“A felicidade é um direito humano”, diz especialista Aline da Silva Freitas

Em entrevista, especialista responsável pela Rede de Pesquisas Científicas de Felicidade, avalia o Relatório Mundial da Felicidade 2024.

Por Ana Cecília Panizza em 25 de junho de 2024 16 minutos de leitura

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Aline da Silva Freitas (Foto: Paloma Escarbote)

Qual é o segredo da felicidade? Embora não exista uma “receita”, há caminhos que apontam para essa direção, como os trilhados por países como Finlândia, Dinamarca, Islândia, Suécia, Israel, Países Baixos, Noruega, Luxemburgo, Suíça e Austrália. Essas são – em ordem decrescente – as nações mais felizes do mundo, de acordo com o Relatório Mundial da Felicidade de 2024. 

A lista é elaborada pela empresa americana de pesquisa de opinião Gallup, em parceria com o Centro de Pesquisa de Bem-Estar de Oxford e a Organização das Nações Unidas (ONU), a partir de informações coletadas junto a mais de 100 mil pessoas em todo o mundo. Realizado desde 2012, o Relatório Mundial da Felicidade levanta e analisa indicadores econômicos e sociais necessários para a melhora da condição humana: apoio social, renda, saúde, liberdade, generosidade e ausência de corrupção. O documento é publicado em 20 de março de cada ano – Dia Internacional da Felicidade – com objetivo de elencar demandas mundiais por mais atenção à felicidade e ao bem-estar e ajudar na construção de políticas governamentais com esse fim. 

O Brasil no ranking da felicidade

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Nesta edição do ranking o Brasil subiu algumas posições em relação à edição anterior, indo de 44ª para a 49ª, mas ainda longe do topo.

Por outro lado, no país – assim como no Reino Unido, em países europeus, nos Estados Unidos e na Austrália – tem crescido a infelicidade entre jovens de 15 a 24 anos, cenário que preocupa e pode ser atribuído, entre outros fatores, a desafios econômicos, educação deficitária e falta de moradia. Outra possível razão: as mídias sociais, vistas como uma das alavancas de baixa autoestima entre jovens. 

Esse e outros cenários mapeados pelo relatório foram analisados por Aline da Silva Freitas – advogada, palestrante e consultora especializada em felicidade – durante entrevista exclusiva para o Habitability. Ela tem certificação como Chief Happiness Officer pelo Instituto Feliciência e pela empresa Reconnect Happiness at Work. É mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutora em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP), onde defendeu a felicidade como direito humano. Atualmente, Aline dá aulas na Faculdade de Direito do Mackenzie, é CEO do Instituto Gestão da Felicidade, responsável pela Rede de Pesquisas Científicas de Felicidade e autora de  artigos e livros, entre eles “Endo-Direito Humano à Felicidade: por quais motivos e como agir para efetivar?”. Confira a entrevista na íntegra:  

Por que esses países (Finlândia, Dinamarca, Islândia, Suécia, Israel, Países Baixos, Noruega, Luxemburgo, Suíça e Austrália) são os mais felizes do mundo? Quais as principais particularidades que os levaram a esse resultado?

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Helsinque, capital da Finlândia

Aline: ao ler esses indicadores, você e eu automaticamente podemos fazer um exercício de autoanálise sobre nosso País e sobre o que sabemos dos demais países, não? Fato é que, quando notamos o quadro geral dos países desde 2012, é evidente que países que ficam sempre entre os melhores colocados possuem menor desigualdade social. Esta é a principal particularidade. Predominam no topo países da Europa, que não estão em guerra e que geralmente têm pequenas dimensões territoriais. Porém, isso não quer dizer que países de vasto território não podem experimentar felicidade em altos níveis. Aliás, o Canadá, entre os países das Américas, já esteve entre os dez mais. Já sobre as guerras, aí não há como… países envoltos em guerra estão em sofrimento e isso impacta o senso de felicidade global. O Afeganistão já estava perdendo posições no ranking há anos e se consolidou no último lugar em 2024. Outras particularidades dos países mais felizes: são bem avaliados em serviços públicos; as pessoas costumam encontrar maior possibilidade de equilíbrio entre vida pessoal e profissional; e, no geral, elevada qualidade de vida. Alguns dos países documentam também maior participação política de mulheres e menor desigualdade de gênero. Os países mais felizes do mundo também enfrentam desafios, a exemplo do crescimento de questões em saúde mental; porém, é notório que estão mais estruturados enquanto Estado e sociedade para lidar com tais questões. 

O que podemos aprender com os acertos deles em diferentes esferas da sociedade?

Aline: nota-se que não se trata de uma competição para saber quais países são os mais felizes e quais são os menos felizes, porém um retrato, como gosto de chamar, da geografia da felicidade no mundo. Esta permite viabilizar reflexões estruturais mais profundas sobre comportamentos e ações políticas individuais e coletivas, bem como ações privadas, que podem oportunizar que cada país venha se desenvolver, com impactos no próprio país e no mundo, eis que somos seres interdependentes. Como fazer? Em primeiro lugar é necessário seguir enfrentando a miséria e a pobreza no mundo. É inadmissível que, com tanta capacidade produtiva global, ainda existam pessoas morrendo de fome no mundo, por exemplo. Precisamos cuidar da dignidade das pessoas. Assim, fica evidente que as iniciativas que buscam desenvolvimentos econômico, social, ambiental e cultural para todos são as melhores, devendo ser mantidas as já em curso, aperfeiçoadas, redesenhadas ou ampliadas, ainda com espaço para fortalecimento de redes de apoio e parcerias, bem como fomento de novas ideias, sempre que necessário. 

Qual o caminho para promover esses desenvolvimentos?

Aline: um bom caminho é analisar, por exemplo, cada indicador que o Relatório Mundial da Felicidade considera de maneira atrelada a outras referências importantes como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, a conhecida Agenda 2030. Aliás, a própria ONU aponta que a efetividade dessa agenda permite felicidade e bem-estar às pessoas, sendo esses os objetivos maiores. Outros referenciais muito importantes são os Direitos Humanos, sendo a felicidade um deles. De qualquer forma, para não me alongar muito, gosto de tentar tornar o mais simples e prático possível construir dignidade e realizar felicidade para todas as pessoas em todos os lugares e me conectar com as pessoas para orientar como elas cotidianamente podem auxiliar na construção de felicidade onde estão. Uma vez não vivendo em miséria, em que a luta é pela sobrevivência, todos devem buscar autoconhecimento e verificar como suas ações podem impactar de maneira significativa e sustentável outras pessoas. Como construir felicidade passa por Estado, mas também por todos os atores sociais, não há outro caminho. Empresas, por exemplo, precisam ir além de seguir as diretrizes jurídicas e cumprir direitos trabalhistas, construindo, especialmente junto às lideranças, ações estratégicas de felicidade. Parece algo difícil? Mas não é… às vezes a ação passa simplesmente por checar melhorias nas rotinas, diminuir tempo de reuniões, repensar um pouco a autonomia e a flexibilidade de colaboradores para aperfeiçoá-las, estimular melhores relacionamentos interpessoais na equipe. Aliás, se eu fosse cuidar especificamente de algo agora seria disso: focar em relacionamentos. Cuidar desses e daqueles aspectos em ambientes de trabalho, o que possibilita mais (e melhores) resultados além de equilíbrio entre vida profissional e pessoal, lembrando que esse é um dos aprendizados ao identificarmos os países mais felizes do mundo. No mais, podemos reforçar que, no espaço público, todos nós podemos exercer nossa cidadania para além do voto! E estimular a vida política mais ajustada com atuações conjuntas pelo desenvolvimento humano sustentável. A primeira sugestão aqui é ler a Agenda 2030 e checar quais das metas já estou auxiliando a executar e quais mais posso abraçar agora. É um exercício e de elevado impacto.

Leia também: Agenda 2030 da ONU: o que é e quais os seus objetivos?

O Brasil passou da 49ª posição para a 44ª. Que fatores contribuíram para essa melhora?

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Voluntários trabalhando para ajudar as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul (Foto: Cristine Rochol/Prefeitura Municipal de Porto Alegre)

Aline: tendo a observar que temos em regra bastante esperança no Brasil e que obviamente gostaríamos que ele estivesse em primeiro lugar no ranking. E por quais motivos não está? Talvez entender exatamente por que houve uma melhora seja um bom caminho e focar nisso, bem como o já proposto acima. Políticas de realocação de renda são um desafio, porém com algumas conquistas nas últimas décadas. Durante a recente pandemia (Covid-19), isso precisou de mais foco. A generosidade também teve um maior impacto no curso pandêmico e é um dado do perfil do brasileiro, que costuma se engajar quando se identifica com uma causa – a exemplo do apoio ao Rio Grande do Sul no presente ano, o que deve impactar no Relatório Mundial da Felicidade de 2025. Para além disso, agora podemos nos ver! Certamente isso impactou na melhora dos relacionamentos e refletiu no relatório. Desse modo, em resumo, considero que o Brasil teve melhora no ranking por termos aumentado nossa percepção de apoio social, pela nossa generosidade, pelo distanciamento social ter terminado; por, ainda que com muitos desafios, estarmos pensando a saúde no País e pela realização de eleições em 2022, que tradicionalmente, seja quem assume o poder, costuma reforçar um senso de esperança. 

E agora, o que fazer para seguir avançando? 

Aline: novamente, mais ações individuais e mais ações coletivas públicas e privadas, com sentido e com propósito, alinhadas com os indicadores do relatório, com a Agenda 2030, com os Direitos Humanos. O agir é coletivo! Não tenho dúvidas disso e de que o povo brasileiro é formidavelmente capaz de avançar em tudo isso e construir melhores resultados. Um caminho seguro final? Disseminar a cultura da felicidade nas escolas e universidades, nas empresas, nos órgãos e instituições públicas, nas organizações não-governamentais… em todos os lugares. É tempo de gestão da felicidade. Que tal sermos todos agentes de felicidade? 

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Lembro que somos acostumados a prestar atenção no que falta, no que está errado, no que falhou… isso pode corroer nossa mente e prejudicar nossa qualidade de vida. De fato, temos muitos problemas sociais graves para enfrentar no Brasil. A desigualdade já mencionada e o racismo estrutural são destacados, entre outros fatores. Porém, o agir em prol da dignidade e da felicidade das pessoas deve caminhar conjuntamente com o enfrentamento disso tudo. Sendo a felicidade um direito humano, não poderia ser diferente.

Segundo o ranking, jovens estão mais infelizes em muitos países, como Brasil e EUA. Por que? Como reverter essa situação?

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Aline: durante meus estudos em felicidade, anos atrás, me deparei com um estudo que apontava que, após a fase da infância, a felicidade começava a cair. Na meia idade, a pessoa atingiria o pico do desencantamento e, depois, voltava a elevar a felicidade, atingindo bom resultado após os sessenta. Eu agora, aos 40, estaria no pico do desencantamento… lutei para quebrar o estudo: afinal, busco aplicar em mim as práticas de promoção de uma vida mais feliz. Claro que não vivo só momentos de felicidade e alegria, mas procuro cultivar a felicidade como sentimento, mais duradouro, e esse é o ponto. Os jovens são costumeiramente mais afetados pela comparação decorrente do uso das redes sociais, sofrem mais com certo imediatismo social e com estímulo desenfreado ao consumismo. Também com a positividade tóxica (a aparente obrigação de parecer feliz nas redes), entre outros. Aliás, penso eu, que hoje podemos fazer muito mais amigos, mas estamos realmente com dificuldade de fazê-los e mantê-los. Mas lembro que pessoas de qualquer idade podem estar sofrendo com isso e, de outro lado, vem aumentando o número de pessoas que estão buscando autoconhecimento com ganhos em saúde, qualidade de vida e relacionamentos, que são os principais preditores de felicidade. 

Além disso, os estudos atuais sobre felicidade e idade, presentes no Relatório Mundial de Felicidade de 2024, demonstram que não é em todo país que a felicidade dos jovens caiu. Na Europa, não é o caso. Assim, acredito que seja importante para o jovem ter esperança no futuro e estar em um lugar que provê segurança para que isso possa ser um diferencial. No Brasil e nos Estados Unidos, a felicidade dos jovens caiu e, na média geral do mundo, há um nível mais baixo de felicidade entre as pessoas que nasceram desde 1980. 

Do que esses jovens precisam? Ou seja, como reverter o aumento de jovens mais infelizes?

Aline: precisamos, primeiramente, percebê-los: entender suas necessidades e ouvi-los. Acredito que a troca intergeracional é uma das chaves para o desenvolvimento humano sustentável. Os relacionamentos são definitivamente o principal preditor de felicidade; portanto, precisamos cuidar de todas as pessoas, de todas as idades. O Relatório Mundial de Felicidade de 2021 tem um capítulo voltado para a centralidade do papel dos relacionamentos para a felicidade, sendo que o atual, de 2024, praticamente é todo preocupado com a felicidade em cada idade. Fato é que, da leitura dele, depreende-se que estamos vivendo uma era de múltiplas complexidades, porém também de possibilidades. A principal: fortalecer o convívio intergeracional e talvez se desprender um pouco desses rótulos geracionais e checar como integrar. Devemos lembrar, ainda, que somos uma sociedade que tende ao envelhecimento e que isso é para ser de vidas longas, de aprendizado contínuo, de muito apoio social. E que tal, ao aprender sobre tudo isso, no lugar de pensar em que fase da vida somos mais felizes, construirmos juntos mais felicidade em cada etapa da vida? Assim, cuidamos melhor de outra questão que nos é muito valiosa, tanto quanto a felicidade: o tempo.

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Como países podem reduzir a desigualdade social para, assim, se tornarem lugares mais felizes? Como as iniciativas públicas e privadas podem atuar com esse intuito?

Aline: são tantas formas de perceber a desigualdade… Quando você me pergunta sobre a desigualdade social e não apenas a de renda, isso fica ainda mais evidente. A Agenda 2030 toca nisso, além de desigualdade de gênero, em muitos momentos. Fato é que é pressuposto do desenvolvimento humano sustentável consolidado a inclusão de todas as pessoas em todos os lugares. Isso vai exigir, no mínimo, indicadores como acesso à alimentação e à água potável, bem como ao trabalho digno. Para além disso, acesso aos outros bens mais básicos de subsistência, em quantidade e qualidade. É a efetividade dos direitos humanos, a proteção da dignidade e da felicidade! Especificamente em relação à atuação dos países, de fato são necessárias políticas públicas, as quais se traduzem em iniciativas que tenham, em sua estrutura, planejamento, execução, revisão de resultados e redesenhos, se necessário. No mesmo sentido, políticas privadas. Aliás, o agir coletivo em todas as instâncias, públicas e privadas, deve ser pautado por organização de prioridades, alocação de recursos e persistência na construção de resultados de impacto social. Lembremos que vivemos em um mundo dinâmico, que vai exigir respostas e que nem todas estão prontas, pelo contrário. Vamos viver, exercitar a política e construir e reconstruir, sempre o melhor possível, e com o que nos é inegociável: os direitos humanos. Nicola Matteucci, no “Dicionário de Política”, diz que devemos buscar solidariamente a construção de um “bem comum”, pois individualmente somos impotentes. Penso eu que, em resumo, para reduzir a desigualdade, devemos ter em mente que, diante de todo o conhecimento já produzido e de tantos paradigmas do que é estar fora do nível de pobreza, de qual renda pode possibilitar vida digna, de que todos devem poder ser quem são e como são, que a noção de qualidade de vida para um pode ser diferente da do outro, mas que há um mínimo existencial que garante tudo isso. É aí o caminho, precisamos dar vida às metas traçadas, sendo bom norte as estipuladas na Agenda 2030, as quais demandam atuação de todos. É sobre fortalecer a cultura de paz, a responsabilidade social e, sobretudo aprender que é no convívio humano que o homem se faz, que somos seres interdependentes e que a dor de quem sofre hoje pela desigualdade aumenta o desencantamento coletivo, impacta a todos – ou pelo menos deveria impactar. Anoto isso por estar ciente de que não são exatamente todas as pessoas que estão solidárias e empáticas com a dor do outro. Note: usei o verbo estar, pois acredito que, se alguém não está solidário e empático, pode aprender! 

A chave está na coletividade?

Aline: não estou desenhando agora toda uma nova política de combate às desigualdades, mas reforçando o que deve permear a cultura de superação destas. É o vislumbre do outro que de alguma forma sou eu. Afinal, para o outro, o outro sou eu. Precisamos cada vez mais perceber isso e para além das grandes políticas públicas. E, em paralelo, fomentar a atuação no nível micro: cada ser pode observar como exercer cada vez mais a vida política, colaborativa, generosa, empática e sustentável. Neuroquimicamente as ações pelo outro geram efeito mais prolongado nos níveis de bem-estar e felicidade do que fazer algo por si mesmo, como estudos comprovam. Nossa estrutura pede isso, por quais motivos não fazer? Quero ainda deixar uma reflexão sobre esse tópico da desigualdade. Noto que há muitas feridas abertas quando o tema é este… não sem razão. A história é bastante marcada por desigualdade. Aliás, novas feridas são abertas todos os dias. Porém, se observarmos toda a construção histórica dos direitos e de agendas propositivas da efetividade desses, vamos notar que já avançamos muito na previsão e promoção das igualdades – e isso deve ser celebrado. Não tolerar novas feridas, neste momento, é um bom passo, e avançar ainda mais na efetividade é imperioso e necessário, quiçá antes de 2030. O ODS número 10 ajuda a entender a redução da desigualdade por meio da atuação dos países.

Por que relacionamentos ajudam a deixar um lugar mais feliz? Como fazer para estimular isso?

Aline: em meu livro “Endo-Direito Humano à Felicidade: por quais motivos e como agir para efetivar?” me ocupo, com carinho, em refletir sobre relacionamentos. Minha formação em Direito me fez pensar que, a todo instante, tudo se conecta com esse tema. Meus estudos em felicidade confirmam que não há nada que mais torne a vida feliz do que relacionamentos. É no contato com o outro que eu sou quem sou, que me construo e reconstruo. Por isso, estar na companhia de pessoas que nos fazem bem, com elas conversar e dividir tempo de qualidade, é tão poderoso. Estudos apontam que isso potencializa nossa sensação de bem-estar, de felicidade, de pertencimento. Somos feitos para pertencer! Do outro lado, sabemos que existem alguns relacionamentos que são destrutivos. Como fazer para estimular, portanto, os bons vínculos? Na vida pessoal devemos sempre estar atentos para quem estamos abrindo nossa vida e com quem estamos compartilhando nossa jornada, pensando na qualidade desses relacionamentos e em como podemos, a cada dia, cuidar mais e melhor deles. Lembre-se de que não é sobre quantidade, porém sobre qualidade. Organizações públicas e privadas podem atuar para aperfeiçoar os relacionamentos entre as pessoas que estão em seus times. Como? Por meio de treinamentos especializados contínuos em relacionamentos, os quais passam, por exemplo, por aprendizados em comunicação, trabalho em equipe e liderança. As ações estratégicas das organizações devem reverberar no cotidiano destas. Por isso, além de treinamentos, a cultura – e, portanto, a rotina das organizações – deve ser pautada pela qualidade dos relacionamentos, a qual tem um pressuposto: perceber as pessoas. Em um tempo de tanta correria, parar para prestar atenção no outro é desafiador, porém tão necessário quanto também prestar atenção em si mesmo. Aí está o toque final: cuidar de si é um ótimo caminho para refletir em seu entorno e tornar os lugares por onde você passa mais feliz. Recomendo muito que, quem puder, assista o TedTalks sobre o estudo mais antigo que existe sobre felicidade e que está ainda em andamento no mundo. 

Você comentou que os países mais felizes do mundo também enfrentam desafios. Quais e por que ocorrem? Estão relacionadas a invernos longos e rigorosos, caso dos países nórdicos, que estão no topo do ranking da felicidade?

O sol decididamente é uma fonte de felicidade, porém não é o único fator. Certamente você já ouviu falar de pessoas que decidiram morar na praia e, apesar de terem ido, não passeiam na praia. Algumas estarão mais felizes, outras menos, talvez outras desencantadas. A partir desse exemplo muito simples, pode-se afirmar que o meio em que estamos pode, sim, aumentar as chances de uma vida feliz, porém os fatores não podem ser analisados de maneira isolada. Não é por menos que o indicador Felicidade Interna Bruta (FIB), complementar e novo que alguns países e a ONU têm levado em consideração para além do PIB, considera nove dimensões: 1. Bem-estar Psicológico; 2. Uso do Tempo; 3. Vitalidade da Comunidade; 4. Cultura; 5. Saúde; 6. Educação; 7. Diversidade do Meio Ambiente; 8. Padrão de Vida; e 9. Governança. Ao ler esses indicadores, ou mesmo os que os Relatórios Mundiais de Felicidade consideram, vamos notar que é possível que, mesmo em um país com ótimo padrão de vida, como é o caso dos países nórdicos, pessoas estejam enfrentando dilemas e questões de ordem pessoal que impactam sua felicidade subjetiva e, muito possivelmente, o resultado coletivo de mensuração de felicidade; ou algo pontual coletivo, o impactar. Os indicadores de felicidade estão avançando muito e são muito bons; justamente por isso capturam desafios, inclusive em países com bons resultados. A nossa realidade não é, e não será, perfeita: devemos acolher isso e aprender com isso. Porém ela é passível de ser melhorada e é para ser sustentável para todos. Ainda assim, mesmo dentro da sustentabilidade, teremos que enfrentar, ao que consta, só para dar um exemplo, os desafios em questões climáticas. 

Há outro desafio que tende a ter impacto significativo?

Aline: os temas em saúde mental. Concordo com a ideia que muitos assinalam, inclusive a Organização Mundial de Saúde (OMS), que vivemos um tempo severo no que se refere à saúde mental, em todos os lugares, com maior ou menor incidência a partir de, como explicado acima, um conjunto de elementos. Felicidade não é mensurável apenas a partir da ótica da saúde mental, porém passa por ela. Felicidade, como estamos construindo aqui, envolve saúde integral, qualidade de vida e relacionamentos. Estes três preditores se retroalimentam de diversas formas. Com isso quero afirmar que estamos vivendo a era em que a gestão das emoções é prioritária e impacta cada vez mais nossos relacionamentos e nossa qualidade de vida. Logo devemos aprender, desmistificar e tratar das questões em saúde mental de uma maneira cada vez mais preciosa e carinhosa. Gerir emoções envolve autocontrole e cuidados para com os outros. Cuidar disso pode fazer com que não se consolidem estatísticas que apontam que haverá aumento substancial de casos em problemas atinentes à saúde mental e a outros transtornos. Eu genuinamente acredito que podemos agir para possibilitar vida digna e feliz para todos. Sei que nesse momento me perguntaria “como?”. Muitas coisas já estão acontecendo, até mesmo o Brasil, em março deste ano, publicou uma lei que cria uma certificação para empresas que cuidem de saúde mental e bem-estar. 

Quais seriam os requisitos para essa certificação?

Aline: Os requisitos são “I – promoção da saúde mental:
a) implementação de programas de promoção da saúde mental no ambiente de trabalho;
b) oferta de acesso a recursos de apoio psicológico e psiquiátrico para seus trabalhadores;
c) promoção da conscientização sobre a importância da saúde mental por meio da realização de campanhas e de treinamentos;
d) promoção da conscientização direcionada à saúde mental da mulher;
e) capacitação de lideranças;
f) realização de treinamentos específicos que abordem temas de saúde mental de maior interesse dos trabalhadores;
g) combate à discriminação e ao assédio em todas as suas formas;
h) avaliação e acompanhamento regular das ações implementadas e seus ajustes;

II – bem-estar dos trabalhadores:
a) promoção de ambiente de trabalho seguro e saudável;
b) incentivo ao equilíbrio entre a vida pessoal e a profissional;
c) incentivo à prática de atividades físicas e de lazer;
d) incentivo à alimentação saudável;
e) incentivo à interação saudável no ambiente de trabalho;
f) incentivo à comunicação integrativa;

III – transparência e prestação de contas:
a) divulgação regular das ações e das políticas relacionadas à promoção da saúde mental e do bem-estar de seus trabalhadores nos meios de comunicação utilizados pela empresa;
b) manutenção de canal para recebimento de sugestões e de avaliações;
c) promoção do desenvolvimento de metas e análises periódicas dos resultados relacionados à implementação das ações de saúde mental.” (Lei 14.831/2024).

Da leitura desses elementos fica evidente o que a legislação brasileira entende por saúde mental nas empresas. Se ampliarmos o olhar para a OMS, vamos perceber que saúde mental é “um estado de bem-estar mental que permite às pessoas lidarem com os momentos estressantes da vida, desenvolver todas as suas habilidades, aprender e trabalhar bem e contribuir para a melhoria de sua comunidade”. Seja no trabalho ou na vida como um todo, seja por meio dos indicadores do WHR (Waist-to-hip Ratio), do FIB, dos indicadores da lei mencionada ou a partir do conceito da OMS, a saúde está apontada como algo de extrema importância e precisamos estar atentos de maneira especial a isso. 

E como as cidades contribuem ou não para essa felicidade?

Aline: posso afirmar, com base em mais de uma década de estudos sobre a felicidade, que tudo vai em algum momento mencionar nossa vida em comunidade… Que desta cuidemos. Que cuidemos de como isso tem impactado em nossas emoções e que possamos aprender mais e melhor sobre como desenvolver a felicidade como um sentimento mais duradouro e que poderá nos auxiliar diante dos desafios. Cuidar da felicidade em sua esfera individual e em sua esfera coletiva, simultaneamente, é uma das chaves para que o Relatório Mundial da Felicidade 2025 possa apresentar resultados melhores em todos os países.