neuroarquitetura: cidade e cérebro estão ligados. E essa relação pode ser melhor

Ambiente urbano pode ser feito a favor da saúde física e mental dos cidadãos. A fundadora da NeuroAU Andrea de Paiva explica como.

Por Redação em 4 de outubro de 2022 9 minutos de leitura

neuroarquitetura

A cidade afeta nosso dia a dia prático, nosso corpo e os nossos cérebros. São essas relações que a neuroarquitetura estuda, analisando como os ambientes podem ser construídos e refeitos para promover mais bem-estar para quem vai usá-los. “A cidade é a sua casa, querendo ou não. Tudo dela afeta você, mesmo quando está em casa de janelas fechadas”, afirma a fundadora da NeuroAU Andrea de Paiva. 

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A gente pode não perceber, mas questões como a luz, os barulhos e os formatos das calçadas afetam nosso inconsciente, indica Andrea. “E uma série de fatores ambientais contribuem para o estresse, como o excesso de barulhos e de estímulos visuais. E não importa que a gente ‘se acostume’, porque continuamos escutando”, disse a arquiteta. Para ela, esse é o ponto de cuidado que os urbanistas devem ter: observar se os espaços estão estressando as pessoas.

“A cidade é a sua casa, querendo ou não. Tudo dela afeta você, mesmo quando está em casa de janelas fechadas.”

Em entrevista exclusiva ao Habitability, a arquiteta e urbanista, especializada em Neuroarquitetura e professora da FAAP e da FGV, ponderou sobre como unir a complexidade humana com a complexidade do ambiente urbano. 

O que significa a neuroarquitetura?

Andrea Paiva – Ela é usada para pensar desde o design de interiores até o planejamento das cidades. O propósito da neuroarquitetura é entender como o ambiente físico, em qualquer escala e em qualquer tipo de ambiente, pode nos afetar. 

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A ideia mais macro de neuroarquitetura é a combinação de neurociência e arquitetura. Mas esse nome limita um pouco nosso entendimento, porque a neuroarquitetura vai além da neurociência. A gente engloba tudo que ajuda a entender o ser humano, desde a medicina até as ciências sociais, como antropologia e psicologia. É preciso ver também o sistema endócrino, que influencia nosso comportamento. A luz do ambiente, por exemplo, influencia diretamente nos nossos hormônios. Ou seja, a neuroarquitetura não analisa só como um espaço vai afetar o nosso sistema nervoso, e sim como vai afetar nosso comportamento e a interação com todos os sistemas. 

E quais áreas esse “guarda-chuva” abrange?

Andrea Paiva – Muitas áreas do ambiente podem nos afetar: podemos olhar a iluminação; a navegação espacial, ou seja, como a organização da cidade pode fazer com que a gente se sinta inseguro e se perca nos lugares; tem a parte que estuda a natureza, isto é, o efeito da ausência e da presença de natureza na vida. Em resumo, engloba o estudo de todos os nossos sentidos, como os cheiros e as texturas do ambiente podem afetar nossa saúde. Se esse ambiente gera convívio social ou isolamento, se aumenta ou diminui a sensação de pertencimento… a gente consegue analisar tudo isso em um espaço.  

Sob a perspectiva da arquitetura que preza o bem-estar: quais são os problemas das cidades?

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Andrea Paiva – Muitas coisas que podemos considerar em nossas cidades acabam afetando bastante nossa experiência, desde aspectos diretamente relacionados à sensação de segurança e também ao bem-estar mental. A cidade é sua casa, querendo ou não. Você mora na cidade, mesmo quando está dentro da sua casa. Você sente o cheiro da cidade e escuta os sons mesmo de janela fechada. Quando abre a janela, lá está a vista da cidade. A primeira coisa que a gente precisa sentir na nossa casa é segurança. E não falo aqui da questão do assalto, mas  de se sentir seguro andando na rua. Em cidades que priorizam o transporte de carro, andar nas calçadas dá uma sensação de insegurança: os carros passam em uma velocidade muito rápida, fazem um som alto e o movimento afeta a visão periférica quando a pessoa está andando. Por mais que a pessoa saiba que está na calçada e o carro na rua, inconscientemente, a experiência acaba sendo de insegurança.

Aliás, a neuroarquitetura observa para além do que a gente nota conscientemente. Muitos dos efeitos do ambiente decorrem daquilo que a gente não percebe. Não se trata de analisar o ambiente por conta do gosto ou não. 

Na sua visão, uma cidade que privilegia o transporte de carros traz menos bem-estar para as pessoas?

Andrea Paiva – Se a pessoa tem que pegar o carro para ir ao mercado ou para fazer qualquer pequeno trajeto, ela se conecta menos com a cidade. No carro, se anda em uma velocidade que é incompatível com a conexão com o espaço. Essa velocidade também afeta a conexão com as pessoas e o senso de comunidade. O senso de comunidade é afetado tanto por essa velocidade, quanto pelo fato da gente morar em lugares muito altos. Não podemos ver o que está acontecendo na rua, não vemos quem passa na rua. A altura dos prédios acaba isolando muito mais a gente. Quando as pessoas estão andando de carro, elas não se encontram. 

A conexão, de certa forma, se junta à ideia de identidade dos espaços e das pessoas. Como é seu diagnóstico para a identidade nas grandes cidades brasileiras?

Andrea Paiva – As cidades estão perdendo muito a identidade. A mudança está ocorrendo muito rapidamente e isso nos faz perdermos a sensação de pertencimento. As cidades precisam acolher os elementos que nos reconectam com as nossas memórias, pois elas são fundamentais para termos uma conexão afetiva com o lugar e se sentir em casa. Antes, cada bairro tinha uma cara e até um cheiro próprio. Hoje em dia, em São Paulo, principalmente, estão se perdendo as identidades. E você se perde na cidade, porque não sabe em que lugar está: estão todos iguais. O senso de direção fica muito prejudicado, porque não tem referências para se localizar. 

O que fazer para a arquitetura não desumanizar mais o espaço urbano?

Andrea Paiva – Acho que o primeiro passo fundamental é entender quem é o ser humano. O que acontece é que os arquitetos e urbanistas hoje em dia focam muito no ambiente. O máximo que se chega da pessoa quando se pensa no ambiente é pensar na funcionalidade e na parte estética. Mas a gente não entende quem são as pessoas, como funciona o organismo delas, não entende a neurociência, que indica que os seres humanos têm necessidades primitivas que o ambiente ajuda a suprir, como em uma dieta variada. Assim como precisamos de proteínas, vitaminas e hidratação dos alimentos, nós precisamos de natureza e luz do ambiente.

Existe uma série de estudos que mostram que as pessoas se recuperam mais rapidamente quando o quarto do hospital tem vista para uma paisagem natural. Alguns indicam que as pessoas sentem menos dor nesse ambiente. Olha só como vai a nossa percepção. Precisamos de natureza. A ausência dela, por outro lado, prejudica nossa saúde mental – ficamos mais estressados e agressivos. 

Quais outras necessidades o ser humano tem em relação ao espaço em que vive?

Andrea Paiva – Temos necessidade de luz natural. A gente foca atualmente nos perigos do sol, mas a luz natural é essencial, pois ela não só ajuda a regular as nossas atividades internas e o nosso relógio biológico, como também contribui para a produção de serotonina, que é uma substância associada à sensação de felicidade e bem-estar. Se a gente não supre essa necessidade do organismo, assim como no caso da dieta, a gente não sente imediatamente o efeito, mas, com o tempo, o organismo sente. A luz natural também ajuda na produção de vitamina D, que é associada à nossa imunidade e à saúde dos ossos e músculos. Nesse ponto, a cidade é fundamental para estimular os hábitos saudáveis e para estimular que a gente consiga sentir a luz do sol.

Além disso, existem necessidades relacionadas ao controle dos níveis de estresse crônico. O estresse é o maior inimigo da nossa saúde cerebral. E uma série de fatores ambientais contribuem para o estresse, como o excesso de barulhos e de estímulos visuais. E não importa que a gente “se acostume”, porque continuamos escutando. Existem também necessidades primitivas relacionadas à sensação de pertencimento. Há estudos que mostram que, assim como estar na natureza pode ajudar a controlar os níveis de estresse, a familiaridade e estar entre pessoas e em um espaço que se gosta, também. O pertencimento ajuda a equilibrar o funcionamento do nosso organismo e traz efeitos positivos diretos. Ou seja, as cidades precisam ter espaços para convívio social. 

O que significa uma smart city na perspectiva da neuroarquitetura?

Andrea Paiva – A ideia da smart city é a de um espaço que recorre às tecnologias para melhorar a experiência da cidade. Até aí eu sou super a favor. O que eu acho que falta é combinar esse entendimento de tecnologia com o do ser humano. Não podemos esquecer que não somos máquinas! Somos seres humanos e temos uma relação muito profunda com o ambiente. E o ambiente precisa nos ajudar a atingir nosso melhor estado, nossos melhores comportamentos, melhores hábitos, o nosso bem-estar e a nossa saúde mental.

Algumas tecnologias, como o metaverso, devem ser usadas com equilíbrio. E ter um aspecto humanizado é fundamental. A gente pode não se dar conta agora, e ficar feliz com algumas soluções tecnológicas, mas lá na frente a gente vai sentir os efeitos. E isso é um ponto em que as cidades precisam pensar: quais efeitos no organismo dos cidadãos no longo prazo?

Pensar em longo prazo é também falar de longevidade: como as cidades, por meio da neuroarquitetura, podem contribuir para a longevidade das pessoas? 

Andrea Paiva – Os ambientes onde passamos mais tempo são aqueles que têm o potencial de gerar efeitos mais duradouros e de longo prazo. E quando falamos da cidade, estamos falando da nossa casa. Existem pesquisas que mostram que os ambientes onde a gente passa mais tempo tem potencial de afetar plasticamente o nosso cérebro, alterando a sua estrutura. O que significa que ambientes enriquecidos têm potencial de estimular o nosso cérebro a criar mais conexões entre neurônios. Isso muda a nossa cognição, ficamos com raciocínio melhor. Por outro lado, o caminho inverso também se aplica: um ambiente empobrecido tem o efeito oposto, ou seja, ele enfraquece nosso cérebro e faz a gente perder conexões. E quando falamos no envelhecimento, isso tudo impacta. Se lá na frente eu tiver meu cérebro mais estimulado e fortalecido, isso vai diminuir a rapidez do declínio cognitivo. Alguns cientistas observam que em questões de doenças como Alzheimer, ter uma reserva cognitiva, criada pela combinação de hábitos saudáveis e ambientes enriquecidos, aumenta a resistência cerebral. 

O que significa que a nossa cidade precisa ser um ambiente enriquecido. Ela precisa estimular as pessoas a saírem de casa, explorar espaços. As pessoas precisam ser desafiadas a mexer o corpo, a falar com outras. Isso estimula a plasticidade cerebral. Contudo, precisamos de ambientes enriquecidos, mas não caóticos, com excesso de informação visual e sonora. É preciso ser de uma maneira equilibrada e organizada. 

Existe alguma forma de o excesso de barulho e de informação não contribuírem para o estresse?

Andrea Paiva – O problema é quando o excesso de imagens, cheiros e sons estão passando mensagens diferentes. Quando estamos na natureza, como na praia, as sensações também são bastante estimuladas – tem o cheiro do mar, o toque da areia, o barulho alto do mar. Mas tudo é coerente e passando uma só mensagem. Isso é fundamental para a gente ajudar a controlar os níveis de estresse e ajudar o cérebro a processar a informação do ambiente. Na prática, o cérebro precisa entender onde ele está e o que está acontecendo. 

Quando falamos em poluição nas cidades, a imagem que nos vem à cabeça são ambientes sujos e com a qualidade do ar ruim. De certa forma, os municípios já acatam esses problemas. Qual o outro tipo de poluição com o qual a neuroarquitetura se preocupa?

Andrea Paiva – A poluição sonora é um problema real. Nossas cidades são muito poluídas em termos sonoros. A gente se habitua, mas continua escutando. Estudos feitos com pessoas que moram próximas de aeroportos em diferentes países mostram que as pessoas se acostumam com o barulho, e dizem até mesmo que são tranquilos com isso, mas os níveis de estresse seguem altos. Os níveis de cortisol, que é o hormônio do estresse, são mais altos nessas pessoas do que em pessoas que moram em lugares silenciosos, o que demonstra que o barulho prejudica a saúde cerebral no longo prazo. 

A poluição luminosa também afeta a saúde e o bem-estar, tanto dos animais que vivem nas cidades como também das pessoas. Isso porque, a gente sincroniza o nosso relógio biológico através dos ciclos de luz e escuridão. É preciso a escuridão para começar a produzir a melatonina, que é o hormônio do sono. Excesso de luz branca, com maior emissão de luz azul, pode mexer nesse ciclo. Não dá para apagar todas as luzes da cidade, porque ela vai ficar totalmente insegura, mas a cidade pode pelo menos mudar a forma como a iluminação é provida. Los Angeles, por exemplo, está mudando a iluminação noturna urbana com um tipo de luz que não interfere no relógio biológico das pessoas.